sexta-feira, junho 30, 2006 

Quando teremos paz?

Vivemos há dois meses em situação de conflito grave; o país está praticamente paralisado à espera de uma saída da qual possa resultar o retorno à tranquilidade. E já quase ninguém se lembra da razão inicial desta crise.
Reinado, Salsinha, distribuição de armamento, crise militar, tudo isso são imagens enevoadas na vida do comum da população timorense. Perdeu-se a rotina de uma vida simples, no ramerrão casa, trabalho, missa dominical, convívio familiar, mercado, luta de galo. Deitar cedo e cedo erguer. Perdeu-se o sossego. Ganhou-se medo, insegurança.
Embora as forças internacionais patrulhem a cidade de ponta a ponta, os distúrbios continuam a marcar o quotidiano da capital.
É certo que não se verificam muitos incidentes nas ruas principais, mais rasgadas, melhor delineadas. Aí, é mais fácil aos veículos militares circular.
O problema reside nos emaranhados bairros populares, de construção indonésia, com casas encostadas umas às outras e com ruas tão estreitas que é necessário recuar se surgir um carro em sentido contrário. Mas o rebuliço também está presente nos bairros cujas casas surgem do nada, isoladas, perdidas entre os extensos campos de bananas ou de outro tipo de denso arvoredo à mercê de desordeiros que aí se escondem quando passa a patrulha militar.
A maior parte dos habitantes desses bairros encontra-se refugiada nos campos de acolhimento. As suas casas desabitadas são alvo fácil para o saque e posterior incêndio.
Há quem confesse ter medo mas se recuse a deixar para trás os seus bens.
Não querem perder pela terceira vez – recordam os anos de 1975, 1999 e, agora, em 2006 - o que foram sacrificadamente construindo uma vez após outra. Estão cansados de fugir, de recomeçar.
S., uma professora viúva natural de Lospalos, está refugiada na Catedral. Em curta mensagem, S. dá conta do ocorrido. Primeiro roubaram-lhe os móveis, hoje terminaram a obra incendiando-lhe a habitação.
N., natural de Same, está muito assustado mas nega-se a sair de casa; tem uma família numerosa à qual se acrescentam inúmeros afilhados vindos da sua região, a quem N. paga os estudos. A sua casa situa-se entre outras de habitantes de Lorosae. E vai dizendo “Se saio, incendeiam-me a casa. Para onde levo a minha família? Só que eu moro numa zona complicada…”
M. é de Díli. Vive numa zona onde se cruzam tiros esporádicos e pedradas atiradas vezes sem conta por grupos rivais. Resolveu refugiar-se na Catedral. Entrou em depressão. E vai desabafando que “roubem o que quiserem mas não queimem. Custa muito reconstruir tudo de novo…”
B. é natural da ilha de Ataúro. Refugiou-se no porto e, quando achou que a situação estava controlada, voltou com a família para casa. Com a repetição de cenas diárias de tumultos, gritos, pedradas, correrias, B. sofreu um ataque cardíaco. Está internado há mais de uma semana no hospital nacional.
D., de Tíbar, a quem assaltaram e esvaziaram a casa pobre, suspira num desabafo: até o cão me levaram!
Muitos contraíram empréstimo bancário para o arranjo das suas casas.
Todos têm famílias extensas a seu cargo. São os filhos, os genros, noras, netos, afilhados, os avós… gente simples, gente sofrida. Passaram pelos conflitos de 1975 e de 1999. Todos comungavam da esperança de que a paz e a estabilidade se tornariam uma certeza duradoura no Timor independente pelo qual lutaram com coragem. Hoje, estão assustados, descrentes e desiludidos. Nenhum deles quer a discórdia. Todos apostam na paz. Só que já ninguém se atreve a vaticinar uma data para o retorno à paz ansiada…

quinta-feira, junho 29, 2006 

Do lado de cá de Comoro

Deste lado da cidade parecia que não iria haver nenhum incidente. Contudo, a meio da tarde, o bairro sobressaltou-se com o tiro para o ar das tropas malaias e australianas.
Junto ao antigo depósito da água, as tropas malaias têm um excelente posto de observação de onde devem ter enxergado alguma movimentação inusitada. Desceram a colina ao mesmo tempo que, mais abaixo, próximo da rotunda do aeroporto o tal movimento estranho alertou os jovens guardas do bairro 30 de Agosto que saíram todos à rua mal escutaram a sineta, sinal de perigo. Aproximavam-se forasteiros e era necessário abortar a sua acção destruidora.
Dizem os populares que o grupo forasteiro se dirigia ao Colégio D. Bosco onde continuam refugiados alguns milhares de pessoas, pronto para apedrejar, roubar, incendiar. Em suma, para semear o terror.
Lançado o gás lacrimogéneo, os ânimos serenaram na zona do Colégio D. Bosco.
Mas a área que se situa junto à colina ficou algum tempo desguarnecida. E, claro, os amigos do alheio fizeram a sua aparição, entraram no quintal de um dos poucos habitantes que não abandonou a casa. E lá se apropriaram de mais um porco que serviu certamente para melhorar algumas refeições…
Desta vez, a parte central do bairro foi poupada, o que infelizmente não tem acontecido na área mais próxima da ponte de Comoro e em Be Bono, um bairro bem populoso que se situa junto ao mar e contíguo ao aeroporto, próximo da Academia da Polícia.
Por Be Bono chega-se a uma praia paradisíaca e pouco frequentada. Ali, ainda se podem ver erguendo-se elegantes akadiros, palmeiras das quais se retiram a tuaka e o tuasabu, bebidas alcoólicas muito do agrado dos timorenses. A tuaka, mais adocicada, bebe-se fresquinha e dizem os apreciadores que é deliciosa. O tuasabu é uma aguardente fortíssima!
Toda a área de Comoro era, no tempo português, um vastíssimo campo de akadiros, de coqueiros, tamarindeiros, mangueiras e gondoeiros. No meio da vegetação densa, havia porcos bravos, búfalos, codornizes, galinholas…Etambém algumas jibóias, cobras verdes entre tantas outras, lafaek rai maran (1). Apenas permaneceram como memória de tudo isso, o lafaek rai maran. Dizem que a sua mordedura é fatal. Aqui no quintal já vi alguns que vão dando cabo das cobras que por aqui tenham a veleidade de se aventurar. E o toké , um lagarto feiíssimo, repelente. É útil em casa, dá cabo de moscas e mosquitos, é verde azulado, acastanhado, acinzentado – dizem que torradinho e reduzido a pó cura a asma! - e emite o som toké umas, cinco, seis, sete vezes... Quantos mais tokés, mais rouco, mais gutural, mais velho é o toké…
O primeiro espaço a sofrer total transformação ainda no tempo português foi Madohi, onde hoje se situa o aeroporto. Mas, foi durante a ocupação indonésia que a vegetação foi quase totalmente devastada para dar lugar aos bairros populares onde, à falta de plano de urbanização, cresceram como cogumelos autênticas casas de bonecas, todas coladas umas às outras, com ruelas estreitas e deficiente saneamento.
Ao longe, vê-se o Ataúro. À beira da praia, de areia preta, os coqueiros protegem do sol as peles mais sensíveis e, quando a sede aperta, sempre se pode beber água de coco, possuidora de magia que prende a esta ilha quem a experimente.
Manhã cedo, ainda antes do nascer do sol, este era um dos meus destinos preferidos.
Dois dedos de conversa com os pescadores que se faziam ao mar nos seus típicos beiros(2), alguma atenção dispensada aos labarik (3) apreciadores de Ronaldo brincando à bola, um banho nas águas cálidas e o dia estava ganho!
Praia quase deserta, mar calmo, pouco batido, águas transparentes, peixinhos de várias cores que se vêem a olho nu, - uma praia igual a tantas outras espalhadas por todo o Timor - alguém poderá desejar que isso faça parte do passado deste país?

(1) Lagarto. Traduzido à letra quer dizer jacaré de terra seca

(2) barco

(3) criança

quarta-feira, junho 28, 2006 

Apelo à paz em Timor-Leste


Há dias escrevi que Timor-Leste continua a suscitar muitas paixões.
Não sei se será correcto dizer que há paixões boas e más, umas oportunas, outras despropositadas. Mas tenho a certeza de que posso afirmar que algumas paixões de tão serôdias passaram o prazo de validade! Sem questões de Leste-Oeste, sem Muro de Berlim, em plena era da tão propalada globalização, deixou de fazer qualquer sentido a colocação num ou noutro lado da barricada capitalista, imperialista ou comunista! Chega!
Em Timor-Leste vivem-se dias problemáticos. Está a ser complicado, quase impossível, segurar quem se manifesta a favor e contra o Governo.
Os timorenses têm perfeita consciência de que se aproximam tempos difíceis e, recordando palavras do Primeiro-Ministro demissionário proferidas há dias a um jornal português, estamos perante a iminência de uma guerra civil.
Recuso-me a acreditar que haja um timorense interessado que timorenses matem outros timorenses em nome de paixões partidárias, de interesses individuais ou de, simplesmente, de irreflectida tomada de posições.
Se houver guerra, ela não aproveitará a ninguém.
Não podemos consentir que Timor-Leste acabe como país e passe a território desertificado de seres humanos, timorenses, apenas porque há um vencedor; quando um grupo vencer outro nesta luta estúpida e desnecessária, poderá não haver ninguém para contar. Não vai haver vencedor. Seremos todos um país vencido pelo ódio, dizimado e, sem povo, passaremos a nação inexistente.
Ninguém ignora que os timorenses são excessivos em todos os seus actos. Todos temos consciência de que nos empenhamos para defender apaixonadamente - e por vezes de forma ilógica - aquilo em que acreditamos. Está a ser difícil gerir as nossas paixões. Todos nós, timorenses, temos a percepção de que se está a perder o controlo sobre os milhares de manifestantes que, de um e de outro lado, não estão dispostos a ceder.
Sou timorense. Não quero uma guerra. Não quero o fim de Timor-leste. Não defendo que o meu país se resuma a um protectorado de uma qualquer potência estrangeira, seja ele país ou organização. Não, eu defendo Timor-Leste, nação, país, onde haja democracia, paz, segurança, tolerância. E respeito! E timorenses, vivos!
Ao mesmo tempo que nos debatemos com a premência de refrear os ânimos de populações que, de uma ou de outra forma, foram já vítimas do conflito, desenrolam-se, em paralelo, outros debates em instâncias mais sofisticadas nas quais se dão voz às paixões exacerbadas pelas facções em conflito. Esgrimem-se as virtudes e os defeitos dos timorenses, dos partidos, de outras forças em presença. Faz-se descarada apologia do que momentaneamente serve determinados interesses grupais, com total desrespeito pelo povo timorense em nome de quem todos dizem falar. De forma paternalista, de quem vem do Mundo civilizado, opinam, insultam e invectivam, contribuindo, ainda que de forma indirecta, para a radicalização de posições.
E os timorenses ouvem, lêem, vêem. Não seremos muito “inteligentes”, seremos talvez um pouco “burros”, como, aliás, alguns já disseram. Somos do Terceiro Mundo. Depauperados, dependentes, impreparados. Mas estamos atentos e somos bons observadores.
Tudo nos faz recordar o ano de 1975, quando um grupo estrangeiro decidiu tomar partido em Timor contra outra corrente partidária. O resultado foi o que se viu. Uma guerra civil, uma invasão e posterior ocupação estrangeira, 24 anos de sofrimento. Milhares de mortos. Estrangeiros? Não! Timorenses, porque os estrangeiros findos os ensinamentos, regressaram sãos e salvos ao seu país.
Culpados? Os timorenses, pois claro, pela inexperiência, pela imaturidade, pela impreparação…
Hoje, assistimos a discussões apaixonadas de apaixonados delirantes de alguns estrangeiros de diversos países. Os timorenses são a bola atirada ora para um lado, ora para o outro. Uns e outros estrangeiros, convém que se diga, defendem as cores dos seus interesses, embora o façam sempre em nome de Timor-leste!
Uns estão cá de motu próprio. Outros assessoram o governo de Timor-Leste, e, se bem me parece, esses assessores estrangeiros podem e devem aconselhá-lo. Outros ainda vêm em regime de cooperação. No âmbito puramente institucional devem aconselhar, opinar. Mas impõe-se que, fora do seu trabalho, todos o façam em círculo restrito, entre amigos.
Adivinho possíveis reacções desagradadas de estrangeiros sobre o direito que lhes assiste de emitir opinião. Esclareço que este desabafo, obviamente, apenas se dirige a quem escusadamente se imiscui na vida política de Timor-Leste nas questões internas deste país.
Não sou xenófoba nem racista. Nem faria sentido que assim fosse, porque assumo convictamente a minha dupla nacionalidade luso-timorense e de mestiça, filha de pai português do Algarve e de mãe firaku, de Venilale, no distrito de Baucau, em Lorosae. Acrescento que nasci no distrito de Liquiçá, no que hoje se designa por um dos dez distritos de Loromonu.
É justamente em nome da minha cidadania timorense que faço nesta página um apelo aos estrangeiros que, aqui se encontrando temporariamente, aqui trabalhando, vão debitando opiniões de índole diversa sobre o nosso destino enquanto país.
A situação é crítica. Enquanto timorenses temos a obrigação de envidar todos os esforços e canalizarmos as nossas paixões para o bem comum, que abranja todo o povo de Timor-Leste.
Agradecemos a presença de estrangeiros em Timor-Leste para nos transmitirem os seus conhecimentos, know how, do qual o país – deixado ao abandono pelo poder colonial, saqueado e humilhado pela potência ocupante -obviamente beneficiará!
Mas dispensamos que, em nosso nome, venham deitar mais achas para a fogueira!
Deixem-nos, por amor de Deus, com a tranquilidade possível, resolver o intrincado problema com que nos debatemos! Deixem-nos limar as arestas e apartar o que nos desune! Guardem as vossas paixões. Guardem as vossas energias para as lutas partidárias nos vossos países de origem onde há paz e estabilidade!
Aqui perdemos a paz! Não temos estabilidade. Corremos o risco de perder definitivamente a nossa soberania. Não contribuam para mais divisionismo! A hora é de contenção.
Dispensa-se o desfraldar de bandeiras!
É hora de vos dizer basta!
Pela unidade. Pela independência. Pela Vida. Pela paz. Pelo futuro de Timor-Leste! E esse tem de nos pertencer por inteiro!

 

O que há aqui é uma grande falta de educação

Ontem no telejornal da televisão timorense (RTTL) mostraram uma reportagem em que Mari Alkatiri, Lu-Olo e José Reis apareciam a dirigir-se a uma multidão de milhares de apoiantes do leste que se preparavam para vir manifestar-se em Díli. Imediatamente a seguir a esta reportagem começaram os distúrbios no meu bairro, que até aqui tinha andado mais ou menos sossegado, se compararmos com o que tem acontecido pelo resto da capital. Aqui, ontem à noite, um monte de jovens resolveu destruir duas ou três casas de gente do leste, seus vizinhos, uma das quais encostada à minha, enquanto gritavam “Lorosa’e komunista! Bá imi-nia rain!” (“Os orientais são comunistas! Vão para a vossa terra!”). Chamei a Task Force, como sei que fizeram outras pessoas do bairro, os malaios que são responsáveis por este sector acabaram por aparecer, passou aqui por cima um helicóptero umas quantas vezes, a situação acabou por acalmar, mas não sem que no intervalo entre as passagens da patrulha malaia os rapazes voltassem a ir partir mais alguma coisa que a sua fúria imbecil não tinha destruído ainda. Duvido que os malaios tenham prendido alguém aqui, os vândalos estavam ao pé das suas casas, não lhes era difícil esconderem-se, e, mesmo que no entusiasmo da orgia de destruição não ouvissem os carros blindados da patrulha, a aproximação destes é prontamente assinalada por códigos de assobios e ferros a bater um no outro, que servem também para chamar os jovens para a defesa do bairro, para rechaçar um ataque do exterior, ou para reunir as forças para desfazer as casas de vizinhos cujo único crime é terem nascido na parte errada do país.
As imagens que apareciam ontem na televisão faziam-nos pensar que o que ali estava, mais do que uma manifestação de apoiantes de Mari e da Fretilin, era uma manifestação de pessoas a quem queimaram as casas, a si ou aos seus familiares, em Díli, antes de os escorraçarem como refugiados para as suas zonas de origem. Não se viam mulheres nas imagens dos manifestantes, nem crianças, nem velhos.
Não há tradição de guerras entre o leste e o ocidente da parte oriental da ilha de Timor, as guerras de antigamente eram habitualmente entre reinos vizinhos. A última grande revolta contra o domínio português, a de Manufahi, no início do séc. XX, foi esmagada devido à aliança entre as autoridades coloniais e nobres timorenses que consideravam naquele momento que os interesses dos seus reinos ficavam melhor salvaguardados apoiando os portugueses. Os revoltosos comandados por D. Boaventura foram derrotados por arraiais (grandes conjuntos de guerreiros) vindos de lugares como o Suro-Ainaro e Manatuto, ambos dentro da área do que se chama neste momento Loromonu, tal como Manufahi. No entanto as tradições inventam-se e enraízam-se depressa. Como o Ruanda demonstrou, um povo analfabeto e ignorante é facilmente conduzido para o caos por líderes políticos ou religiosos com as suas próprias agendas. A divisão entre ocidente (loromomu) e oriente (lorosa’e) em Timor-Leste é uma distinção geográfica e não étnica. Os bandos de jovens de ambas as partes que deambulavam pela cidade de catana na mão há algumas semanas atrás identificavam os seus “inimigos” pelo sotaque ao falar tétum ou pelas línguas que falavam entre si (mas há uma área de falantes de tétum rural “clássico” em loromonu, na zona da fronteira de Suai a Balibó, e outra em lorosa’e, na região de Luka-Viqueque!). Para ter ideia do absurdo de tudo isto imagine-se um conflito em Portugal entre o Norte e o Sul, com os “mouros” de Lisboa a procurarem nas ruas indivíduos que trocassem os “vês” pelos “bês” para os espancarem! E depois há as pessoas do distrito de Manatuto, muitos dos quais sempre pensaram em si como sendo de lorosa’e, mas que desde que as fronteiras do conflito foram estabelecidas com base na divisão administrativa começaram a ser considerados de loromonu, e às vezes acabam a levar porrada dos dois lados.
Enquanto os jovens delinquentes do meu bairro andavam a destruir as casas, o que estariam a fazer os seus pais? Será essa a educação que lhes dão em casa? Infelizmente creio que sim. Há dias apareceram num dos principais jornais diários timorenses declarações de um antigo comandante das Falintil a condenar os jovens que roubam os pertences das casas de pessoas de leste, acrescentando depois que queimar ou partir tudo está correcto por ser uma forma de demonstrar ao governo que o povo não concorda com as suas políticas! Dizia ele que quando isso acontece o erro não é do povo, mas de Mari! Portanto, para o tal senhor, roubar é errado, queimar ou destruir casas de pessoas do povo que nasceram no oriente está certo! O jornal transcrevia apenas as declarações do homem sem nenhum comentário do jornalista ou de alguma entidade que pudesse demonstrar a barbaridade do que estava ali dito. Há demasiadas pessoas em Timor-Leste que fazem a apologia da intolerância política, religiosa, para com as minorias, para com os que se atrevem a ter comportamentos ou posturas alternativas... É necessário denunciar essa visão mesquinha do mundo, nas escolas, na televisão, nos jornais! O que é preciso para mudar este país é boa educação. Houve jovens no meu bairro que não participaram na destruição, que ficaram em casa quietos à espera que acabasse a violência, infelizes, como eu, pelo sentimento de impotência. Há muita gente boa e cansada de ver sangue e ruínas que espera ansiosamente que esta situação acabe. E quando acabar é preciso agarrar de uma vez com firmeza nas tarefas da educação. E ensinar que a responsabilidade pelos actos de cada um, bons ou maus, é individual. Há que abalar o poder dos grupos de pertença (escola de artes marciais, família, bairro, aldeia, metade do país em que nasceu, etc) e promover a consciência moral e ética do indivíduo. Ensinar o Bem contra o Mal, sendo Mal tudo o que provoca sofrimento, dor, morte, destruição.
Na casa vizinha à minha, a que foi destruída esta noite, não havia ninguém, felizmente. Os donos vinham a casa durante o dia, mas iam dormir a um campo de refugiados à noite. Há quem diga por aí da boca para fora que os timorenses gostam de viver de esmolas em campos de deslocados onde há distribuição gratuita de arroz. Não acredito.

terça-feira, junho 27, 2006 

Chuva da manga

Em épocas normais, por esta altura, tendo já passado o período das chuvas e quando o tempo está mais fresco e mais ajustado à época seca, a chuva de Junho tem uma razão de ser. Chama-se-lhe a chuva da manga. A Mãe Natureza lava e prepara as flores da mangueira para que a árvore possa frutificar convenientemente.
Tenho as minhas dúvidas de que hoje alguém se tenha lembrado disto quando, a meio da tarde e de imprevisto, a chuva caiu torrencialmente.
A cidade está parada há dois meses. O resto do país, com a vinda de milhares de manifestantes de Timor Lorosae e de Timor Loromonu, logicamente também paralisou. Para além de que quase toda a administração pública mal funciona.
Somos um país pobre mas permitimo-nos ao luxo de estarmos em crise há dois meses. Com o estado de emergência por mais trinta dias, tudo se tornará mais gritante. Adivinham-se tempos difíceis!
Hoje, o director do hospital nacional, via televisão, pedia encarecidamente aos enfermeiros que regressassem ao hospital, apelando para o carácter generoso e responsável do seu trabalho em prol do próximo. Mas, quem estará preocupado com o seu próximo, quando o a insegurança, o medo, o perigo, tomaram conta de cada pessoa?
Esta noite, aqui em Comoro já arderam três casas. No bairro Pité, outras tantas. Recomeçaram as provocações Lorosae, Loromonu. Surrealista é que o emblemático Maubere de 1975 – nome próprio vulgar na zona Loromonu, apenas na zona dos caladis-tocodede-mambai mas inexistente na ponta leste, tenha sido hoje transposto para os manifestantes firakus de Lorosae…
Sente-se alguma leviandade em tudo. Já ninguém se preocupa com a sua horta, os seus animais, com o seu trabalho e, noutra dimensão bem maior, quase ninguém se preocupa com o país. Somos um país à toa, sem norte. Empenhámos o futuro. Prefiro, contudo, acreditar que somos um país adiado e não um país falhado.
Estamos todos à espera. Que a crise passe, que os nai ulun* decidam o melhor.
Talvez por tudo isso, a acreditar que tudo tem uma razão de ser neste país mesmo quando o improviso e o imprevisto marcam o destino da terra; talvez porque os manifestantes queiram mostrar que a razão está do seu lado fazendo-o ruidosa e aparatosamente, talvez, diria eu, seja conveniente acreditarmos que a chuva que desabou fortemente sobre a cidade não serviu desta vez apenas para lavar as mangueiras e preparar a sua frutificação mas, sim, para refrescar os ânimos, arrefecer os ímpetos. De cabeça fria, pensa-se melhor! E, já agora, talvez possamos acreditar que, lavada e ultrapassada a desordem em que nos encontramos, floresça a paz e a estabilidade em Timor-leste!

* líderes

 

Díli, destino-aventura

Vieram dos dez distritos do Loromonu (1) de Timor-Leste, as milhares de pessoas que se têm manifestado defronte do palácio do governo.
Pois bem, ontem os de Loromonu, encheram a cidade, que passou a ser destino-aventura!
Na ponte de Comoro, a fila chega quase ao aeroporto. Os militares malaios demoram algum tempo a revistar as viaturas, em particular as camionetas, táxis e autocarros.
A meio caminho, há quem decida fazer meia volta e ir pela ribeira. É menos confortável, o caminho é mais poeirento mas, pelo menos, é um bocado mais rápido…até ao bairro Pité onde recomeça a agitação.
As bermas das ruas enchem-se de pessoas curiosas a ver passar a manifestação barulhenta e munida de cartazes sugestivos e alusivos à crise.
Nos cruzamentos de Díli, são as tropas australianas que controlam o trânsito, com os blindados atravessados bem no meio das ruas. E quem quiser passar para o outro lado da cidade, em direcção a Bidau ou à Areia Branca, terá de dar um volta incrivelmente longa. O calor da tarde aperta e é fácil perder-se a paciência com a lentidão do trânsito, num anda-pára cansativo.
Dizia-se que vinham de Baucau, lá para os lados de Lorosae (2), outros tantos manifestantes dar o seu apoio ao Primeiro-Ministro demissionário. Consta que não chegaram a Díli porque alguém os reteve em Metinaro, como medida preventiva de um hipotético conflito entre os dois grupos com interesses opostos.

Entretanto, voltámos a viver sob um verdadeiro estado policial, com os olhos de uns literalmente postos no movimento de outros. Se, por um lado, há quem controle quem vai à manifestação, por outro há também os que evitam a saída de alguns titulares de cargos públicos mais ou menos importantes: como hoje, de manhã, por exemplo, quando um responsável administrativo de um distrito de Lorosae que pretendia apanhar o avião para Bali se viu impedido de viajar. O senhor bem tentou explicar a razão da sua ida, que ia em trabalho, mas não teve sorte nenhuma e ficou em terra.
Ou como a demissão da assessora do primeiro-ministro Mari Alkatiri para a Promoção da Igualdade. Ao explicar os motivos da sua saída, de entre outros pontos, Micató – nome por que é conhecida Maria Domingas Alves - apontou o facto de ter tomado parte na manifestação incluída na Rede das Mulheres de que faz parte. E, obviamente, de ter sido vista…

Isto faz lembrar os tempos sob ocupação indonésia em que as pessoas tinham receio de trocar dois dedos de conversa em público com alguém “esquisito”, porque havia sempre um “Intel” por perto.
Aqui e agora, os novos “Intel” têm outras caras e outros modos de actuação e ainda não ficámos em silêncio, mas já começámos a baixar o tom de voz… Fala-se muito mais em surdina! E os que falam alto, sabem que ficam marcados!
A sensação com que se fica, é que virámos polícias uns dos outros. Que entrámos todos na paranóia colectiva de saber quem se associa a quem, quem está do lado de quem; daqui se conclui que, efectivamente, a democratização de Timor-Leste está bem longe de ser uma realidade interiorizada. Parece que ninguém está interessado em saber que a sua liberdade termina onde começa a liberdade do vizinho…
Valha-nos ao menos o civismo com que têm decorrido as manifestações! Sem as imagens de santos e de Nossa Senhora (ai, Timor-Leste e o respeito pelo mistério, pelo inexplicável, pelas forças do além!) usadas no ano passado na manifestação da Igreja e cuja utilização se pode interpretar como forma de limitar e até evitar qualquer desvio na ordem estabelecida, ao menos que, este ano, seja o bom senso a evitar que a situação resvale para a violência…

(1), (2) - A utilização das palavras Lorosae e Loromonu foi hoje propositadamente usada porque passaram a politicamente incorrectas, havendo já quem prefira já o leste e o oeste, dos que fogem da designação que mais não era senão um marco geográfico provocando que, um dia destes estes sejam banidas definitivamente do léxico timorense. Há que relativizar a questão e reduzir o problema à sua real dimensão

domingo, junho 25, 2006 

Mas, as crianças, Senhor...

No dia em que o Comité Central da FRETILIN se reuniu para decidir sobre a continuação, ou não, de Mari Alkatiri no Governo.
No dia em que Ramos Horta se demitiu dos cargos de Ministro dos Negócios Estrangeiros e Cooperação e da Defesa, no que foi seguido pelo ministro das Comunicações e Transportes, Ovídeo de Jesus Amaral.
No dia em que afluíram à cidade de Díli milhares de manifestantes contra o Governo de Mari Alkatiri e em que a RTTL transmitiu um concerto musical pela paz, apelando à unidade nacional e a um Timor novo.
Nesse mesmo dia, realizava-se uma outra cerimónia, mais discreta, menos participada, que não teve honras de televisão e primou pela ausência notada de entidades oficiais timorenses.
Justamente há um mês, um militar abriu fogo sobre uma coluna formada por 80 agentes da PNTL, a Polícia Nacional, que se dirigia desarmada e a pé para as instalações das Nações Unidas.
De imediato, morreram sete agentes e 16 ficaram feridos, dos quais três viriam a morrer no hospital nacional Guido Valadares.
Não vale a pena dizer que “poderia” ter sido um massacre. Para os familiares, amigos e colegas foi, realmente, um massacre.
Hoje, em sua memória, houve missa no local onde tombaram. Quem assistiu, refere o ambiente de indescritível tristeza e dor em que decorreu a cerimónia religiosa, com o pranto incontido dos familiares e das criancinhas que traziam nas suas mãos as fotografias dos pais desaparecidos.
Ao ouvir a descrição desta triste história a somar a tantas outras ocorridas neste dois meses de conflito, recordei-me de um grupo coral constituído por criancinhas órfãs, se não me falha a memória, de Oécussi. Os pais haviam sucumbido à fúria assassina das milícias pró-indonésias.
Um rapazinho talvez de uns cinco anos, magrito, com umas pernitas a perderem-se nos calções largos que lhe chegavam quase ao tornozelo, de olhos bem escuros e tristes fixos no tecto alto do Ginásio repleto de delegados ao Congresso do CNRT realizado em Díli em Agosto de 2000, cantava com voz choramingada, amargurada, sobre a dor de não ter pais.
Esse era bem o tempo das nossas esperanças! Na altura, confiei que a independência de Timor iria acabar com todas as injustiças e, por isso mesmo, aquelas criancinhas iriam finalmente conseguir ultrapassar a dor de se sentirem sós. Acreditei – dir-se-á que ingenuamente - que o Estado iria torná-las felizes. Sê-lo-ão? Onde estão e o que fazem essas criancinhas?
Passaram seis anos. É curta a nossa história como país independente. E dela vivemos hoje, porventura, o momento mais complexo, mais grave e de consequências totalmente imprevisíveis.
As crianças de Timor-Leste, apesar de tudo e embora esteja longe o cumprimento dos seus direitos, conseguem sorrir, brincar. Mas, entre as que sorriem e brincam, não estão incluídas as criancinhas órfãs daqueles dez agentes que a morte surpreendeu! Mortes escusadas de timorenses às mãos de outros timorenses! E em nome de quê, senhores?
Passados quatro anos sobre a nossa celebrada independência, porque não perguntar, gritar em voz magoada “mas, as crianças, Senhor, porque lhes dais tanta dor?”

sábado, junho 24, 2006 

Que vai ser de Timor-Leste?

Timor sempre suscitou muitas paixões, inúmeras discussões muito acaloradas. É o que acontece agora. Em tempos idos como hoje, quando se fala desta crise, ( a palavra da moda) é inevitável apontar-se mais do que um responsável por ela, a crise.

Antigamente, também havia os bons e os maus. Mas havia, apesar de tudo, menos subdivisões nos temas em discussão. Talvez não houvesse tanta imaginação, ou escasseassem os intervenientes empenhados…

Mas, certamente que os intervenientes empenhados eram-no, efectivamente empenhados na causa de Timor…

Hoje, há muito mais diversidade e Timor desdobra-se, enche-se de mil caras, todas diferentes.

Talvez porque a “situação” (outra palavra que serve para ilustrar tudo quanto se passa no país) tenha evoluído. Os tempos também são outros… também aqui, “situação” pode ser “situasi”.

Já não há “os do mato” nem militares indonésios. Hoje há timorenses. Em vez da palavra secreta e em surdina dos “do mato” , os insurrectos falam abertamente e bem alto. Descem à cidade. Descansam em pousadas, onde o clima é mais ameno...Não sei se tocam piano, não sei se falam francês, mas sei que falam inglês e têm telemóvel!

Se os do mato lutavam quase sem armas, ao menos agora, as armas são sofisticadas, modernas e diziam uns que até estavam em boas mãos.

Se “os do mato” não tinham fardas, hoje abundam as fardas novas, com cintos e botas a condizer… Os tempos são outros… Não há rupias. Há dólares!

Se naquele tempo, a luta era pela liberdade hoje assistimos à luta pelo Poder.

Hoje ninguém quer ser clandestino. Não aos bastidores! Todos exigem as luzes da ribalta! Todos querem o papel principal!

Perduram os bons e os maus. Os heróis e os bandidos. Os da FRETILIN e os outros. E juntaram-se-lhes os esquadrões armados e os peticionários. Os civis e os militares. Os malais e os timorenses. Xanana e Mari. Os Lorosae e os Loromonu. Os portugueses e os australianos. As boas armas e as más armas. Unidade, desunião. A mentira e a verdade. Outra paz, outra guerra. Uns vivos, outros mortos.

O Povo é que não mudou. Ainda é povo timorense. O povo é que continua pobre. O povo é que se sente perseguido. São os seus parcos haveres que continuam a ser roubados, incendiados. “Povo maka terus nafatin”*.

Adia-se o futuro. Timor-Leste está paralisado. Sem acção. Em desnorte total, perdido. Fugindo de si próprio. De alma moribunda.

Mas continuamos distraídos, discutindo entre os bons e os maus, os heróis e os bandidos, muito pouco sobre a paz, quase sempre sobre a guerra…

Que vai ser de Timor-Leste?


*Povo maka terus nafatin - O povo é que continua a sofrer

sexta-feira, junho 23, 2006 

Decepções


Quando em Timor-Leste a situação está ao rubro, com o país suspenso das decisões do Presidente e do Primeiro-Ministro com vista a que se chegue a uma solução pacífica que nos tire desta crise grave, o que menos interessa agora é ouvir críticas aos timorenses quando estas se afiguram inoportunas, demasiado ligeiras, para não dizer levianas.
Quero com isto dizer que não caiu bem a afirmação do secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, quando disse em Genebra onde assistiu à abertura das sessões do novo Conselho dos Direitos Humanos e a uma reunião da Conferência do Desarmamento que "o que se passou em Timor-Leste foi uma grande decepção para todos".
Um dia escrevi que não se pretende desculpabilizar os timorenses pela má condução do problema político-militar de que resultou a crise grave que assola o país. Menos ainda pela condução da política interna do país e até mesmo pelo recurso à violência como meio de resolução de qualquer tipo de adversidade.
Mas os timorenses têm algumas desculpas: herdaram um país saído de um conflito violento, não tinham experiência de governação e nunca viveram em democracia, nem no tempo da colonização portuguesa nem durante a ocupação indonésia.
Kofi Annan disse que "A ONU ajudou a criar uma nova Nação". Pois foi, ajudou, mas fê-lo de forma insuficiente e superficial; ajudou pouco pois esteve dois anos em Timor-Leste e apressou-se a sair mal surgiu a hipótese de se tornar presente noutro teatro de crise.
Timor-Leste deixou muito rapidamente de ser um país a “ajudar”. As razões, só mesmo a ONU poderá explicar.
Mas sempre se pode perguntar se Kofi Annan acha que dois anos era o tempo suficiente para apagar todas as consequências nefastas resultantes da ocupação violenta a que Timor-Leste esteve sujeito durante mais de duas décadas. Também se pode perguntar se em dois anos é possível democratizar um país que viveu sempre sobre dominação estrangeira de países onde a democracia era considerada o pior dos males.
A aprendizagem da Democracia não é fácil e até nos países com anos de experiência democrática, bem interiorizada, há problemas, quanto mais num país construído literalmente a partir das cinzas!
O secretário-geral da ONU considerou ter "havido uma má gestão, incluindo da polícia, e um choque de personalidades".
É verdade tudo isso.
Mas, se a ONU tivesse apostado mais na construção da Nação que ajudou a criar, talvez não tivéssemos chegado a este ponto.
E não apostou mais e melhor porque também geriu mal a administração e a construção da Nação da qual foi poder transitório, ficando-se pela má e atabalhoada reorganização física do país e descurando totalmente a reestruturação psicológica da sociedade que passava, necessariamente, pela conciliação, pelo entrosamento de personalidades para evitar os tais “choques” entre as diversas sensibilidades.
E isto é suficiente para que se diga que também nós, timorenses, ficámos muito decepcionados com a atitude administrativa da ONU em Timor-Leste.

quinta-feira, junho 22, 2006 

O Presidente falou!

Nem este cão de ar desconfiado se deve sentir tão acossado na montanha inóspita que se lhe afigura adversa como os timorenses se sentiram hoje quando Kay Rala Xanana Gusmão, o seu Presidente, lhes falou.
Tocou-lhes fundo a mensagem. Finalmente, falou-se abertamente. Sem meias palavras. Duro, directo, implacável.
E, estupefacto, decepcionado, o povo reage. Com dor e raiva. Porque não devia haver espaço para o medo e a insegurança. Porque não é fácil aceitar que o perigo existe e não faz parte apenas de fértil imaginação popular.
Desta vez, Timor não rimou com rumor!
O Presidente falou.
Depois de tanto sofrimento, da independência tão esforçadamente conseguida e sustentada em fundamental unidade nacional, não devia ser verdade que, no país das nossas esperanças, do nosso futuro, houvesse espaço para o ruir do sonho que animou o nascimento da Nação Timor.
Aqui, não deveríamos sentir-nos acossados por outros tantos de nós. Porque todos nós somos Povo; só que é povo contra povo! Ou quem erradamente manda em nome do povo! Em nome de coisa nenhuma, porque a ambição do poder e de dinheiro de tão vulgar e mesquinha vale zero na tabela da dignidade da alma de Timor-Leste.
Por isso, não deveria ser verdade.
Mas o Presidente falou…

quarta-feira, junho 21, 2006 

Ai, Timor Lorosa´e!




Vivemos num país de enigmas. De mistérios. De rumores.
Da verdade e da mentira, desconhece-se a verdadeira morada. Sabe-se só que andam de mãos dadas!
Ninguém compreende nem concreta nem totalmente o que está a acontecer. Estamos confusos.
Todos se sentem atingidos por algum desconforto, não obstante estarmos no nosso país que, de um momento para o outro, surge estranho, diferente aos nossos olhos.
O dia político esteve hoje muito agitado, quente! Quem de direito discute a demissão do Primeiro-Ministro. Mas o frenesim político morreu nas salas de reuniões. Cá fora, nas ruas, nas casas, a vida arrasta-se… Porque estamos em crise que se arrasta há quase dois meses. E a crise tomou conta de nós. A população está perturbada, inquieta, cansada.
A animação de outros dias não muito longínquos foi substituída por um clima de indisfarçada tensão. Há uma mistura complexa de sentimentos. Descrença, frustração, revolta, desalento. E medo, sobretudo, muito medo que perpassa em cada história contada.
Fala-se a meia voz. Alguns olhares de esguelha, desconfiados, passos de corrida, fazem-nos estugar o andar, acelerar o carro. Alguém que alie a uma aparência suja e desleixada o ar sisudo põe-nos em imediato alerta para o perigo que pode até ser inexistente, inverosímil.
Um ruído, um zumbido, uma coluna de fumo, muita gente, pouca gente, tudo confunde porque tudo são sinais de risco.
As repartições do Estado estão a meio gás, tal como o comércio.
Muitos escritórios privados estão fechados. As lojas atendem os clientes com as portas de ferro meio abertas, prontas a serem cerradas ao indício de um qualquer tumulto.
Nas lojas do bairro de Colmera, próximo do porto de Díli, onde se ouvia música com demasiados decibéis durante todo o dia – no que, aliás, eram bem imitadas pelas microlets* apinhadas de passageiros, de sacos e de animais que atravessavam a cidade de manhã ao fim de tarde - há muito que o silêncio se substituiu ao barulho.
Os refugiados dos diversos campos não escondem a sua inquietação. Repetidamente, confessam que não querem mais sofrimento.
Alguns ainda têm casa. É aí que estão durante o dia. À noite, regressam ao refúgio. Porque a noite feita ave agoirenta é tentadora e solta os demónios travestidos de jovens.
Quando nem a luminosidade dos dias de sol de Timor transmite qualquer brilho ao olhar do timorense, salve-se ao menos o riso das crianças!
Parece que voltámos aos dias sombrios do tempo da ocupação indonésia!
Sentimo-nos perdidos. Estamos na Vida; não desfrutamos da dádiva da Vida. Parece até que desistimos dela, que o país abdicou de viver, de ser país.
E nada deixa transparecer o brio, o orgulho dos timorenses pela sua independência materializada na bandeira nacional desfraldada ao vento ali, na fronteira com a província de Nusa Tenngara Timur, na Indonésia, o verdadeiro Loromonu da ilha de Timor.
Ai, Timor Lorosa´e!

terça-feira, junho 20, 2006 

Mistura explosiva


Areca, bétel e cal. Abre-se bem a folha de bétel, junta-se-lhe a noz de areca, bem seca de um tom castanho-avermelhado, acrescenta-se um pedacito de cal a gosto.
Tudo vem bem acondicionado numa cesta colorida. A minúscula embalagem de prata que traz a cal, deve ter pertencido aos tetravós da família.
Enrola-se o preparado, devagar, porque existe todo o tempo do Mundo. Tudo é feito tranquilamente. Vai-se trocando dois dedos de conversa. A mastigação da mistura faz-se lentamente. Vai-se saboreando.
Explosiva, para quem não está habituado. Arde muito. Mas não tem o sabor do piripiri nem da pimenta.
Estas meninas bem ataviadas, vestidas e penteadas a preceito, oferecem ao som de uma cantoria a acompanhar uma dança de Suai, o que têm de melhor aos visitantes. Por isso, não há espaço para a escusa.
Aceite-se a oferta generosa dos donos da casa.
Mastigue-se muito vagarosamente, ensaie-se um sorriso de quando em vez e tente-se imitar o que se observa à sua volta. Disfarçar, olhando para o ar também resulta! Ajuda a passar o tempo e distrai…
A mistura triturada, bem mastigada, transforma-se numa pequena bola. Há os que escolhem arrumá-la num dos cantos da bochecha. Outros preferem guardá-la do lado superior dos lábios.
Finalmente, assusta um bocadinho ter de cuspir: convém não engolir a saliva! Mas, por favor, não vale a pena entrar em pânico! A boca, a língua, os dentes, ficam vermelhos cor de sangue, mas é passageiro…
E não é considerado feio cuspir para o chão!
Não foi assim há tanto tempo. Em Setembro de 2005, quando o país estava sereno, Suai recebia assim os primeiros visitantes-turistas. Com pompa e circunstância.
Faz parte da cultura timorense. Dos momentos de lazer. Do convívio entre belu sira*. De Lorosae a Loromonu. De Rai Claran a Taci Feto e daqui a Taci Mane.

*belu sira - amigos

segunda-feira, junho 19, 2006 

Dormir? Não, obrigado!


No bairro de Bidau-Massau, as noites nunca mais foram as mesmas.
As noites calmas em que apenas se ouviam a espaços esses barulhos vulgares de uma cidade onde as pessoas se deitavam com as galinhas como o cri cri dos grilos, o cocorococó de um galo, o ladrar de um cão, a motorizada de um noctívago, o trinar de uma viola solitária ou até mesmo uma altercação familiar passaram à história.
Agora os homens não dormem. Dormir, passou a ser um luxo apenas permitido às mulheres e crianças.
José diz que durante o dia não há problemas, à noite é que é mais complicado! E isto porque os jovens do bairro, receosos dos ataques nocturnos dos bandos de marginais que continuam a semear o terror, entenderam ser seu dever zelar para que os homens se mantenham bem acordados!
E assim, se por acaso se faz silêncio – sinal de que alguém está a passar pelas brasas - chovem pedradas (das grandes, acrescenta o José) trazendo um alvoroço escusado a todas as casas; se o prevaricador continuar a transgredir dormindo sem permissão da guarda avançada, pode até acontecer que a casa venha ser incendiada…pelos do bairro, como castigo!

Quando lhe é perguntado se alguém pode viver neste sobressalto noite após noite, José até consegue sorrir quando explica que são regras necessárias que visam apenas o bem comum!

domingo, junho 18, 2006 

Arco-íris e sombras em Timor-Leste


Aqui, em Comoro, mais concretamente nas Aldeias 30 de Agosto, 4 de Setembro e Terra Santa, os últimos dias pareciam mais calmos.
Os militares malaios que percorrem a pé os bairros, de metralhadora em punho, tornaram-se habituais bem assim como o som dos tanques, dos jeeps, dos carros blindados e dos helicópteros que começam a tornar-se comuns no dia-a-dia deste lado da cidade.
Distintos são os sons do zinco a ser levantado do telhado, ou as vozes um bocado alteradas pela pressa com que se recolhem mobília, portas, janelas, tudo coisas a serem aproveitadas por quem já é apelidado pela população das casas roubadas, destruídas e incendiadas, como os novos donos dos seus bens.
O caminho que vai da encosta onde está situado o antigo depósito de água que abastecia esta zona da cidade ao outro lado da montanha no sentido da ribeira de Comoro, tem sido percorrido todos os dias por grupos de famílias, adultos e crianças, que se entretêm a apoderar-se do que é não seu, do que foi deixado para trás na fuga para leste por outras famílias tão pobres quanto eles.
Mas, ontem e hoje, percebeu-se alguma movimentação diferente do que já está a tornar-se rotineiro. De madrugada, depois do jogo entre o Gana e a República Checa transmitido pela RTTL, dois veículos militares passaram a grande velocidade para o sopé da montanha, um bocado mais para os lados de Rai Kotuk, do lado de cá de Taci Tolu.
Hoje, o fim de tarde que caía aparentemente calmo foi quebrado pelo som de tiros que repentinamente, se fizeram ouvir. Sem poder garantir, pareciam vir de Manleuana, do outro lado da ribeira. Mas já houve quem afiançasse que os tiros tinham sido na Pertamina, lá para os lados da Avenida de Portugal.
Olhei para o depósito da água e lá estavam uns vultos. Não sei se eram militares. De um momento para o outro surgiram três carros blindados abarrotados de militares dirigindo-se para a colina onde despejaram os homens que a pé iniciaram a subida até onde se encontravam as sombras.
Entristece-me não poder sequer apreciar o fim de tarde na minha varanda. Detesto sentir receio por algum tiro perdido.
A noite caiu, mas ainda tive tempo de fotografar o arco-íris que cortava o céu. Ao sentimento misto de tristeza e angústia que a hora crepuscular sempre me provoca juntou-se o desencanto. Pela falta de paz, pela insegurança e muito, pela incapacidade colectiva de nos deliciarmos, de desfrutarmos o que o nosso país nos oferece - cada pedaço de terra em Timor-Leste é um regalo para os olhos! -,sem termos de despender nada, a não ser respeitarmo-nos mutuamente, coexistirmos pacificamente e fazermos, todos juntos, aquilo que aqui se diz por tudo e por nada – e, que sendo sério, de tão vulgarmente repetido se tornou uma banalidade - que é “ construir a Nação”.

sábado, junho 17, 2006 

Mundial

É de louvar o esforço da RTTL através da qual os aficionados de futebol - que não têm acesso à televisão por cabo - podem seguir os jogos do Mundial. Dizia o Nélio Isac que esperava com isso contribuir para alguma distracção da população nestes dias difíceis que vivemos.
Com os saques a vários bairros da cidade, nem todos têm televisão. Também não é possível fazer a festa como aconteceu aquando do Euro 2004. Mas, estou certa de que, à boa maneira timorense, quem não pode junta-se a quem pode e segue atentamente os jogos.
Portugal, Angola e Brasil captam as maiores simpatias dos timorenses, adeptos de Ronaldo,Deco, Figo, Pauleta... entre outros.
Cá por mim, hoje fiz uma pausa nas minhas angústias relativamente à situação actual do meu país timorense e substituí-as pela angústia do futebol em que joga o meu país português. Sofro, treino da bancada - que é quem como diz, do sofá da minha sala - grito, levanto-me, enervo-me, viro a cara... enfim, essas coisas algo sem nexo que fazem os doentes da bola!
E vou fazer uma pausa aqui, porque quero continuar a ver o jogo.
Até amanhã!

sexta-feira, junho 16, 2006 

Pontiana, ou a mulher-pássaro

Em Timor tudo tem uma razão de ser. E tanto faz que a razão seja lógica ou ilógica. Tudo tem explicação e nada é obra do acaso.
Diz a lenda que a Pontiana ataca pela calada da noite e, de acordo com a voz do povo, toma a forma de uma bela mulher.
Quando eu era garota lembro-me de que os timorenses a viam uma criatura branca, de loiros cabelos compridos. Já os malais a viam morena, de longos cabelos lisos, negros.
Estonteados pela sua beleza, os homens perseguiam-na e tentavam agarrá-la mas, quando chegavam à sua beira, a mulher desaparecia ou então, apenas era visível do pescoço para cima. Tudo o mais se esfumava, se tornava invisível. Por esse motivo, nunca ninguém soube se a Pontiana era alta ou baixa. Mas lá que era bela…
Eram igualmente comuns os relatos de que a mulher desaparecia nos muros do cemitério que estivesse mais próximo.
As aparições da Pontiana ocorriam sempre altas horas da noite, normalmente quando o homem estava já um bocado alegrote com um copito a mais do que a conta…
Aos homens, a Pontiana, consciente das suas fraquezas, entontece-os; às mulheres grávidas e às crianças faz-lhes muito mal.
De noite, uma mulher grávida não sai à rua se não levar na mão um objecto pontiagudo, de preferência uma tesoura que é o único remédio para vencer os malefícios da Pontiana. Porque se a grávida estiver desarmada quando a malvada ataca, perde-se o bebé.
A mulher Pontiana quando não desaparece nos muros do cemitério, transforma-se em pássaro, cujo piar triste arrepia quem a ouve. É mau agoiro o seu cantar...
Embora as histórias das suas aparições se circunscrevessem a Díli, passado algum tempo, a mulher-pássaro alargou o âmbito da sua acção e passou a fazer parte das crenças e dos terrores dos habitantes da montanha, onde as noites são frias, o nevoeiro é uma constante e as flores são mais perfumadas e crescem de forma pujante, enchendo as encostas de várias tonalidades.
Em dias de quietude, se o aroma de uma flor se torna mais intenso, é sinal de que a Pontiana anda nas proximidades. Traz desgraça, quase de certeza e é impossível escapar à sua acção.
O Carlos e a Maria tinham um bebé. Um dia, ouviu-se o piar triste da Pontiana, ao mesmo que se intensificou o aroma das gardénias do jardim. Os pais perderam a esperança de ver crescer o filhinho embora tivessem tentado com raízes e mezinhas curá-la do resfriado, quando ouviram o piar da Pontiana. Chegara o sopro da morte e a ele era impossível fugir. A criança finou-se naquela noite, ao mesmo tempo que o piar do pássaro se afastava quiçá em busca de nova presa.
Hoje, na rádio e na televisão de Timor-Leste, uma mãe preocupada dava conta das más condições em que vivem os refugiados. A poeira, uma vez que acabou a época das chuvas, é muita e as noites são agora mais frias. As crianças estão mal alimentadas e, como dormem no chão, adoeceram, estão constipadas e com tosse.
A pobre mulher desesperada apelava aos “nai´n ulun sira” que resolvessem depressa este conflito que se arrasta há quase dois meses.
Uma noite destas, pela calada, a Pontiana vai surgir de rompante, aproveitando a aragem fria que se faz sentir e vai ceifar a vida de centenas de crianças inocentes que continuam a brincar despreocupadamente alheias ao perigo que as espreita…

quinta-feira, junho 15, 2006 

Os novos dias de Díli

Díli continua a ser uma cidade sem ordem e parece estar a ser difícil sair do caos.
Na ponte de Comoro estão as forças da Malásia inspeccionando cuidadosamente os veículos que se dirigem para a cidade. Passam revista, perguntam se transportam armas e, às vezes, até pedem os documentos do carro. O esforço é louvável e, se não houvesse quem fugisse da bicha formada pela pertinente actuação dos malaios e atravessasse a ribeira, talvez pudéssemos acrescentar eficiência e eficácia a essa diligência. Assim fica-se com a impressão de que estamos perante uma tarefa incompleta.
As ruas da cidade são relativamente estreitas, pelo que em várias delas havia apenas sentido obrigatório para tornar o trânsito mais fluído. Com a confusão, “acabaram-se” os sentidos proibidos que foram simplesmente “esquecidos”, o que obriga a um esforço suplementar de atenção do condutor. Também se poderia pensar que são apenas os “indisciplinados” dos timorenses a virar tudo do avesso. Mas a verdade é que muitos estrangeiros, alguns dos quais em carros oficiais, fazem precisamente o mesmo, desrespeitando e ignorando os sinais de trânsito.
Já que a situação está a normalizar-se e a cidade está pejada de homens a pé ou transportando-se de jeep, de camiões e de tanques, não seria altura de se contribuir para a normalização? É que, ainda por cima, essa tarefa não exige dureza, apenas determinação!
O mercado de Comoro foi completamente vandalizado. Os sinais da razia estão lá para quem queira ver.
Mas, porque a vida continua e é necessário recomeçá-la, multiplicaram-se pequenos bazares de rua um pouco por toda a cidade, em particular nas zonas com maior segurança, embora à multiplicação não corresponda nenhum aumento de compradores. O dinheiro escasseia…
A população refugiada continua assustada. A somar à perda de suas casas, como ainda hoje alguém contava, os prevaricadores depois da obra feita fizeram-se refugiados e introduziram-se nos vários campos da cidade, o que, logicamente, não deixa ninguém descansado.
Ao desassossego que acompanha uma qualquer conversa, surgiu um dado novo a reter. É que aqueles que se sentiram perseguidos por serem de uma ou de outra zona geográfica do país, começam a pensar que o melhor é regressarem aos seus distritos, contribuindo com o seu trabalho para o desenvolvimento local.
Contam-se muitas histórias. Talvez que a cada conto se acrescente um ponto. De qualquer forma, hoje, tal como em 1999, os ingredientes das histórias são os mesmos. Desgraça, morte, fome, doença, intriga, vingança, roubos e destruição são pontos repetidos em todas as histórias. Para além de muita vergonha a que se junta a raiva por se ter desbaratado o capital conseguido durante os longos anos de resistência que fizeram dos timorenses um povo respeitado e admirado em todo o Mundo.
A diferença é que, se em 1999 a luta era para se ganhar a independência, hoje existe o sentimento comum do receio da perda de soberania.

quarta-feira, junho 14, 2006 

A rua como sala de visitas


Ainda não tinha visto a crise timorense do lado de quem chega ao país, até que, hoje de regresso de Denpassar, Bali, aonde fui por dois dias, se me deparou um cenário triste, de guerra.
A época das chuvas já terminou, mas ainda não é tempo de ver a paisagem com os tons normais da época seca. No entanto, o tom verde-seco-acastanhado dos camuflados tomou conta da paisagem à beira-mar, onde se situa o aeroporto.
Mal se aterra, vêm-se a pista repleta de helicópteros e, um pouco mais longe, enormes tendas, jeeps, tanques e homens. Militares armados que ocupam também o caminho empedrado que nos levava em tempo de paz à sala de chegada e onde agora eles descansam estirados em camas de campanha sob o sol escaldante do meio-dia, vermelhos, afogueados do calor e com uma garrafa enorme de água sempre por perto.
E, depois, bem, depois, apenas a apresentação dos passaportes se faz em recinto fechado. Porque tudo o mais foi transferido para a rua.
A sala de chegada do aeroporto, está transformada num refúgio da força australiana; desconheço se é dormitório, se são escritórios ou a sua sala de visitas.
Havia necessidade? Tenho as minhas dúvidas.
Recolhida a bagagem colocada no chão, apresentam-se os documentos habituais para quem chega a um país estrangeiro a funcionários que, apesar de tudo, no meio da confusão, sempre conseguem sorrir e cumprir as suas funções.
Parece que qualquer vistoria a uma qualquer mala, se necessário fosse, obrigaria a que essa tarefa fosse feita ao ar livre. Ou seja, porque “desapareceram” as instalações próprias para esse efeito entra tudo, sem controlo.
Mas, já anteontem, reparei na confusão do lado de quem parte. Os militares, sempre-armados, entram, passeiam-se pela sala – sim, do lado das partidas ainda há sala - apreciam o movimento, vão à loja duty-free e desaparecem. Regressam daí a pouco para cumprir o mesmo ritual do sempre-armado entra, espreita, passeia, olha, desaparece, ao mesmo tempo que as crianças cumprem a sua quota parte nas tarefas “caseiras” de minorar o sofrimento de quem está há tempo demais refugiado sem condições nenhumas, indo buscar água num sujo garrafão de plástico a um qualquer canto de um qualquer compartimento do aeroporto.
No átrio, a confusão ainda é maior. Misturam-se os passageiros, as pessoas que os esperam e, claro, os refugiados, que assim se vão distraindo dos dias ainda mais amargos em que as suas vidas se transformaram.
Ao longo da via que dá acesso à rotunda , instalou-se um mercado onde se vendem legumes - pouco frescos, é verdade - e fruta, substituindo os espaços cobertos de lona rota de todas as cores que ainda anteontem abrigavam os refugiados. Estes, foram transferidos para o campo que fica contíguo ao aeroporto. Nas novas tendas brancas, as centenas de refugiados cozinham, dormem e convivem . Até se riem! No novo acampamento, não há árvores, não há sombras. Não sei se há água.
Aqui, no bairro onde moro, o de Comoro, no pedaço por conta dos militares malaios, continuam os incêndios no resto das casas vazias que teimam em não arder.
O Presidente da República discursa no Parlamento, diz que não é tempo de apontar culpados porque há outras prioridades, mas vai acrescentando que as forças internacionais ficarão mais tempo do que se supunha. Em causa, as armas perdidas pelo país.
No mesmo dia, em Nova Iorque, Kofi Annan declara que não haverá forças das Nações Unidas senão daqui a seis meses e de seis meses a um ano, diz o secretário-geral da ONU, as forças da Austrália permanecerão no país.
Estou em crer que a crise está para durar!
Gostei de saber por Kofi Annan que a ONU reconhece ter saído demasiado cedo e que a comunidade internacional não apoiou adequadamente, de modo sustentável, o processo de construção timorense”.
Por outro lado, não quero deixar passar o facto curioso que faz de Timor outrora filho do Império que Salazar defendia, filho, hoje, da comunidade internacional. Assistimos a um originalíssimo processo de adopção no qual há apenas uma nuance porque de Timor passou a Timor-Leste.
O nosso novo pai-mãe, essa comunidade internacional também se preocupa connosco e aprendeu (diz Annan ) com o “preço doloroso para Timor-Leste que a construção de instituições na base de princípios fundamentais da democracia e o primado da lei não é um processo simples que possa ser completado em poucos anos".
Estou comovida!
Devo acreditar que a vida dos timorenses vai melhorar?
Será que posso perguntar se continuará a haver refugiados a viver em condições miseráveis e se, quando recomeçar a época das chuvas, a sala de visitas de um qualquer país que é o seu aeroporto, vai continuar na rua?

terça-feira, junho 13, 2006 

Amor em tempo de cólera

Tomo de empréstimo o título de Garcia Marquez para contar a história do meu casamento no passado dia 10 de Junho, que para os portugueses em geral é o dia de Portugal, de Camões ou das Comunidades Portuguesas, mas para mim é a data em que celebrei a minha união com Fernanda, a mulher maravilhosa que encheu de felicidade a minha vida. Os caríssimos leitores destas palavras que me perdoem a imodéstia de vir para aqui contar coisas do meu enlace matrimonial. Parece-me no entanto que esta história reflecte um pouco o ambiente dos tempos que correm, e de certa forma dá até uma imagem da história conturbada de Timor-Leste.
O início do conto é como o de todas as narrativas cor-de-rosa, o meu pobre coração ferido e cheio de ligaduras começou a bater mais mais forte por causa de uma certa beldade de olhos meigos e sorriso tímido, e uns tempos depois lá estava eu em Liquiçá para explicar aos futuros sogros que queria casar com a filha deles. Não mandei mensageiros ou enviados como é tradição por cá, fui com a minha namorada e os familiares com quem ela vivia em Díli, e enfrentei o desafio sozinho, de maneira franca, como gosto de fazer. O meu futuro sogro conduziu a conversa, a sua esposa algures lá para dentro da casa, tal como a minha namorada, enquanto eu era submetido ao “interrogatório para averiguações”. A conversa decorreu amena, sobre coisas como os valores familiares e a responsabilidade de um marido, mas era entrecortada de cinco em cinco minutos por uma pergunta algo ansiosa: então e é mesmo solteiro? Não era à toa que esta interrogação se repetia, muitas timorenses viveram histórias de amor com desfecho infeliz com malais que tiravam a aliança do dedo ao chegar ao aeroporto de Díli, para que esta não fosse um obstáculo aos seus “amores de férias” ou às relações que duravam enquanto durasse a comissão de serviço, por vezes sem que as envolvidas tivessem consciência de que o seu idílio amoroso era a prazo. Os timorenses repetem frequentemente uma expressão que já vem do tempo da administração colonial portuguesa: “Malae sa’e ró, timór sa’e rai” (algo como “O malai embarca, a timorense fica em terra”).
Ultrapassada a fase de inquérito sobre a natureza das intenções do candidato a genro, marcámos a data do casamento, a realizar, naturalmente, na paróquia da noiva, lá em Liquiçá. Escolhemos para padrinhos um casal meu amigo de há muitos anos, timorenses crescidos no exílio, ele em Portugal, ela na Austrália, companheiros de actividades no âmbito daquilo a que se veio a chamar a Frente Diplomática, ele também colega de residência durante os dois anos em que fui acolhido na casa dos ex-seminaristas timorenses no bairro social de Laveiras, perto de Lisboa. Tivemos que adiar a data de casamento uma semana porque no dia programado originalmente o padrinho iria estar ausente, em Genebra, numa viagem de trabalho. Entretanto soltaram-se em Timor os demónios adormecidos ou em semi-sonolência, e os planos para o casamento tiveram que ser alterados. Mantivemos a data entretanto re-marcada, 10 de Junho, mas não pudemos imprimir convites porque na altura de o fazer todo o comércio em Díli estava fechado e as pessoas confinadas às suas casas ou a campos de deslocados (refugiados na sua própria terra), enquanto grupos armados andavam aos tiros uns aos outros na capital d”o mais novo país do mundo”. Fomos a Liquiçá falar com o pároco para mudar a hora da cerimónia. Em vez de ser, segundo a tradição, à tarde e seguida de um banquete e baile durante a noite toda, optámos pela missa de casamento de manhã e depois um almoço para família e amigos próximos, porque a quase-entidade fantasmagórica a que se chama nas conversas em sussurros “a situação” cobre tudo como um manto de trevas, criando um ambiente que não dá para grandes festas. Os meus amigos e da noiva naturais de zonas do leste disseram-nos logo que tinham pena mas não poderiam ir por terem medo de se deslocarem a uma região do ocidente do país nestes dias de ódio irracional que vivemos actualmente. O grupo musical que iria tocar no casamento, amigos meus, tem os elementos dispersos pelos refúgios para onde a fortuna os empurrou. Os padrinhos originais fugiram para o estrangeiro, como fizeram muitos dos timorenses com passaportes de Portugal ou da Austrália. Aceitaram simpaticamente o convite para padrinhos alternativos os tios da noiva com quem ela tem vivido nos últimos anos em que tem estado a estudar na universidade em Díli, Tai Kiu e Kiu Mé. Decidi com a minha namorada que seria melhor irmos para Liquiçá na quinta-feira, dia 8, para estarmos já lá no caso de haver algum grupo a decidir cortar a estrada na data em que casaríamos. Entretanto, no bairro da Cooperação Portuguesa, onde tenho um quarto devido ao meu vínculo contratual com a Fundação das Universidades Portuguesas, pediram-me que aproveitasse a boleia de um grupo de GOEs que iria deslocar-se a Liquiçá com professores do Ministério da Educação português que ali tinham trabalhado e que iriam buscar as suas coisas. Os GOEs, da forma simpática e profissional a que nos têm habituado durante estes dias agitados, foram levar-me mesmo a casa da noiva, para conhecerem o caminho no caso de vir a surgir alguma situação perigosa na área que levasse a que tivessem que ir resgatar-me, o que implicou meterem os carros no leito da ribeira que dá acesso à casa dos meus sogros, num recanto meio escondido dos montes, e fez da minha chegada um sucesso, devido à escolta, dando-me a aparência de alguém importante no mundo dos malais (o que está bem distante da realidade...). Poucos conhecidos ou familiares meus ou da noiva residentes fora de Liquiçá puderam ir ao casamento, “devido à situação” (a minha família não poderia de qualquer forma porque é muito longe e muito caro vir de Portugal para aqui), mas mesmo assim pude contar com a presença de dois grandes amigos, a São e o Uka. Para mim foi uma festa bonita, porque com “situação” ou sem “situação” foi a comemoração do meu casamento com a Anoi (nome de estima da Fernanda entre os familiares).
A família da minha esposa é um pouco como que um símbolo dos dramas que têm ensombrado a vida dos timorenses. A mãe dela é chinesa timorense, filha biológica de um japonês aqui estacionado durante a Segunda Guerra Mundial. Casou com o pai da Fernanda, timorense de língua tocodede, e tiveram quatro filhos. Na altura da invasão indonésia foram para o mato, para as áreas controladas pela Fretilin. Os quatro filhos que tinham morreram todos. De doenças, de subnutrição, das precárias condições de vida durante aqueles agrestes anos de guerra. Depois de se renderem aos indonésios iniciaram de novo a vida, tiveram mais cinco filhos, a minha mulher é a segunda mais velha destes. A irmã mais nova dela é uma viúva com um filho bebé, porque o seu namorado morreu durante a gravidez, vítima de hepatite B, que a vacinação é um luxo de países ricos. Felizmente quer ela quer o filho de ambos estão saudáveis. E todos enfrentam a vida com um misto de esperança e resignação que faz espantar um observador exterior.
Eu e a minha mulher, por nosso lado, estamos agora no início de uma nova jornada nas nossas vidas, de olhos postos no horizonte, no sol que se vislumbra lá ao longe, para lá das nuvens escuras que ainda persistem no céu azul de Timor. E caminhamos com esperança.

domingo, junho 11, 2006 

As mágoas de Anito Matos


A situação faz lembrar 1999. Se bem que a Clotilde entenda que “o que está a acontecer agora é muito pior do que foi nesse ano, porque, naquele tempo, sabíamos quem era o inimigo. As milícias actuavam obedecendo aos indonésios. Hoje, é diferente. Não sabemos quem são os nossos inimigos, onde estão e quem manda nos que fazem estas asneiras. Só sabemos que são timorenses, como nós. Somos nós a fazer mal a nós próprios.”.
O medo e a insegurança assumem uma dimensão talvez desmesurada mas justificada. Aqui, todos desconfiam de todos. A par da vergonha colectiva
por não se ter conseguido resolver os problemas de forma pacífica, este é o sentimento que manifestamente mais incomoda a população desencantada com o rumo que as coisas tomaram.
E, cada um, tal como em 1999, tem uma história, um drama para contar.
O Anito Matos é das figuras mais populares de Timor-leste. É jornalista, cantor e animador de todo o género de festas
- de casamentos e baptizados a cerimónias oficiais, dirigindo-se à assistência em qualquer uma das quatro línguas utilizadas em Timor-leste, privilegiando o tétum e o português.
Bom comunicador, observador atento, tinha um programa na Rádio FALINTIL onde, todas as manhãs, contava histórias deliciosas, dava a voz aos ouvintes, escutava as suas queixas (criando por isso algumas inimizades) e transmitia palavras de alento. Mais tarde
no jornal Lia Foun* escrevia sobre as “Vidas de um Povo”, dando a conhecer as dificuldades das classes mais desfavorecidas do país.
Até foi a Lisboa, a sua máxima aspiração, a um encontro de jornalistas!
Um dia, o programa acabou, o jornal suspendeu a sua publicação mas o Anito continuou como animador de festas.
Quando percebeu que a situação estava a deteriorar-se, o Anito, que tinha algum dinheiro depositado no banco, entendeu que devia levantar as suas economias e deixá-las em segurança em casa, no bairro de Surik Mas.
Dois dias depois, assaltaram-lhe a casa, roubaram e destruíram tudo. Até os seus fatos de cerimónia! E o Anito conta desolado que ficou sem nada.
O ambiente não está para festas e sem elas, a vida torna-se ainda mais difícil para o Anito que não tem como se virar. A não ser, como diz, socorrer-se da ajuda dos amigos, tão desgraçados, tão pobres e tão perdidos como ele, a viver num dos muitos campos de refugiados de Díli. Ali mesmo, espantam os seus males, cantando ao som da viola e esperando por dias melhores pelos quais todos anseiam mas, desgraçadamente, ninguém acredita que os haja a curto prazo.
Nem as crianças jogando à bola na praia, prenúncio de alguma normalidade na cidade, arrancam um sorriso ao Anito.
Sem ninguém que transmita as suas mágoas a somar a outras tantas mágoas de tantas outras vidas do povo
a que pertence, os olhos de Anito Matos enchem-se de lágrimas. E os meus, também.
De raiva e de impotência.

*Lia Foun – Nova palavra

sábado, junho 10, 2006 

Ritos timorenses

A crise instalou-se . A vida afigura-se cada dia mais difícil.
Dos que vivem fora de suas casas, provavelmente a maior parte deixou de a ter. Não se atrevem a regressar.
Ninguém sabe o dia de amanhã. Sabem que estão vivos e, apesar de todos os contratempos, mantêm-se fiéis aos seus costumes.

A vida…

Embala o filhinho recém-nascido de quem não despega o olhar embevecido e vive na rua desde que começaram os conflitos.
No quintal onde se amontoam outros refugiados, ainda havia lugar.
Só que ela queria privacidade. Queria deleitar-se com o seu bebé!
Faz sentido, porque a crise era exterior, não residia no seu coração e todo o tempo é pouco para gozar o encantamento que o seu bebé ainda sem nome lhe trouxe.
E, por isso, deixou-se ficar do lado de fora do muro.
E arranjou uma lona que faz de telhado, uma caminha improvisada a que não falta um mosquiteiro (que os mosquitos são muitos!), duas tábuas de triplex que fazem as vezes de parede.
E alimenta-se o melhor que pode para dar de mamar ao seu bebé. É que o leite tem mesmo de ser forte porque, com tanto mosquito, o bebé ainda sem nome tem de ser suficientemente robusto para afastar o perigo da malária.
Apesar das circunstâncias adversas, - ao fim de uma semana de vida como, aliás, mandam as regras - o bebé ainda sem nome teve direito a uma pequena cerimónia de boas vindas, simples, porque os tempos estão difíceis e não havia dinheiro para se fazer uma festa, como merece um recém nascido!
Arranjou-se uma bacia de água, onde se deitaram moedas de diferente valor, reuniram-se a família, os amigos e deu-se início ao rito de “fase matan”. Todos, menos o bebé ainda sem nome, lavaram a cara, em especial os olhos.
Os maus espíritos ficaram na água suja. Abriu-se o caminho do futuro, para uma vida livre de escolhos que todos querem para o bebé ainda sem nome!

…e a morte

Odete, uma jovem que vivia numa das zonas mais complexas da cidade, estava gravemente doente há muito tempo e foi a enterrar quase sem acompanhamento porque o êxodo, a insegurança e o medo reduziram ao máximo a presença de familiares, de amigos e de colegas.
Praticamente sem cortejo, sem flores, sem ladainha nem choro colectivo de quem sente a partida de alguém querido, demasiado simples, assim foi o seu enterro.
Mas, se faltou a refeição de agradecimento oferecida pela família a quem assistiu ao enterramento e acompanhou os familiares na dor, apesar de tudo, não faltou a bacia de água defronte da sua casa, onde aqueles que a acompanharam à sua última morada lavaram as mãos, aspergiram a cabeça, deitando algumas gotas de água para trás das costas, gesto necessário para deixar a doença e a morte bem longe de si e da casa.
De alma lavada, renova-se a Vida!
Não houve aifunan moruk (1) , mas a família espera que a situação melhore, porque tem de haver aifunan midar (2). Para que a alma de Odete fique em descanso e tome conhecimento de que, mesmo depois de morta, não foi esquecida.
(1) aifunan moruk – Flores amargas – deposição de flores ao 7º dia da morte
(2) aifunan midar – Flores doces – deposição de flores ao 30º dia da morte

sexta-feira, junho 09, 2006 

Violência e Ignorância

A eclosão do conflito virou do avesso a vida da quase totalidade da população timorense que, face à desordem instalada, se viu obrigada a procurar refúgio seguro.
Os jornais e as rádios também não escaparam ao caos, não só porque os jornalistas também precisaram de proteger-se da loucura que varreu a cidade, como também deixou de haver condições de segurança para que pudessem fazer o seu trabalho.
Mas, se os jornais diários suspenderam a sua publicação, já as rádios locais foram adaptando a programação de acordo com as circunstâncias.
Na Rádio Nacional de Timor-Leste, ouvem-se os comunicados e os avisos oficiais e faz-se diariamente, pelo menos uma vez , a ronda pelas capitais de distrito. Porém, a maior parte do tempo é ocupada com música, que também varia de acordo com o clima político do momento.
Quando se ouve música cuja temática versa o amor, seja em tétum ou em português de Timor – com muito violino e muitos requebros na interpretação -, em português de Portugal, Brasil ou PALOP, em inglês ou bahasa indonésio, então o céu está azul, sem nuvens e adivinha-se um clima de serenidade na cidade!
Se, pelo contrário, a emissão diária é ocupada com música de intervenção timorense, aí, adivinha-se mudança brusca de clima. Temos tempestade, pela certa!
Nos casos menos graves, trata-se de simples avisos públicos mas, a maior parte das vezes, é sinal de que se segue um comunicado importante sobre a situação.
A rádio transmite o estado de espírito da população e procura cumprir bem a sua missão quando nos sucessivos apelos à paz e ao entendimento, emite canções sobre a unidade, nas quais se verte muito choro trinado à volta de Timor-Leste, da jovem nação independente, ou se grita pelo “povo maka terus” (1) e, por isso se conclui que “horas too ona (2).
Uma voz irada, exaltada, abafa a canção sobre a unidade para explicar a razão da sua zanga. Do seu desencontro com a Vida porque“ Timor-Leste precisa de paz. Mas há ignorância e violência. A violência é um mal, é uma doença que anda de mãos dadas com a ignorância. E eu sou um ignorante e por isso sou violento”.
(1) povo maka terus – O povo é quem sofre
(2) horas too ona –É chegada a hora

quinta-feira, junho 08, 2006 

Oh, gente da minha terra!


O Hermenegildo tem os olhos raiados de sangue. Está cansado. Há duas semanas que mal dorme. Faz parte do grupo de vigilância de bairro de Bidau Massau e, para não faltar ao trabalho, ficou com o turno da noite.
Entre adultos e crianças são onze pessoas em casa. Há que guardá-la. O Hermenegildo vela pela família inteira e como é o único que tem emprego, tem de assegurar o sustento da mulher, do filho, dos pais e dos irmãos mais novos.
José é porteiro de um hotel. Já não é novo. Mas, desde que a crise começou, envelheceu visivelmente. Está preocupado com a família. Mora em Aimutin. Esteve deslocado. Despois, voltou para casa. Até agora, ainda nada aconteceu aos seus, mas os rapazes continuam a desestabilizar o bairro, diz, não se escusando de comentar logo de seguida que os “na´i ulun (1) têm de se entender, porque se não, somos nós, povo kiik(2) que sofremos”.
Maria, empregada de um supermercado, vive em Fatuhada. Vai dizendo que não aguenta mais a pressão. Está exausta. “Não durmo”, diz, porque “Na primeira semana, foram os tiros. Agora, todas as noites os oiço na rua, numa louca correria, amedrontando-nos, à espreita de um momento de distracção para queimar e roubar”.
O pequeno vendedor de tangerinas sorri, satisfeito por realizar, finalmente, algum dinheiro. E desabafa que perdeu a mercadoria toda que havia trazido de Lekidoi na primeira semana dos conflitos!
O Silvino não perdeu nada, conta, mas sente-se envergonhado pelo que está a acontecer. “Somos nós que estamos a matar-nos uns aos outros! Somos nós que queimamos, que roubamos! Quem irá, agora, acreditar em nós?”
O jardim à frente do porto alberga sob a sombra das suas árvores muitos deslocados. Muitas crianças adoeceram por dormirem ao relento. Mas sorriem, apesar de tudo! Ali, no jardim, tal como na Igreja de Motael, o gradeamento transformou-se num imenso estendal de roupa.
De repente, fica-se com a impressão de que se não se pode lavar a dor e a vergonha pelo desvario de outros timorenses, pelo menos, lava-se a roupa!
Díli é uma cidade diferente, mais suja, quase deserta, desordenada cheia de homens de camuflado, bem armados, fazendo a segurança a pé ou nos tanques de guerra.
Tudo isto intimida e entristece. E recorda-nos, a cada momento, que a sensação de sermos perseguidos na nossa terra, pela nossa gente não é apenas impressão. É a dura realidade.
O porteiro tem razão! É bom que os na´i ulun se entendam!

(1) na´i ulun –líder, liderança
(2) kiik – pequeno

quarta-feira, junho 07, 2006 

Será o petróleo maldito?


A história da existência do petróleo de Timor faz parte das minhas recordações de garota. Abria-se um furo, o petróleo jorrava com força mas, logo de seguida, fechava-se o furo.
Havia duas versões para tal:
Uns, diziam que não havia petróleo em quantidade suficiente.
Outros, defendiam que Salazar preferia que não se propagasse a ideia de que Timor era rico, pois isso poderia ser mau para a “província”, atraindo as atenções externas e, por isso, deveria fazer-se de conta de que ele, o petróleo, não existia. Pensava-se que ele, o petróleo, poderia trazer a guerra.
E assim fomos sobrevivendo, sem guerra e à míngua, sempre de mão estendida pronta para os excedentes de outras “províncias” mais ricas, limitada pelo exíguo orçamento anual da província, pobre, cada vez mais pobre, mas amada, província profundamente filha amada do Império português que se estendia do Minho a Timor.
Esta foto ilustra justamente um desses furos abertos e fechados em Suai.
Morreu Salazar. Finou-se o Império.
Somos independentes e sabe-se que somos potencialmente ricos. Temos petróleo!
Agora que surge a hipótese, mesmo longínqua, de deixarmos de ser pobres, repetem-se as crises, os conflitos, a insegurança. Não tarda, estão a dizer-nos que não vamos saber gerir as nossas riquezas. Ou que os terminais de gás nunca poderão ficar estacionados aqui em Timor-Leste.
Mas, então, estaremos condenados a viver de esmolas eternamente?
Não queria nada, mesmo nada, ter de reconhecer a razão a Salazar! Prefiro acreditar que foi sua maldição!

terça-feira, junho 06, 2006 

Partilha

As casas da encosta por detrás da minha, não têm vivalma, tal como as que ficam aqui defronte e que sobraram da fúria dos jovens sôfregos de fogo. Na noite escura, apenas o ladrar dos cães corta o silêncio do bairro.
Numa entrevista à RTTL (Rádio e Televisão de Timor-Leste), o padre José António incentivava a população a regressar para suas casas, ao mesmo tempo que dizia entender o motivo por que o não faziam. Dizia ele que devia ser duro encontrar o bairro vazio, sem nenhum dos vizinhos, silencioso e, quase de certeza, vandalizado. No entanto, acrescentava que era necessário “fiar ida ida nia an rasik”,ou seja, ser auto-confiante, acreditar em si próprio e enfrentar a realidade.
A propósito desta pequena conversa, lembrei-me da Lurdes.
É uma mulher ainda nova. O marido desapareceu em Setembro de 1999, logo a seguir ao referendo de 30 de Agosto. A Lurdes já aceitou que ele morreu. Tem seis filhos, o mais velho dos quais é bastante doente. Ela trabalha duramente para conseguir sustentá-los, pagar a escola, a luz, a água.
Desde 28 de Abril passado que a Lurdes tem o quintal cheio de refugiados, quase setenta, dos quais a maior parte veio de Comoro e de Rai Kotuk, que fica próximo de Taci Tolu.
O que comem? Arroz, quando há. Se não há, talvez recorram a um copo de água. É que, como dizia outra senhora, a água também mata a fome…
A ajuda oficial ainda não chegou, mas os vizinhos, acrescentou Lurdes, vão ajudando.
A Lurdes não se queixa da sorte. Nem mesmo quando diz que deixou de ter “pulsa” na electricidade que é o mesmo que dizer que ficou sem energia eléctrica. E como a energia é pré-paga e ela não trabalha há quase um mês...
O problema é que os refugiados não têm para onde regressar. Em Comoro, continua o desvario e a piromania - e em Rai Kotuk, onde as casas foram incendiadas nos tumultos de Abril, não houve tempo para a sua reconstrução.
Aos refugiados não lhes sobra ânimo para “fiar sira nia an”, acreditar neles próprios.
Mas contam com a Lurdes que não perdeu nem o dinamismo, nem a auto confiança e menos ainda a vontade de ajudar quem precisa, partilhando o pouco que tem. O pouco que se esvai por entre os dedos de tão pouco quase parece ser nada!