A rua como sala de visitas
Ainda não tinha visto a crise timorense do lado de quem chega ao país, até que, hoje de regresso de Denpassar, Bali, aonde fui por dois dias, se me deparou um cenário triste, de guerra.
A época das chuvas já terminou, mas ainda não é tempo de ver a paisagem com os tons normais da época seca. No entanto, o tom verde-seco-acastanhado dos camuflados tomou conta da paisagem à beira-mar, onde se situa o aeroporto.
Mal se aterra, vêm-se a pista repleta de helicópteros e, um pouco mais longe, enormes tendas, jeeps, tanques e homens. Militares armados que ocupam também o caminho empedrado que nos levava em tempo de paz à sala de chegada e onde agora eles descansam estirados em camas de campanha sob o sol escaldante do meio-dia, vermelhos, afogueados do calor e com uma garrafa enorme de água sempre por perto.
E, depois, bem, depois, apenas a apresentação dos passaportes se faz em recinto fechado. Porque tudo o mais foi transferido para a rua.
A sala de chegada do aeroporto, está transformada num refúgio da força australiana; desconheço se é dormitório, se são escritórios ou a sua sala de visitas.
Havia necessidade? Tenho as minhas dúvidas.
Recolhida a bagagem colocada no chão, apresentam-se os documentos habituais para quem chega a um país estrangeiro a funcionários que, apesar de tudo, no meio da confusão, sempre conseguem sorrir e cumprir as suas funções.
Parece que qualquer vistoria a uma qualquer mala, se necessário fosse, obrigaria a que essa tarefa fosse feita ao ar livre. Ou seja, porque “desapareceram” as instalações próprias para esse efeito entra tudo, sem controlo.
Mas, já anteontem, reparei na confusão do lado de quem parte. Os militares, sempre-armados, entram, passeiam-se pela sala – sim, do lado das partidas ainda há sala - apreciam o movimento, vão à loja duty-free e desaparecem. Regressam daí a pouco para cumprir o mesmo ritual do sempre-armado entra, espreita, passeia, olha, desaparece, ao mesmo tempo que as crianças cumprem a sua quota parte nas tarefas “caseiras” de minorar o sofrimento de quem está há tempo demais refugiado sem condições nenhumas, indo buscar água num sujo garrafão de plástico a um qualquer canto de um qualquer compartimento do aeroporto.
No átrio, a confusão ainda é maior. Misturam-se os passageiros, as pessoas que os esperam e, claro, os refugiados, que assim se vão distraindo dos dias ainda mais amargos em que as suas vidas se transformaram.
Ao longo da via que dá acesso à rotunda , instalou-se um mercado onde se vendem legumes - pouco frescos, é verdade - e fruta, substituindo os espaços cobertos de lona rota de todas as cores que ainda anteontem abrigavam os refugiados. Estes, foram transferidos para o campo que fica contíguo ao aeroporto. Nas novas tendas brancas, as centenas de refugiados cozinham, dormem e convivem . Até se riem! No novo acampamento, não há árvores, não há sombras. Não sei se há água.
Aqui, no bairro onde moro, o de Comoro, no pedaço por conta dos militares malaios, continuam os incêndios no resto das casas vazias que teimam em não arder.
O Presidente da República discursa no Parlamento, diz que não é tempo de apontar culpados porque há outras prioridades, mas vai acrescentando que as forças internacionais ficarão mais tempo do que se supunha. Em causa, as armas perdidas pelo país.
No mesmo dia, em Nova Iorque, Kofi Annan declara que não haverá forças das Nações Unidas senão daqui a seis meses e de seis meses a um ano, diz o secretário-geral da ONU, as forças da Austrália permanecerão no país.
Estou em crer que a crise está para durar!
Gostei de saber por Kofi Annan que a ONU reconhece ter saído demasiado cedo e que “a comunidade internacional não apoiou adequadamente, de modo sustentável, o processo de construção timorense”.
Por outro lado, não quero deixar passar o facto curioso que faz de Timor outrora filho do Império que Salazar defendia, filho, hoje, da comunidade internacional. Assistimos a um originalíssimo processo de adopção no qual há apenas uma nuance porque de Timor passou a Timor-Leste.
O nosso novo pai-mãe, essa comunidade internacional também se preocupa connosco e aprendeu (diz Annan ) com o “preço doloroso para Timor-Leste que a construção de instituições na base de princípios fundamentais da democracia e o primado da lei não é um processo simples que possa ser completado em poucos anos".
Estou comovida!
Devo acreditar que a vida dos timorenses vai melhorar?
Será que posso perguntar se continuará a haver refugiados a viver em condições miseráveis e se, quando recomeçar a época das chuvas, a sala de visitas de um qualquer país que é o seu aeroporto, vai continuar na rua?