quinta-feira, dezembro 28, 2006 

Timor, 2006

Qualquer balanço que se faça sobre o ano de 2006 em Timor-Leste é mau, francamente mau. Retrocedemos em muitos aspectos, perdemos a credibilidade e o respeito de muitos países amigos e, pior que tudo, perdemos o respeito por nós próprios.
Inquietante é que, em menos de um ano, tenhamos desbaratado todo o capital lenta e pacientemente acumulado durante os longos anos de ocupação indonésia, alcançado mercê do comportamento de todo o povo. Fomos então corajosos, audaciosos, aguerridos, responsáveis, pacientes, determinados.
Uma das consequências da crise, da instabilidade que, desde Abril assola o país, prende-se com a vulgaridade, o desrespeito com que irresponsavelmente se trata a pessoa, quem quer que ela seja, excedendo, abusando do direito de liberdade de expressão que a todos assiste mas de todos exige responsabilidade.
Hoje, há muito quem esteja apenas ocupado em destruir tudo e todos. Facilmente se insulta, se denigre, se aponta o dedo. O ataque político é sempre pessoalizado, fulanizado, individualizado. As ideias vêm em último lugar.
Fala-se, diz-se, escreve-se, critica-se, ajuíza-se sem cuidar de aprofundar as razões de coisa nenhuma, sem querer perceber quais são e como serão as consequências de maldizer, atacar, destruir furiosamente.
É angustiante a perda de respeito por nós próprios. Ficámos sem referências. Não temos amor-próprio, auto-estima. Nem espírito de sobrevivência.
Nada nem ninguém vale coisa nenhuma porque a tudo e a todos se aplica uma etiqueta. Negativa, se não corresponde à nossa pessoal vontade, daí advindo desagradável rotulagem . Positiva, é-o apenas e só fruto do interesse particular, bem individualizado, daí resultando simpática etiquetagem. A rotulagem obedece sempre ao padrão “fulanização”.
Sendo um país tão falho de recursos humanos, tendo saído de um conflito longo e traumático e devendo ter como objectivo utilizar todos os recursos na estruturação do tecido social logo, – utilizando agora o chavão dito e usado à exaustão em Timor-Leste – na construção da Nação timorense, ao invés de se gastarem energias no afã de denegrir o próximo por um qualquer motivo de lana caprina, dever-se-ia acarinhar a pessoa, valorizando o ser timorense.
Só mesmo a distracção colectiva pode explicar esta necessidade de auto-destruição! Porque ao maltratar o próximo, somos nós próprios maltratados.
E mais parece que ninguém se adaptou aos novos tempos, os da independência sofridamente conseguida.
Estamos a transformar-nos numa Nação fragmentada e, sem referências, sem figuras, sem povo que identifique esta velha Nação alcandorada a país independente em 2002, seremos presa fácil a qualquer forasteiro, homem ou instituição, que queira transformar-se em novo e heróico salvador de Timor-Leste.
Seria bom que em 2007 tudo fosse diferente!

terça-feira, dezembro 26, 2006 

Lamentável!

A notícia é de 4 de Abril deste ano e diz que no final da 6ª edição do encontro de Timor-Leste com os parceiros de desenvolvimento “A estratégia do governo timorense para combater a pobreza, com a economia a crescer 7 por cento até 2010, foi avalizada hoje em Díli pelos parceiros de desenvolvimento, que calculam ser possível criar mais 10 mil postos de trabalho”.
Ficava reconhecido ser necessário desenvolver o país e acabar com a pobreza. Extrema, convém frisar.
Não houve implementação da estratégia então traçada , os empregos não nasceram apesar do desenvolvimento propalado e os pobres em número assustador permaneceram pobres durante estes quatro anos de independência e não desapareceram de um dia para o outro; pelo que toda a ajuda que lhes é destinada deveria ser bem vinda e despachada de maneira a minorar as suas dificuldades. Deveria…
Por alturas da reunião com os parceiros do desenvolvimento, jazia (há muito, muito tempo!!!) “esquecido” no porto de Díli um contentor com ajuda recolhida por um grupo de timorenses e australianos numa cidade da Austrália. Cadeiras de rodas, roupas e alimentos como arroz, óleo, açúcar faziam parte do carregamento.
Há dias, noticiava-se que (finalmente!) o contentor havia sido descarregado "somente graças à intervenção directa do primeiro-ministro José Ramos Horta”.
Ou seja, três anos depois da chegada a Díli, vindo da cidade de Perth, as roupas, os alimentos e as cadeiras de rodas, fruto de doações conseguidas na Austrália, foram descarregados. Os alimentos estão já deteriorados.
A quem se deve pedir responsabilidades?
O governo pediu já desculpa pela situação provocada pela burocracia excessiva. À burocracia, eu acrescentaria a irresponsabilidade e insensibilidade do encarregado do governo ou dos serviços da alfândega que, no mínimo, descurou das suas funções e, por não precisar, se distraiu ou se fez esquecido de que os pobres agradeceriam a ajuda que lhes era prestada. Até porque o óleo, o açúcar e o arroz iriam aliviar, pela certa e durante um tempo os gastos de várias famílias que engrossam as fileiras dos 94% de desempregados do país e vivem em pobreza extrema.
Lamentável!


sábado, dezembro 23, 2006 

Feliz Natal!



Poema de Natal

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

Vinicius de Moraes

sexta-feira, dezembro 22, 2006 

Assim vão os tempos!

Há alguma agitação na cidade. Nas lojas populares, agora que alguns comerciantes baixaram os preços das mercadorias tornando-as acessíveis à bolsa do cidadão comum, o movimento é razoável.As pessoas procuram a melhor fatiota para o “loron boot”, o dia grande, o Natal, mesmo sabendo que as festas terão uma duração mais reduzida. Embora haja alguma agitação, a azáfama da cidade está bem longe de ser igual ao que se via em anos anteriores. Os tempos não andam bons...
Até hoje, apenas vi quatro presépios em toda a cidade quando em anos anteriores havia pelo menos um em cada quarteirão. Lá na minha rua, no ano passado havia três, todos iluminados, guardados dia e noite pelos jovens que passavam o tempo tocando viola ou conversando fora de horas.
As figuras dos presépios de rua que se tornaram um sinal da identidade do povo timorense durante os tempos da ocupação são pintadas em cartão. Em cada cabana coberta de colmo, atapeta-se o chão de relva, plantam-se umas flores à volta e, se a contribuição das gentes do bairro tiver sido boa, colocam-se balões e luzes alindando o espaço que se quer ponto de veneração a Jesus e também de convívio.Vale o empenho, a imaginação e a arte de cada grupo.
O único presépio da Aldeia 30 de Agosto ( o nome a recordar o referendo que permitiu a independência de Timor-leste) foi desta vez feito uns metros depois do campo de futebol junto à Igreja de D. Bosco.
Mas, ali mesmo, ontem, a meio da tarde, dois grupos rivais resolveram – uma vez mais – manifestar-se violentamente, deitando abaixo o princípio de que tempo de Natal é tempo de Paz até porque,cmo diz a D. Marta já não há respeito por nada nem ninguém! Apareceu a polícia e deteve alguns jovens. O presépio, contudo, manteve-se intacto!
Nos mercados, o movimento não aumentou muito até porque grande parte da população foi de férias para a montanha.
O Natal em Díli não tem muito o cariz comercial a que estamos habituados no Ocidente. Não é hábito a troca de prendas. Por uma questão cultural, provavelmente, mas também porque não há dinheiro para se despender em prendas. Dá-se mais realce ao lado espiritual, sendo importante a participação de cada família nas cerimónias religiosas.
Na rádio ouve-se muita música de Natal cantada em tétum, em português, indonésio e inglês.
A família reúne-se, melhora-se o rancho. Come-se carne - um luxo na mesa dos timorenses! – e, como diz o Januário, cozinha-se o que não é hábito fazer-se nos outros dias do ano. É ainda Januário que comenta “não sei como vai ser este ano, as pessoas estão fora de suas casas!”
Ainda não vi ninguém sentado à beira da estrada fazendo as cestinhas de folha de palmeira onde se introduz o arroz que depois de bem temperado e regado com leite de coco é cozinhado e se transforma nas célebres e saborosíssimas “catupas”. Provavelmente estarão sendo feitas no sossego do lar, onde sempre há mais segurança que na rua...
Há quem tenha visto ontem uns quantos homens mal cuidados vestidos de camufaldo passeando e olhando displicentemente as bancas junto ao antigo Mercado Municipal e quem assevere que os antigos combatentes vão descer à cidade.
Pois... os tempos não estão mesmo de feição...

quarta-feira, dezembro 20, 2006 

Flashes

Os gangs digladiam-se. A ferro e fogo.

Há um morto. Quem matou? Primeiro foram os do Bangladesh. Depois foram os australianos. A comissária internacional diz que o Sebastião já estava morto quando as forças internacionais chegaram ao local do conflito de domingo, junto à mesquita. O novo representante do Secretário-Geral da ONU pediu, via televisão, que a família permitisse a autópsia. Mas, para isso, precisava do corpo... Um familiar respondeu que bastava a sua palavra...

No Parlamento debate-se o pacote eleitoral necessário para que haja eleições. Que devem realizar-se até Maio de 2007. Livres, justas, democráticas, deseja-se! Mas, há quem tenha a certeza de já as ter ganho! E de ficar no poder ad eternum, acrescenta um jovem com ar zombeteiro...

Surgiu um novo partido. Registado, pronto para as eleições, formado por“gente jovem”, comenta-se. É que há muito quem ache que a geração de 1975 não provou -ou por outra, provou mal - e deve dar lugar aos mais novos...

Wiranto e Alatas estão connosco. Já não são inimigos. Os nossos inimigos agora, somos nós próprios!

As armas de Alfredo podem ter vindo do lado de lá da fronteira. Diz-se. Escreve-se. Investiga-se.

É positivo o encontro entre as FDTL e os peticionários. Afinal, eles existem!

Os deslocados ficam nos campos até 30 de Dezembro. Sentem-se inseguros. Tal como quem vive ou passa perto desses campos...

Díli está quase vazia. Os cooperantes internacionais foram de férias para fora de Timor. Díli é só para trabalhar, ouviu-se... E nós calamo-nos porque o que fazemos não dá para cativar ninguém...

Aqui e além, na rua, vê-se um grupo preparando timidamente o presépio. Estamos a uns dias do Natal e já se diz que as cerimónias religiosas terão de acabar mais cedo... A jovem do supermercado comenta: Este Natal vai ser tão triste!

terça-feira, dezembro 19, 2006 

Os Costumes de Ramelau Hun - última parte

Faz-se de conta que tudo vai bem na terra do Sol nascente, aprendem-se umas quantas coisas e dá-se por terminada a versão do feto san umane na zona do Ramelau Hun…

O Mate Ulun

O tempo encarrega-se de reforçar e aprofundar os laços entre os feto san umane.
E na morte da mulher - elemento valioso, gerador de riqueza económica e humana pelo barlake e pelo nascimento dos novos elementos do clã - traz, como consequência a necessidade de reposição do seu valor humano e económico à sua família de origem. E de novo se sucedem os rituais.
Manuel, o feto san, envia um mensageiro a casa dos umane, os sogros, avisando do falecimento de Maria. Não o fará porém de mãos vazias, devendo fazer-se acompanhar de algo, normalmente dinheiro, como sendo o telegrama a dar do conhecimento da ocorrência.
O pai de Maria recebe a mensagem, reúne-se com a família, prepara tudo quanto é possível fazê-lo circunstancialmente e leva e leva à família reunida.
E logo se iniciam as negociações para nova entrega de bens, cuja reposição é fundamental. Porque o valor de Maria era inestimável e esse valor emprestado a Manuel em vida terá de voltar agora, na hora da morte, à uma lisan de onde ela saíra anos antes para o casamento.
Os pais e irmãos de Maria fazem a Manuel exigências sobre o que deverá ser-lhes entregue; Manuel e a respectiva família sabem de antemão que têm de cumprir os deveres a que estão obrigados: os ritos têm de ser cumpridos e eles dispõem de dois búfalos pujantes – um búfalo vivo que será entregue aos pais (umanes) de Maria e outro búfalo morto que será distribuído por todos os outros umanes, mediante o estabelecimento de regras.
Entretanto, chame-se a atenção para a importância simbólica da cabeça do búfalo transportado num cavalo que deve ser dado pelo genro, o Manuel :
De entre os familiares de Maria – os umane - há três componentes geracionais que são destinatários de três partes diferentes da cabeça do búfalo (cabeça, propriamente dita, orelhas e ossos).
O 1º grupo, formado pelos pais e irmãos de Maria, receberá búfalos, belak (um objecto fundamental nestas cerimónias) e dinheiro – são os que têm direito ao “ulun” representado pela cabeça do búfalo;
O 2º grupo, constituído pelos pais e irmãos da mãe da Maria, logo os seus avós e tios, terá direito a bens da mesma qualidade, embora recebam em menor quantidade – são os destinatários dos “tilun”, as orelhas da Maria, simbolizado por fatias de carne do búfalo;
O 3º grupo, constituído pelos pais e irmãos da avó de Maria ( seus bisavós e tios-bisavós), receberá também bens de igual qualidade, ainda que em menos quantidade que o 2º grupo – cabe-lhes os “ruin”, os ossos da Maria traduzido em fatia de carne de búfalo.
A negociação do que deve caber a cada um destes três grupos, cabe inteiramente ao 1º grupo, constituído pelos pais e irmãos de Maria, os “to´os nain”, ou seja, os donos da horta. São eles que determinam tudo, pertence-lhes a faculdade de decidir porque a lés cabe o entendimento de que os outros não devem receber tanto quanto eles próprios.
Os três grupos têm de retribuir o que receberam de acordo com o valor dos bens recebidos.
Maria vai a enterrar e a casa de seus pais possuirá depois mais uma relíquia: antes de se fechar definitivamente o ataúde com os restos mortais de Maria deve-se colocar em cima da urna, o belak que Manuel e sua família haviam deixado anos antes em casa dos pais de Maria aquando da atribuição do barlake. O belak de ouro simboliza o valor da mulher. O belak que passará de geração em geração é já uma preciosidade, faz parte do património familiar e será colocado na uma lulik, a casa sagrada.

Enterrada Maria, acrescente-se, a propósito que, se se pretender reforçar mais profundamente os laços entre Manuel e a família da defunta, poderá haver novo casamento com outra mulher da família de Maria. Mas, se isso não acontecer, os elos familiares não serão desfeitos assegurados que estão pela existência da descendência do casal Manuel/Maria.

O Toli Mate

Uns anos depois – o período varia de um a quarenta anos – realiza-se nova cerimónia. E, desta vez, será a Manuel que caberá organizar , o “toli mate”, a homenagem a ser prestada a Maria, sua mulher defunta e – se for de sua vontade fazê-lo - a todos os mortos da sua família.
Cada elemento umane traz o seu porco e tais, numa repetição do ritual estabelecido.
Efectua-se o “hakoi mate” ou “toli mate”, o enterro geral, no qual o lia nain, o dono da palavra, invoca os mortos. Deverá fazê-lo de forma convicta e concentrada até que a força da sua palavra derrube o búfalo que sucumbirá e cairá morto a seus pés.
Está cumprido mais um ritual e ter-se-ão com isso fortalecido, aprofundado e renovado os laços familiares.

Conclusões

Num país como Timor-Leste, frágil, pequeno e conservador, são as tradições, os hábitos culturais, os usos e os costumes que robustecem a identidade do país e funcionam como instrumentos necessários para o estabelecimento da ordem sócio-político-económico.
Mas isso já se sabia e já se praticava muito antes de Timor-Leste existir como país independente. Porque os usos e os costumes, fundamentais para que qualquer faceta do curso da vida se torne mais fácil, vêm de tempos muito recuados, dos tempos em que os nossos antepassados criaram formas de alicerçar os laços familiares passando para o enraizamento e a defesa de um grupo, de um povo, da nação Timor.
Há aspectos que se devem realçar:
- O reconhecimento da importância da mulher na sociedade timorense. É ela que determina a força de uma família. É dela que nascem os herdeiros. É sempre ela que está no centro das negociações entre clãs diferentes; são os seus ascendentes os destinatários dos bens, numa revelação de respeito que, numa sociedade de natureza marcadamente patriarcal , prevalecente na zona de Ramelau Hun, é devido à mulher.
- Com a constante renovação de atribuição de bens fica assegurado o bem-estar familiar e a sua estabilidade económica; qualquer um dos pontos acima descritos exemplifica como se contribui para a melhoria económica e social e para aumento substancial do património familiar.
- As cerimónias fúnebres podem ainda conduzir ao conhecimento de familiares circunstancialmente mais afastados ou desconhecidos que, por força da distribuição dos bens recebidos, se aproximarão da família com quem inevitavelmente iniciarão o estabelecimento de novos laços.
- A concessão de dote aquando do barlake, a reposição e distribuição de bens por ocasião da vida e da morte são uma prática continuada e exigem a obrigatoriedade do seu cumprimento. Todos obedecem, cientes de que darão hoje e receberão amanhã; pedirão agora mas serão depois recompensados.
- A concepção parental timorense de feto san umane alarga e enriquece o conceito de família. Casa a casa, a família alarga-se ao povoado, à região. Passo a passo, os interesses primeiros de uma só casa são agora, pela prática continuada de renovação de laços através do nascimento, do casamento e da morte, os interesses do povo, todo ele parente próximo ou distante da mesma família.
Como fruto de interesses e hábitos comuns repetidos e observados secularmente de forma organizada e ordenada temos o Costume; com a mesma língua, a mesma cultura, o mesmo passado, a mesma História, a mesma terra, os membros de uma/várias famílias unidos pela construção de um futuro melhor considere-se um só Povo, pertence-se a uma Pátria de uma Nação cuja alma está simbolizada em cada belak de ouro guardado religiosamente na casa sagrada, em cada relíquia de mulher, geradora de novo ser humano, do novo ser timorense do futuro.

segunda-feira, dezembro 18, 2006 

Costumes

Não há paz na cidade. Os dias sucedem-se incrivelmente iguais, inteiros de ódio e de vingança.
Mas vi hoje um presépio de rua, precisamente na via onde ocorreram os conflitos destes últimos dias.
Oxalá o espírito de Natal ajude à reflexão e traga a paz!
O melhor é falar dos costumes…


O Barlake

Quando os noivos pretendem casar-se, dá-se início a uma série de rituais antes mesmo de se chegar ao barlake.
Primeiramente e antes de tudo, ainda que de forma discreta, as famílias sondam-se mutuamente com o objectivo de conhecer melhor os elementos dos dois lados.
Os representantes das duas casas às quais pertencem os nubentes desdobram-se em sucessivas reuniões nas quais se discute, a preceito, tudo quanto diga respeito à saída da jovem mulher de casa dos pais, da sua “uma lisan”.
De acordo com o costume tradicional, há uma troca de bens de valor idêntico entre as duas famílias.
A escolha da noiva obedece a regras precisas, com o intuito de garantir que a riqueza se manterá na região, entre dois clãs familiares.A criação de novas relações familiares entre grupos seleccionados, consoante a classe social, económica ou política é, ainda, uma factor a considerar.
Para além dos búfalos, cavalos e cabritos, a família oferece objectos de adorno e, de entre estes, o bem mais precioso, o belak -medalhão timorense em ouro - que simboliza a beleza e o valor da mulher fica religiosamente guardado na uma lisan, a casa de família de onde a noiva vai sair. Em troca, a família do noivo receberá porcos, tais, arroz e objectos de adorno. Isto surge como corolário de uma sucessão de rituais que se seguem aos contactos informais que entretanto se fizeram antes do pedido de casamento . E esse chega em forma de mensagem.
Os mensageiros do noivo e os familiares da casa da noiva reúnem-se e saboreiam em conjunto o bua malus, uma mistura que se masca constituída de cal, areca e betel e representa o lado social do encontro, contribuindo ainda para atenuar o ambiente naturalmente cerimonioso.

Estes encontros rodeiam-se de rigorosa preparação, num nahi biti, (estender a esteira e sentados sobre ela, conversar, negociar…) no qual tomam parte os elementos mais categorizados das duas famílias cujo objectivo é o de negociar as condições do barlake, em linguagem figurada de significado apenas entendível e conhecido pelos mais velhos e mais sábios.

A família da noiva (a quem vamos chamar Maria) denomina-se umane. O noivo (denominado Manuel) e sua família, agora ligados por novos laços familiares, serão os feto san.

Da união de Maria e Manuel surge uma nova família, que dá lugar a novo conceito parental, o “feto san umane”.

Continua amanhã


domingo, dezembro 17, 2006 

Raízes de Timor

No 1º ano do curso de Direito da Faculdade de Direito da Universidade Nacional de Timor-Lorosae, a turma é constituída por um conjunto muito curioso de trabalhadores-estudantes. O curso é ministrado ao abrigo de um acordo de cooperação com a Fundação das Universidades Portuguesas. Os nossos professores são portugueses.
No âmbito da disciplina de Introdução ao Direito, formaram-se grupos para a apresentação de trabalhos e o meu apresentou um sobre os costumes na zona de Ramelau Hun, que abrange um conjunto de regiões entre as quais Ainaro, Letefoho e Atsabe de onde são naturais, respectivamente, Henrique Corte-Real, Vítor Maia e Tomás Gonçalves que, comigo, integraram um grupo de trabalho.
Em conversa com os meus três colegas de grupo, achámos que era interessante publicar o nosso trabalho que pode contribuir para um melhor conhecimento da alma timorense. O Henrique e o Vítor acham importante que se fale das tradições pelo que elas devem tornar-se conhecidas, o Sr. Tomás Gonçalves, um respeitável aluno de sessenta anos cheio de sabedoria, entende que os mais jovens precisam de conhecer a suas raízes, que Timor não se pode perder.
Eu, que sou de uma região diferente, aprendi imenso!
Convicta, como eles, de que é preciso conhecer Timor para melhor o compreender, propus-me difundir no Timor 2006 o nosso trabalho sobre alguns dos costumes da zona do Ramelau Hun.
O trabalho é constituído por três partes. Na primeira, a introdução, na segunda “A Instituição Familiar na Organização da Sociedade”, o conceito de Feto San Umane e a sua substancia, justamente através do Barlaque, do Mate Ulun e do Toli Mate. No, fim, obviamente, as conclusões.

Os Costumes na Zona do Ramelau Hun

Introdução

A família é a base estrutural da sociedade timorense.
O conceito familiar diverge, contudo, daquele a que os ocidentais estão habituados.
Em Timor-Leste, a família extravasa o âmbito restrito pai, mãe, filhos.
Porque o tio e a tia são também pai e mãe, os seus filhos, no Ocidente apenas primos, aqui em Timor-Leste são também considerados irmãos. E o mesmo acontece com os irmãos dos avós, os filhos dos primos, numa interminável sucessão de laços renovados pelo casamento, pelo nascimento, pela morte.
Em Portugal, por exemplo, os filhos de irmãos tratam por tios os restantes irmãos do pai e da mãe.
Em Timor há algumas diferenças que passaremos a concretizar no ponto em que se fala de fetosan (igualmente aqui tratado como feto san ou feto sá) umane (igualmente aqui tratado como uma mane).
À sombra da família se desenham os destinos de uma comunidade. Primeiro, num espaço restrito que se vai gradual e ordenadamente alargando, com a adesão de novos membros. Depois, são tantos, tão fortes e sólidos os laços e os interesses que ligam família a família, aldeia a aldeia, região a região que, rapidamente, o que poderia surgir apenas como solidez no âmbito estreito de uma família, se transforma no robustecimento de uma vasta comunidade harmónica e solidária entre si.
Vindos de tempos imemoriais, os usos reiteradamente postos em prática, obedecendo a determinada organização baseada numa intrincada sequência de regras em que o dever e o direito são observados com o máximo rigor, foram-se multiplicando por vários núcleos, ampliaram-se e sedimentaram-se como costumes.
Seguir um determinado costume geração após geração, também tem como objectivo criar maior harmonia social, melhor defesa da comunidade e maior poder económico. A tudo isto se soma necessariamente mais solidariedade baseada na indispensabilidade de protecção e fortalecimento da estrutura familiar.
Nos bons e nos maus momentos, a família une-se. Em dias de festa e de tristeza. No nascimento como na morte. Na dor e na alegria. Na guerra como na paz.
Se não se dá nada a ninguém, então nada se peça a ninguém.
Se a sua condição económica é precária, aí está a família, sempre grande e solidária, a contribuir para ignorar os efeitos que o compromisso económico-social provoca no elemento mais fraco.
Se tivermos em conta que, também desde tempos imemoriais, os regulados se foram digladiando entre si com o objectivo de fortalecer os seus reinos, podemos entender com clareza a razão de ser da aposta no fortalecimento da estrutura familiar como forma de melhor enfrentar os problemas.
É neste contexto que se situa o peso estrutural da família como instituição.
Os costumes estendem-se por todo o país mas diferem nos seus pormenores de região para região. Assente é que, embora haja nuances, os costumes são observados por todo país, por toda a comunidade, independentemente do poder económico e da classe social de cada elemento..
Nós vamos tratar aqui dos costumes na zona central, mais concretamente em Ainaro, Atsabe e Letefoho, a zona do Ramelau Hun, o sopé do monte Ramelau.

A Instituição Familiar na Organização da Sociedade

Fetosan Umane

Não se admire que em Timor-Leste todos sejamos primos, irmãos, parentes uns dos outros. Assim se traduz o conceito de fetosan umane qual teia de afectos, de interesses e objectivos comuns, pacientemente construída, enriquecida por novos laços, novas uniões, cuja consequência, tempo após tempo, acaba por ser o alargar os horizontes de abraçar o Mundo.
Os tios, irmãos do pai e respectivas mulheres – são designados pais pelos filhos de pais irmãos e, em regra, filhos de pais irmãos são irmãos entre si, constituindo com os pais o bloco da árvore genealógica do “uma mane” e os tios – irmãs da mãe e seus maridos – são também chamados pais pelos filhos de mães irmãs, logo, filhos de mães irmãs são irmãos entre si, embora permanecendo cada uma delas ligada ao “uma fukun” do marido” (“mane foun” ou “feto san”.
Os sobrinhos, filhos de irmãos, já não chamam pais aos tios mane foun: às tias, irmãs do pai, tratam-nas por “ki´i” e aos tios, maridos das tias, tratam-nos por “bagi”.
O termo “bagi” também se aplica no tratamento recíproco entre o tio”bagi” e os sobrinhos, filhos dos cunhados, uma mane.
Contrariamente, os filhos das irmãs tratam os tios (irmãos das mães) por “na´i” e por “ina boot” as esposas destes.
Seguidamente, os primos (filhos dos irmãos das mães e filhos destas) tratam-se reciprocamente por “rian” que equivale a cunhado, abrindo a viabilidade do casamento dos filhos das irmãs com as filhas dos irmãos delas, por direito de natureza costumeira, o “tunanga”.
Esta é a regra geral, porém, na prática, com a efectivação de uniões conjugais em teia de aranha, nem sempre os “uma manes” se apresentam como tal e os “mane foun” ou “feto sá” de igual modo. Há momentos em que essa ordem se inverte, dependendo das posições onde cada um deles se coloque.

Continua amanhã

quinta-feira, dezembro 14, 2006 

Poesia na Escola

Recebo de Lisboa, enviados por amigos e amigas que fui fazendo durante os anos em que trabalhei na Lusa, Expresso e Público, alguns livros e muitas revistas. Mesmo atrasadas, as revistas são lidas de fio a pavio e os livros devorados, sejam eles romances ou poesia, emprestados a familiares e a amigos.
As revistas são distribuídas por quem as deseje. Se apensas a algumas delas vêm algumas páginas dedicadas a crianças, então são estas que têm a preferência da escolha.
Pensando que muita gente tem as mesmas dificuldades que eu (confessando embora quão avara sou com os meus livros), peguei numa mão cheia deles - livros e revistas - e levei-os para um restaurante, deixando-os displicentemente sobre duas mesas, com uma nota sugerindo que os devolvessem depois de lidos em benefício de outros leitores de ocasião.
E a verdade é que muitos se deliciam com a leitura. Alguns romances estarão por aí cumprindo a sua missão. Mas ficaram esquecidos uns livros de poesia. Até ontem.
Enquanto esperavam pelo almoço, estavam dois timorenses folheando entretidos uns livros até que um deles se dirigiu a mim:
- Sou padre, posso levar este livro de poemas para serem lidos pelas crianças na escola?
Senti-me profundamente recompensada! E senti a alma leve, leve...
É que se há tempo para se ler poesia, então é sinal de que a beleza e o sonho ainda moram nos nossos corações e andam de mão dada com a esperança...

quarta-feira, dezembro 13, 2006 

Do Lusocentrismo

Tenho para mim que uma das riquezas de Timor-Leste é, justamente, a sua diversidade cultural. E defendo que, um país, com as fragilidades de Timor-Leste, longe de marginalizar uma ou outra corrente cultural, deveria alicerçar a sua identidade nessa mesma diversidade, o que o torna, aliás, bem diferente dos países que o rodeiam.
Um dos traços reconhecidamente determinantes para o enriquecimento da nossa cultura, um dos componentes mais fortes da nossa identidade, reside - goste-se ou não - na língua portuguesa, a par da religião católica, ambas deixadas em herança por séculos de colonização lusitana.
Por outro lado, Timor-Leste, sendo ainda tão carente de recursos humanos, deveria, em boa verdade, socorrer-se de todos os timorenses, independentemente do lugar onde tenham vivido durante os anos da ocupação, quer tenham permanecido no país, quer se tenham refugiado no estrangeiro onde também muitos timorenses já viviam antes do conflito de 1975, quer sejam descendentes de cidadãos de outro país.
Timor-Leste terá de ser reconstruído com o esforço de todos os timorenses, sejamos nós, em aditamento ao facto de sermos timorenses - e por razões culturais circunstanciais ou não - luso-timorenses, australo-timorenses, indonésio-timorenses. De entre estas nuances, há uma, porém, que é comum, a timorense! E isso explica, só por si, a complexidade e o melindre desta questão.
Poderia aqui falar da igualdade que a todos nos assiste enquanto cidadãos timorenses. Mas, isso ficará para depois. Por agora, basta apenas dizer que Timor-leste só ganhará se souber integrar todos os timorenses no esforço da reconstrução desta nação que é de todos, ao invés de beneficiar uns em detrimento de outros, não se baseando na sua capacidade individual mas só e apenas recorrendo ao argumento falso, discriminatório, racista, xenófobo -e, por tudo isso, perigoso - , da dupla condição nacional de cada um, da sua ascendência e, por arrastamento, da sua multiculturalidade.
Por mim, que nasci quando Timor não era Leste, apraz-me registar a minha condição de luso-timorense. Sinto-me tão portuguesa, filha de pai algarvio, como me sinto timorense, filha de mãe timorense de Lorosae. Nasci no tempo do Timor-português e vivo em Timor-Leste desde o tempo da independência. Gosto dessa minha condição. Ajuda-me a compreender melhor o Mundo, a perceber que somos cada vez menos cidadãos de um só lugar, sendo cada vez mais cidadãos do Mundo. Não me escondo dela nem procuro marginalizar a vertente cultural lusa que, por razões de sangue e de História de Timor me é tão familiar quanto a puramente timorense, se é que posso falar em pureza cultural de Timor-Leste. Existirá pureza em qualquer aspecto da vida?
Traduzido em miúdos, gosto tanto de uma boa feijoada à transmontana (ou será à timorense?) quanto aprecio um bom batar da´an, milho cozido (ou será também cabo-verdiano?).
Finalmente, entendo que cada um de nós, timorenses, tem o dever de utilizar o que de bom houver na nossa outra condição nacional em prol de Timor-Leste, sem procurar com isso esmagar a cultura local, autóctone, antes em aditamento e em seu enriquecimento. Ou seja, gostarei sempre que me apetecer de poder falar tétum e português, de me chamar, sempre, Ângela, aqui ou noutro país... Sempre! Independentemente de agradar ou de desagradar a alguns...

terça-feira, dezembro 12, 2006 

Entre a ficção e a realidade

Os problemas mantêm-se...
A violência não acontece só nas ruas. Há uma acentuada crise de valores. Ninguém respeita ninguém. Ninguém acredita em ninguém. Insultar passou a ser vulgar, aceitável, ponto máximo da democracia.
Os líderes desiludiram o povo. Os governantes goraram as expectativas criadas e repetidas à exaustão sempre com muita pompa e circunstância de quem pode, sabe e manda em tudo. Houve falha no sistema traçado a régua e esquadro. Tudo certinho, certinho, bem calculado e, afinal, tudo redundou em fracasso.
É preciso mudar. Tudo, qualquer coisa tem de mudar. Porque o povo está descontente, há que descobrir alguém que reúna as condições necessárias e que consiga levar a “Nação”a bom porto.
Foi com esse objectivo que dois grupos diferentes se juntaram para, entre si, debater, discutir, procurar caminhos e chegar a uma solução sobre quem tem perfil de candidato a candidato.
E haverá alguém? De dez candidatos a candidatos a titular de cargo político, sete não servem. E três podem ascender a um alto cargo.

Vamos ver os resultados a que ambos os grupos chegaram.

Estes sete não servem porque:

Carlos é inteligente mas é de outra facção…
Estêvão, não, nunca, é de um partido da oposição e é amigo do adversário político.
Francisco tem um problema grave. É mestiço, é descendente de malai. Neste caso, malai mutin
Gualberto, poderia ser, mas é pró (português, australiano, indonésio).É um vendido.
Inês, poderia ser mas o marido é de outro partido…
Kokorek, esse, de maneira nenhuma, o apelido não ajuda!
Luís, é uma pena ser um sarjana supermi e demasiado novo…

E os três seleccionados são-no porque:

Venceslau, é leal ao partido. Dizem que era bufo, mas era tudo treta… É um amigo!
Xisto, não precisa de ser inteligente. Só fará o que o chefe mandar…
Zulmiro, corrupto? Bem, só se lhe aparecer um corruptor… É sério até demais!

Atenção: Neste estudo não foram contabilizados os candidatos a candidatos que são casados com gente de fora.

domingo, dezembro 10, 2006 

Nem tudo é mau no meu país

É um lugar comum, torna-se repetitivo, cansativo mas, infelizmente, são assim os nossos dias. Lá terei de dizer uma vez mais que esta situação cansa e que continuo a não compreender o porquê de tanta violência.
Recordo o dia de emoções profundas de um Outubro longínquo, de muitas felicitações por parte dos meus amigos aquando da atribuição do Prémio Nobel da Paz e, depois, no dia 10 de Dezembro de 1996, a emoção maior partilhada com os meus amigos no jornal Público , ao vermos o Bispo Ximenes Belo e José Ramos Horta receberem o Prémio Nobel da Paz.
Passaram dez anos e tudo mudou. No fim de um dia que deveria ser de paz, pelo menos em recordação da atribuição do Nobel da Paz a dois timorenses e do respeito e simpatia que em todo o Mundo o pequeno e sofrido Timor inspirou, sobreveio a confusão. E, uma vez mais, a violência, o desvario.
Prefiro, pois, falar de rosas, da língua, de tradições e de sonhos. Pelo menos fico com a sensação de que nem tudo é mau no meu país.

Venilale foi eleita terra dos estudantes. Disse-me a Joana, professora natural de Venilale na escola profissional local, que “foi escolha do Ministério da Educação porque as crianças vão todas para a escola” de que é símbolo a belíssima Escola do Reino de Venilale.
Meti conversa com algumas delas. De tétum, quase nada falam. Explicam-se em tom cantado em cairui ou midik, o dialecto local. Mas cantam em bom português “oh, mãezinha do céu” e outras tantas canções infantis e, quando se lhes pergunta o nome, a resposta vem pronta “chamo-me…”
Também uma senhora, já de um certa idade, em conversa de circunstância naquelas horas intermináveis que precedem um funeral, dizia-me orgulhosa que “já não me lembro de muitas palavras mas ainda falo português”.
Quando eu era miúda, a minha mãe, que era natural de Venilale, e as minhas irmãs mais velhas falavam de Venilale como sendo a vila das rosas que desabrochavam de roseiras que ladeavam a estrada e da temperatura amena, primaveril bem diferente da de Díli. Hoje, não há rosas, mas Venilale, embora pobre, continua a ser um lugar aprazível, tranquilo.
Ali, há paz o que, nos dias de hoje, é o mais importante. Ali as tradições ainda são o que eram.
Tudo continua a ser feito como se o tempo não passasse, como se o tempo tivesse parado. E a título de exemplo, não seria possível em Díli mas, em Venilale, o funeral a que assisti há dias realizou-se já o sol desaparecera e terminou às 20H30! Porque a defunta merecia respeito e a urna não podia ir aos solavancos numa carrinha, ainda que se poupasse tempo. Em vez disso, montanha acima, por carreiros, e sobre padiola em bambu foi transportada por jovens que entoavam canções recordando a avó que partira. Antes disso, passaram muitas horas da manhã e tarde, a abrir a cova de mais de metro e meio de profundidade para o que se serviram de duas miseráveis pás; depois disso foram ainda os mesmos jovens que voltaram a colocar a terra, pacientemente, com as duas pás e, quem as não tinha, com as mãos…
Acredito que Venilale tem algum encanto. No ano passado, duas jovens licenciadas da cosmopolita Cascais que se haviam oferecido para trabalho voluntário, foram parar a um colégio de freiras justamente em Venilale. Vinham a Díli de vez em quando e, se não tinham outro transporte melhor, viajavam nas “biskotas”, os autocarros de transporte público que faziam o trajecto em seis horas (!!!), com muitos outros passageiros acompanhados de sacos de feijão, fruta, legumes, de galos, cabritos, um porquito… todos muito juntos uns dos outros para melhor aproveitamento do espaço, todos munidos da maior paciência do Mundo, para ultrapassar ou esquecer o desconforto do calor e os solavancos da estrada.
Adaptaram-se bem ao novo tipo de vida com os condicionalismos normais em lugares do interior de Timor-Leste (por exemplo, energia eléctrica, das seis à meia-noite), à alimentação – experimentaram folhas de qualquer coisa fritas em polme de farinha, uma inovação gastronómica do colégio de que eu, que sou timorense, nunca antes ouvira falar - e fizeram tantos amiguinhos entre os alunos e professores que, ainda antes de partirem, já estavam cheias de saudades. Fartaram-se de chorar elas e os que ficaram…
A Maria casou-se entretanto, mas a Marta voltou e trabalha agora no Hotel Timor.
O Augusto Lança, pelos vistos, também ficou preso a Timor! E pela maneira entusiástica como fala, acredito que vontade de voltar não lhe falta, especialmente a Venilale, mesmo que lá nunca tenha visto rosas!

quinta-feira, dezembro 07, 2006 

Formas de estar na vida...

No dia em que se comemora o 31º aniversário da invasão pela Indonésia, o ambiente que se vive é de tensão.
Pena é que a tensão resulte de actos violentos cometidos por nós próprios, timorenses, contra o inimigo, tão timorense quanto nós.
E a este propósito, ainda que o não queira, não consigo desligar-me de um comentário ouvido em Bali quando alguém me dizia que, finalmente, ficava demonstrado que os indonésios, durante os anos da ocupação, nada mais fizeram senão reagir aos desacatos dos timorenses, porque, como agora se via, - acrescentava – os timorenses são violentos e não sabem viver em paz.
Recordo que nem me sobrou sangue frio para lhe responder – aliás, nem sequer tinha bons argumentos - e que me senti bastante envergonhada.
Gostava bem que as cerimónias que hoje se realizam no país recordando esse dia triste na História de Timor servissem também de ponto de partida para uma reflexão profunda sobre a nossa natureza violenta e a necessidade de vivermos em paz, para o que, obviamente, temos obrigação de trabalhar e, necessariamente, de conter os ímpetos de violência que nos atacam volta e meia em nome de coisa nenhuma, mudando substancialmente a nossa forma de estar na vida.
Não havendo inimigos de fora, é contra nós próprios que lutamos…
Seria bom que estivéssemos todos conscientes disso!

quarta-feira, dezembro 06, 2006 

Cansaço

Ontem, a noite foi de alvoroço. O sobrevoo dos helicópteros em voo rasante junto ao campo de futebol sobressaltou toda a gente Soube-se depois que tinham sido, de novo, dois grupos de artes marciais. Algumas casas destruídas, feridos, fuga desordenada de mulheres e crianças, mortes… Sempre igual, sempre repetido. Desgastante!
É normal, faz parte do quotidiano timorense, mas cansa!
A violência mantém-se, sucede-se dia após dia, cria pânico, desacredita o país, provoca o desgaste de toda a população, destrói, mata.
Perdemos o respeito pelo próximo, perdemos as referências, insultamo-nos, destruímo-nos, estamos sem uma liderança que consiga convencer da gratuidade destes actos de vandalismo. E nem sabemos para onde vamos.
A crise existe. A loucura também. Só que deixámos de perceber o porquê desta crise e só conhecemos alguns loucos... A responsabilidade da crise já passou por muitos. Foram os peticionários, os polícias, os políticos, a oposição, os padres, os esquadrões da morte, foram os jovens, os refugiados, os lorosae e os loromunu e, agora, são os grupos de artes marciais.
Por este andar, não escapará incólume nenhum componente da sociedade timorense. Talvez que o desgaste me leve a manifestar, provavelmente com acentuado pessimismo, o receio de que não fique um único timorense para contar. Não sei a quem isto pode agradar nem quem ficará a ganhar com a situação. Tenho, contudo, a certeza de que nós, timorenses, sairemos completamente derrotados.

segunda-feira, dezembro 04, 2006 

Luís reencontrou a paz

Razões de ordem particular, obrigaram-nos a perder o medo e a fazermo-nos à estrada, rumo a Venilale. Fizemo-lo ontem, de manhã cedo.
À primeira vista, tudo parecia igual ao que era de dantes, notando-se, contudo, menos movimento nas estradas, menos gente a pé e ninguém a acenar.
Em Hera/Metinaro, antes do quartel das F-FDTL, metade das tendas brancas da ACNUR foi substituída por casas de palapa cobertas de colmo. E aí, sim, havia muita gente. O campo de refugiados deu origem a uma pequena povoação, com quiosques, venda de legumes e muitos grupos conversando à beira da estrada.
Em Baucau, o mercado regurgitava de gente e a aparência calma das pessoas era o reflexo do sossego reinante e que há muito desapareceu de Díli.
A razão da visita nada tinha de agradável mas, em Venilale, aconteceu algo que nos deixou profundamente aliviados.
Logo nos primeiros dias de Junho, relatei aqui a história de um grupo de jovens trabalhadores rurais que tratavam de uma pequena horta, sem nunca se terem dado seriamente conta da divisão “Lorosae/Loromonu”, até ao eclodir dos conflitos de Abril e Maio. E lembro-me ainda de contar que, receoso da fúria da população maioritariamente de Loromonu, Marcos ajudara Luís, o trabalhador de Leste, a esconder-se e, posteriormente, a escapar-se em segurança, não fosse perecer às mãos de enfurecida gente.
No meio do ambiente de tristeza, lobriguei, por entre a multidão, a cara satisfeita de Luís quando nos viu. Abraços, naturalmente que os houve, para além de muitas perguntas e outras tantas respostas. E assim fiquei a saber que, três dias depois de se ter refugiado no Colégio D. Bosco, Luís partiu silenciosamente para a sua terra natal.
Voltámos para Díli já a madrugada ia alta e não se via vivalma no caminho. Tudo deserto. Menos no campo de refugiados-nova povoação de Hera/Metinaro onde se mantinha imensa gente na estrada.
Recordo as lágrimas de aflição de Marcos em Junho passado.
Desta vez, mal lhe dei a novidade, as lágrimas voltaram a rolar copiosas pelas faces de um Marcos muito aliviado!
Estou de acordo com o Marcos e, tal como ele, também eu fiquei com a certeza de que “Maromak tulun nia!”, ou seja, Deus ajudou-o, ao Luís.
E como, nestas coisas do destino, mais vale não desafiar a sorte, também concordo com o Luís para quem, agora, é ainda muito cedo para voltar pois “as notícias de Díli não são nada animadoras”.
É que, em Venilale, mesmo sem trabalho, Luís reencontrou a paz e não está disposto a prescindir dela! Por outro lado, mesmo acreditando na eterna e presente ajuda do Divino, Luís também acredita que a maldade humana se mantém, aparecendo cada novo dia vestida de nova roupagem


sábado, dezembro 02, 2006 

Do cubo de gelo,do gelado e do ice cream

Enquanto não chove, o calor torna-se insuportável e um geladinho cai sempre bem.
Quando eu era bem miúda, não havia gelados como os de hoje. Mas um vendedor munido de um balde de gelo (só me ocorre este nome, para além do “termos” da minha infância), costumava parar ao pé da escola primária e nós deliciávamo-nos com o cubo de gelo cor-de-rosa embrulhado em papel branco. Ninguém se importava com as condições em que era feito e, menos ainda, que nos deixasse os lábios coloridos de rosa provocado pelo corante do gelo… Recordando melhor, acho que, dessa parte, nós, as meninas, gostávamos, porque parecia que tínhamos baton! Era doce, lembro-me bem…
Mais tarde, já nos inícios da década de 60, surgiram os ice cream e, oh!, que fantástica descoberta do ice cream de baunilha, de morango e de chocolate saboreados com a bolacha em cone!
Eram mais caros que os cubinhos de gelo e, às vezes, dava-nos algum trabalho convencer os nossos pais a comprarem-nos tantas vezes quantas nos apetecesse, que é o mesmo que dizer, todos dos dias. Mas, quase sempre, conseguíamos o que queríamos.
Há dias reparei numa nova gelataria. Pequenina, agradável, fresca, limpa e com óptimos gelados. Vários sabores, enriquecidos a gosto com amendoim torrado. Reparei que, em dois reservatórios estranhos onde eram continuamente misturados, lá estavam, de um lado, uma mistura azul, do outro, outra mistura cor-de-rosa. Percebi que eram levemente parecido com os cubos de gelo da minha infância, embora mais sofisticado…
Conheço o João, o dono da gelataria: em 1975 refugiou-se em Portugal ido de Atambua, estudou em Braga, emigrou para a Austrália e, depois da independência, regressou a Timor. E, sofrendo do calor com que nos presenteia o sol inclemente de Timor, deve ter-se lembrado de como os miúdos de todos os tempos gostam de gelados.
Arranjou uma carrinha, preparou-a bem, pintou a preceito um gelado em cone e a ilustrar, as letras da palavra Ice Cream; fizesse sol, chuva ou vento, o João percorria a cidade na sua carrinha e entrava até nos becos dos bairros mais escondidos da cidade, vendendo os gelados de sua invenção. O negócio ia de vento em popa e o João andava satisfeito.
No início, de tão animado que estava, nem dera por isso . Mas, com a rotina implantada, começou a sentir algum desconforto ouvindo tanto choro infantil, acompanhado de lacrimoso “ama, amaaa…”*, pela falta da moedinha mágica para a compra da guloseima.
João resolveu então abrir a sua gelataria. E explica que acabou por desistir da venda de gelados pela cidade porque não resistiu ao pedido das mães das crianças que lhe suplicavam volta e meia no tom quase tão plangente como o das crianças que, “por favor, não passe por aqui, porque os meus filhos, mal o vêem, querem um gelado. Eu mal tenho dinheiro para comprar um molho de legumes para a nossa comida, quanto mais para um gelado! Por favor!”

* Mamã, mamããã…


sexta-feira, dezembro 01, 2006 

Quando teremos paz?

Diz o ditado que “quando a esmola é grande, o pobre desconfia…” Nada mais certo.
À calma que se nos afigurava como o resultado finalmente interiorizado das muitas tentativas de “dame”,“domi” (paz e amor) sobreveio esta tarde mais uma prova da loucura que grassa no país.
A população jovem do lado de cima -
situado mais próximo das colinas - do suco de Malinamoc preparava-se para receber outro grupo rival e com ele estabelecer a paz. Mas, dois grupos rivais de artes marciais estranhos ao bairro estragaram a festa e, em vez da paz, a rua e o campo de jogos situado mesmo ao lado da Igreja de D. Bosco, encheu-se de populares, de gente curiosa, e de polícias armados e bem preparados para o que desse e viesse. Conseguiram acalmar as hostes e acabar com as cenas de pancadaria. Festa é que já não houve.
Surpreendida pelos acontecimentos e, embora estivesse a uns 150 metros da minha casa, fui aconselhada pelas forças internacionais de segurança a fazer marcha-atrás e a escolher outro caminho.
Foi justamente na esquina que um morador
do bairro me pôs ao corrente do sucedido. Incomodado, acrescentou que nem percebia o motivo da rixa. E aproveitou para me aconselhar a vir depressa para casa, não fosse reacender-se a confusão…
Pois é, pensei eu, o Sr., Carlos tinha razão: o diabo estava mesmo à espreita e não perdeu tempo!
E, pelo ruído dos helicópteros, deve continuar à solta!