quarta-feira, março 21, 2007 

Dois dedos de conversa


A pausa não é desejada. É apenas originada pela falta de tempo.
Bem sei que diz o ditado português que “quem corre por gosto, não cansa…” e eu corro (oh, se corro!) mas, por muito que corra, não arranjo tempo para fazer tudo o que quero.
E, depois, em período eleitoral, especialmente quando o envolvimento é directo, nem sempre é fácil manter o distanciamento necessário ou fazer de conta que nada se passa à nossa volta… ou que o céu está azul quando à frente dos nossos olhos se vêem nuvens cinzentas, escuras…
Também se diz que quando não há nada para se conversar, fala-se do tempo. Verdade! Tão verdade como falar do tempo quando há muito mais para se dizer, mas o bom senso aconselha contenção, necessário distanciamento…
Por isso me mantive silenciosa por uns dias.
Depois de amanhã, começará oficialmente a campanha.
A par do meu trabalho, vou fazer algo que deixei para trás há precisamente um ano: andar pelos distritos, fotografar, olhar a paisagem em serena contemplação (nem que seja só por uns minutos!), conversar com pessoas da montanha, ouvir histórias e, depois, recontá-las…
Obviamente, este ano será diferente. As condições de insegurança obrigam a que, querendo ou não, tenhamos de andar pelo país acompanhados, seguros, guardados. Para isso é que aqui estão as forças internacionais…
Durante 12 dias não terei oportunidade de escrever diariamente. É que ainda não há Internet na montanha… Mas, sempre que regressar a Díli, virei aqui assinar o ponto!
Desta vez, até vou para a montanha guiando o meu jeep, o meu Pajero branco! Vai ser uma aventura!
Só espero é que não me aconteça o que nos aconteceu nas eleições para a Constituinte de 2001, quando ficámos atolados na ribeira de Irabere e dormimos ao relento, vendo relativamente perto, bem nomeio da ribeira, os olhos dos crocodilos brilhando no escuro…
Tenho a impressão de que foi por ter atirado para a ribeira – a pedido de um grupo de jovens - uma nota de cinco mil rupias para satisfazer os desejos de consumo de carne fresca do Avô crocodilo que ele não me trincou a perna…
Às vezes penso que lhe bloqueei a bocarra com a nota e ele ficou com os músculos tolhidos, sem conseguir abrir a boca… Imagino então que me tornei poderosa… Bem, isso acontece apenas umas décimas de segundo. Caio na real logo a seguir…
Na noite de Irabere, dormi sob um céu estrelado, junto a uma fogueira atiçada volta e meia para manter o avô crocodilo bem longe, ajudei a construir uma “ponte” e a arranjar uma estrada. Se o não tivéssemos feito, em vez dos dois dias em que ficámos em Irabere, teríamos ficado por lá até que alguém se lembrasse de nós.
É verdade que se lembraram. Mas essa é outra longa história e ficará para outra ocasião.

sábado, março 17, 2007 

O Código de Conduta


Sentados na primeira fila da sala de conferências, os oitos candidatos a Presidente da República Democrática de Timor-Leste ouviram a leitura do Código de Conduta a ser observado nas eleições de 9 de Abril.
A cerimónia começou com atraso. Na mesa de honra - onde se manteve sozinho por algum tempo devido ao atraso ainda maior do vice-presidente do Parlamento Nacional e do Presidente do Tribunal de Recurso - o Presidente da República, Xanana Gusmão, esforçava-se por disfarçar o incómodo provocado por inoportuna constipação. Um observador menos atento poderia até pensar que Xanana chorava. Mas, nada disso! A cabeça mantida baixa tinha razão bem mais prosaica e o lenço levado frequentemente ao nariz afastava todas as dúvidas.
Atrás de Xanana, estavam os membros da Comissão Nacional de Eleições, todos alinhados, sentados em pose para a posteridade assegurada pela presença de dezenas de jornalistas, fotógrafos e operadores de imagem de televisão timorenses e estrangeiros.
Atrás dos candidatos, sentavam-se os seus representantes, mais sérios que os próprios candidatos, alguns dos quais visivelmente bem dispostos.
Hino Nacional, discurso do presidente da CNE rematado com um sonoro “Amem”, leitura do Código, música, falta de energia eléctrica, mais música e oração final marcaram a cerimónia concorridíssima da qual, todavia, estiveram ausentes muitas figuras públicas. Do Governo, ninguém!
De entre as testemunhas, figurava, pela “sociedade civil” uma senhora, representando a Rede das Mulheres.
Não resisto a abrir aqui um parêntesis para perguntar:
Mas nós, mulheres, temos de aparecer sempre com um estatuto à parte como se fôssemos alguns seres estranhos à sociedade timorense? Se há coisa que me agrada pouco é, justamente, esta necessidade fabricada de apresentar a mulher como bandeira sei lá de quê, qual bicho raro; sem se dar conta, é assim que ela está a ser tratada!
Fechado o parêntesis, voltemos ao código…
E assim se validou o código de conduta aprovado pela CNE “ao abrigo do disposto na alínea c), do Artigo 8º, da Lei nº 5/2006, de 28 de Dezembro, conjugado com o disposto no número 2, do Artigo 67º, da Lei 7/2006, de 28 de Dezembro”.
Vinte e quatro artigos traçam as linhas a ser observadas pelos candidatos que se comprometem a participar no processo eleitoral de forma pacífica, democrática e transparente, respeitar o carácter secreto do voto, não exercer propaganda eleitoral em locais religiosos e abster-se do uso indevido de bens do Estado e funcionários públicos para efeitos de propaganda e campanha eleitoral.
Os candidatos também se comprometem a aceitar e cumprir escrupulosamente a Constituição, as leis, os regulamentos e outras disposições da República, bem como a aceitar os resultados legítimos da eleição ou contestá-los no Tribunal competente, nos termos das leis eleitorais; obrigam-se a respeitar os deveres de neutralidade e de imparcialidade a que estão sujeitos os funcionários públicos em geral e a não utilizar os cargos públicos como instrumentos de campanha.
Tenho a vaga impressão de que a existência de um Código de Conduta para os candidatos que se apresentam às eleições presidenciais depois de cumpridos os requisitos necessários exigidos pela Lei 7/2006 de 28 de Dezembro (lei eleitoral para o Presidente da República), e reconhecidos pelo Tribunal de Recurso representa alguma desconfiança nos princípios democráticos desses oito cidadãos.
Isto para não dizer que se trata de alguma menorização da sua idoneidade e das suas responsabilidades perante o povo eleitor, mesmo fazendo fé nº 2 do artigo 28º da tal Lei 7/2006 que, sobre os princípios da campanha eleitoral, diz que cabe à CNE “… adoptar medidas que garantam o seu cumprimento e o desenvolvimento pacífico da campanha eleitoral”.
Da documentação distribuída pela CNE, fazem parte outros Códigos de Conduta: para fiscais de partidos políticos e coligações partidárias, dos órgãos de comunicação social, para observadores eleitorais nacionais ou internacionais.
Com tanto código, tanta “disseminasi”, tanta “sosializasaun”, será que devemos acreditar que, desta vez, tudo vai ser respeitado por todos quantos intervêm neste processo?
Obviamente, há que esquecer a necessária assinatura dada como “despacho” de sua excelência o senhor Ministro da Justiça do governo timorense a validar a assinatura dos candidatos já reconhecida em notário e, consequentemente, a consentir no seu (deles) direito a candidatar-se.
Ora eu pensava que o ministro da Justiça/governo não tinha nada a ver com o assunto. E a lei também diz isso. Mas, se calhar eu fui induzida em erro pelo artigos 16º e 17º da Lei 7/2006 de 28 de Dezembro (lei eleitoral para o Presidente da República). Ou talvez a vontade de uns se sobreponha à lei! Vá-se lá saber o que pensam algumas sumidades!
Cá por mim, entendo apenas que é tempo – é urgente! - de readquirirmos alguma da nossa credibilidade perdida …

quarta-feira, março 14, 2007 

Loidahar

Loidahar é uma aldeia muito bonita a uns dois ou três quilómetros de Liquiçá. Fica numa curva de estrada, antes de Nunturi e dela se divisa Liquiçá, o mar azul e, bem mais longe, a ilha de Alor.
Loidahar marca a transição entre a zona quente do distrito de Liquiçá de árida montanha de quase inexistente palavão – usado como lenha - e a mais fria, a das montanhas revestidas de grandes madres-del-cacau a sombrear os cafezeiros. Depois de Loidahar, desliga-se o ar condicionado do carro e abrem-se as janelas para inspirar o ar puro e fresco da montanha.
Elegantes arequeiras, coqueiros e bananeiras ladeiam a orla da estrada e, logo à entrada da aldeia, escrito em grandes letras num muro sempre com ar de pintado de fresco, lê-se “Bem-vindo ao suco Loidahar”. Lembro-me que no tempo da ocupação havia inscrição idêntica em indonésio que, se me não falha a memória rezava assim: “Selamat dessa Loidahar”.
Sempre achei aquela aldeia muito especial. Talvez que parte da minha simpatia por aquele local advenha do facto de a ligar a uma bonita história de amor.
Havia um senhor, vindo de longe, que se apaixonou por um bela rapariga morena de negros cabelos de azeviche. Queriam casar-se; mas a família da jovem não estava pelos ajustes. Talvez desconfiasse das boas intenções do senhor que viera de longe. De tanto tentar, esperar, tentar, negociar, arranjar intermediário, tudo sem resultado nenhum, o jovem senhor vindo de longe fartou-se! E, se bem pensou melhor o fez!
Noite fechada, raptou a sua amada de cabelos negros de azeviche!
Naqueles tempos, há bem mais de cinquenta anos, não havia muitos carros. Mas havia cavalos. E foi num cavalo que, a galope, por atalhos escusos, o jovem senhor levou a sua amada para suficientemente longe de Loidahar.
Da união nasceram três filhos. Já depois da independência um deles, profissional de mérito reconhecido no estrangeiro, regressou a Timor. E foi ao sítio fotografar Loidahar e fotografar-se no sítio. A intenção era apenas uma: levar a prova ao seu velho pai de quase noventa anos de que Loidahar não desaparecera do mapa, antes continuava bonita, arrumada e acolhedora!
Esta história veio-me à memória hoje, quando soube que até em Loidahar – pouco importa que tenha sido ou não junto à estrada - existem vândalos que incendeiam casas!

segunda-feira, março 12, 2007 

Ninjas

Ainda mal passava das 23 horas. Regressávamos da casa de um dos meus irmãos (sim, eu sei que os tempos não estão de feição para saídas a desoras !) Uns cem metros antes de chegar a casa cruzámo-nos com um carro da polícia que descia a rua em direcção à rotunda do aeroporto.
E, mal transpusemos o portão, percebemos pelo alvoroço que tinha acontecido algo.
O que eu pensava que era imaginação alheia ou que acontecia sempre bem longe de mim, acabou por se tornar realidade no quintal da minha casa: um homem, de cara encapuzada – os tais ninjas de quem toda a gente fala - entrou no quintal, arrombou uma janela mas, ainda assim, conseguiu saltar o muro escapando-se de uma dentada do Pé-de-Vento, do Flecha, do Liurai e da Dondoca que, embora ladrando furiosamente, não foram suficientemente lestos para lhe dar uma trincadela na perna!
Não vi, corrijo, ainda bem que não vi! Não sei se desta vez seria capaz de gritar como o fiz em Maio do ano passado quando consegui com uma sucessão de gritos estridentes espantar os malfeitores que se preparavam para assaltar a casa da minha irmã que se situa próximo da minha.
Mas sei pelo G. T. e J. que o homem tinha uma máscara negra e era relativamente alto. Para G. foi por uma questão de minutos “tentámos apanhá-lo, mas ele saltou o muro antes do Pé-de-Vento lá chegar!” T. explicou que esses encapuzados costumam andar armados com uma faca…
Um dia destes vamos ter de fazer um muro mais alto. Vamos deixar de ver a colina – a que eu e os meus irmãos chamamos a “colina da mamã” - defronte da minha casa onde se situava a antiga casa dos meus pais e onde vivíamos em tempo de férias sem sobressaltos destes! Ficaremos como dentro dos muros de uma prisão!
Confesso que não é solução que me agrade muito.
A propósito de muros altos, lembro-me sempre do meu ar de algum desdém sempre que se dizia que em Port Moresby os muros tinham de ser muito altos para evitar os roubos constantes… Então como hoje, pensava eu que só acontecia aos outros, na terra de outros porque, em Timor, nunca! E, para me convencer de que assim era, recordava que nos meus tempos de menina e moça, as portas estavam sempre abertas, quer de dia, quer de noite…
Hoje à tarde, uma senhora moradora em Culuhun contou-me do ataque a casa de um polícia durante a noite de ontem – chovia que Deus a dava! – levado a cabo por um grupo de ninjas armados de facas que mataram dois dos moradores da casa de uma só vez!
Lá fora, recomeçaram os voos nocturnos.
E, agora que passa da 1H45 da madrugada e as luzes estão todas acesas fazendo do meu quintal um canto feérico a contrastar com a escuridão das montanhas, enquanto conto esta aventura que me tocou de perto, faço de conta que estou sem muito medo, que até estou calma… e, repentinamente oiço ladrar furiosamente os meus cães…
Que arrepio!

 

Voos nocturnos

Até há poucas semanas, os céus de Díli eram cruzados durante o dia por dois aviões comerciais, uns helicópteros da ONU e outras avionetas particulares. Quer de dia, quer de noite estão presentes os helicópteros militares no cumprimento da missão nem sempre conseguida de garantir a segurança das populações.
Mas, de há umas semanas a esta parte, o barulho dos helicópteros voando a baixa altitude tem sido substituído por outro ruído diferente que se faz ouvir já noite adentro, num vaivém que traz os moradores de Comoro intrigados, curiosos, sucedendo-se em catadupa as mais diversas perguntas. Uma personalidade pública resolveu mesmo levantar a questão, mas não consta que tenha tido resposta.
Serão aviões de transporte de militares? E o que transportarão para além de homens? Armas? Estarão de passagem e utilizarão apenas o espaço aéreo de Timor-Leste? Mas, é plausível que tenham outro destino, voando tão baixo? E que outro destino será esse? Porque não virão durante o dia?
Haverá certamente meia dúzia de pessoas que tem conhecimento desses voos. A população, não. E é por isso que se abre facilmente a porta à criatividade e à imaginação. De certeza que, se houvesse mais informação, não haveria tanta especulação…

sexta-feira, março 09, 2007 

Querida burocracia!


Um dos principais entraves ao desenvolvimento do país tem a ver com a máquina burocrática do Estado – ou o seu uso indevido - e, intimamente ligada a ela, as teias, o absentismo, os seminários e as reuniões constantes do senhor/a responsável de cada sector, bem assim como dos quadros intermédios.
Acrescente-se o gosto pelo autógrafo de quem pode/manda ou de quem ciranda quem pode/manda. Sempre necessário, implorado (do tipo, por favor, preciso tanto!), que prazer sente o autor do autógrafo em se fazer rogado! Faz sentido! Afinal, trata-se da assinatura de alguém importante, num cargo relevante!
Se um cidadão está muito necessitado de uma assinatura /autorização fundamental para a validação de um documento, pode muito bem acontecer ter de esperar horas a fio que o senhor/a responsável esteja liberto de todos os afazeres; enquanto espera, é melhor rezar para que não lhe falte a paciência. Pode bem acontecer que, às 17H00, já não haja ninguém por perto. Às 17H00, teoricamente, está bom de ver. Agora que os nossos dias são marcados pela expectativa de um acto de violência quando menos se espera, o mais certo é contar que nada ficará pronto depois das 16H00.
Quem precisa, dê-se por satisfeito por ter o dito documento sobre a secretária do senhor/a responsável.
Claro que também pode acontecer que, dois dias depois, ninguém saiba do paradeiro do dito documento. Pode ter sido roubado, desviado… Ou que, em vez de um documento seja preciso outro e depois mais uma fotocópia, e depois outra assinatura de outrem… E, se assim for, será o interessado que deve encarregar-se de nova organização ou adaptação do processo que precisa de validação do que quer que seja via assinatura de pessoa importante.
E volta tudo ao princípio…
Pode haver legislação que regulamente determinado procedimento. Pouco importa que assim seja. Se o responsável dos serviços interpretar de forma diferente o conteúdo da lei ou entender que lhe deve dar a volta, não há nada a fazer senão adaptar a lei vigente a gosto do responsável que passa assim a valer mais que a lei. É que podemos voltar a precisar…
Há outras questões adjacentes. Tudo depende da simpatia ou antipatia do responsável de um determinado serviço por quem precise de um documento. Se o responsável gosta de olhos verdes ou cinzentos e o interessado tem o azar de ter olhos pretos ou castanhos… nada a fazer. Ali, manda ele! Há uma variante: ele/a não queria nada fazer isso; só o faz, só age assim porque está a obedecer ordens de alguém…
Também existem os intermediários, os que estão a meia tabela da importância no sítio, sensíveis, muito sensíveis e contagiados pela cultura da “cunhite” que se mete de degrau em degrau até chegar ao topo. Por perto, convém sempre ter um primo, um amigo, o familiar de um amigo.
Nos tempos em que havia tranquilidade, quem quisesse tratar do passaporte tinha de estar na fila para onde deveria entrar antes da abertura dos respectivos serviços a fim de conseguir encaixar-se nos primeiros números previamente estipulados para serem atendidos nesse dia. A espera longa originava que se deixasse outra pessoa a marcar o lugar do interessado no passaporte. Depois, naturalmente, dependendo do sol, da lua, das estrelas, da disposição do momento, do sorriso, da falta de café da manhã, etc., etc., podia ser que o necessitado de passaporte tivesse, ou não, sorte…
Aconteceu a alguém que, entre a falta de sorte e o ter os tais olhos castanhos em vez de verdes ou cinzentos, ao fim de um mês, e depois de reunidos todos os documentos essenciais exigidos à vez
(esse já está, mas agora falta outro; ainda não deu aqueloutro…), viu ser-lhe exigida a apresentação da certidão de casamento dos pais. Como estamos num país em que nem sempre há casamento de papel assinado…
Há dias, lia-se num jornal diário, não havia ninguém no STAE. Os serviços não abriram as portas porque os funcionários não compareceram. Não obstante, havia – e ainda há - muitos cidadãos à espera do novo cartão eleitoral.
No Parlamento, anteontem, não havia quórum para debater e aprovar determinada legislação. Aliás, basta seguir atentamente os noticiários da televisão para se verem as cadeiras vazias … Não estando em campanha eleitoral, sendo as eleições de 9 de Abril presidenciais e não legislativas, alguém pode explicar onde páram os deputados eleitos pelo povo?
No aeroporto de Díli, onde algumas das regras em vigor são idênticas às da Austrália, os bens alimentícios têm de ficar em quarentena. Tudo bem, se houvesse equipamento que permitisse que, após o período estipulado, os géneros continuassem em bom estado de conservação. Mas não, não há e o mais certo é a sua deterioração em dois, três dias, devido à temperatura do ar, sempre elevada. Pelo que, na circunstância, mais vale lançar-lhes um derradeiro olhar e dizer-lhes adeus, até sempre!
Obviamente, também há excepções de que é exemplo o hospital nacional Guido Valadares. Mas, mesmo assim, não é suficiente para salvar a honra do convento!

 

O cinema é uma festa

Aos sábados costumo mostrar filmes aos meus alunos, como actividade extracurricular de frequência facultativa, na sala de projecção do Centro Cultural Português. No sábado passado foi a vez de “Gato Preto Gato Branco”. Um êxito, como sempre. A exuberante comédia de Emir Kusturica arranca todos os anos gargalhadas e comentários entusiasmados. É preciso esclarecer que o cinema aqui é interactivo, como no salão de plateia e balcão da minha infância ilhavense, os espectadores saltam das cadeiras, avaliam em voz alta os acontecimentos da história, dão sugestões às personagens e mimoseiam-nas com insultos quando se portam mal. Há uns sábados atrás exibi o poderoso libelo contra a violência doméstica “Once were warriors/A alma dos guerreiros” de Lee Tamahori. Vários dos alunos seguiam o enredo com ar ansioso revendo-se nos dramas da família maori retratada, como me disse uma estudante no final do filme. Enquanto Jake desancava todos à sua volta, alguns gritavam “asu!” (cão), “Ha’u odi ó!” (odeio-te) e outras coisas do mesmo teor.

Os comentários cumprem uma outra função importante que é ajudar quem está à volta a compreender o enredo. A grande maioria dos meus estudantes universitários não tem velocidade de leitura suficiente para ler as legendas dos filmes, sejam estas em português ou em indonésio. E nao sabem ingles. Os que lêem mais rapidamente vão informando os outros das suas descobertas. Alguns vêm de zonas do interior onde não há televisão nem filmes. Mesmo em Díli não há cinemas, o público que tem poder económico para isso compra DVDs piratas com legendas em indonésio para ver em casa.

Quando comecei, há vários anos, a fazer sessões de cinema, havia reacções deles nalgumas partes que me surpreendiam (agora já estou habituado). Por exemplo numa cena de grande intensidade dramática d”A alma dos guerreiros” entre Grace e o “Tio” Bully (brilhantemente interpretada pela jovem actriz Nita Kerrbell) alguns riam-se. Também o faziam n”A lista de Schindler”, no momento em que os prisioneiros judeus correm nus no meio do medo mais atroz para serem inspeccionados ou quando vão para o que pensam ser as câmaras de gás onde serão exterminados. Os jovens timorenses riem-se porque é novidade para eles assistirem à representação visual de coisas que constituem actualmente motivo de vergonha na sua sociedade, como a violação e a nudez. Para o público de outros países essa cena do filme de Spielberg evoca o horror do Holocausto, o sofrimento indescritível de um povo que o regime demente de Hitler tentou destruir, câmaras de gás, fornos crematórios... Para os meus pupilos, que da II Guerra Mundial (a “Guerra Japonesa”) tinham apenas uma noção muito vaga e que nada sabiam dos massacres de judeus, há apenas pessoas, gordas e magras, novas e velhas, homens e mulheres, que correm nuas. Há seis anos eu trabalhava para o Instituto Camões e tínhamos o Centro de Língua Portuguesa noutras instalações, no interior do colégio Paulo VI, uma escola secundária da Igreja Católica. O acervo de livros e filmes (principalmente coisas de Manoel de Oliveira, João César Monteiro e afins...) do Centro estava disponível para utilização pelos alunos, e espantava-me o sucesso do “Non ou A vã glória de mandar”, que tão pouco entusiasmo havia despertado na maioria do público português. Depois percebi. Os rapazes tinham que assistir à totalidade da cassete para não despertar as suspeitas da funcionária timorense, mas estavam interessados numa única cena, a da Ilha dos Amores, em que aparecem fugazmente algumas ninfas nuas no bosque, para deleite de Vasco da Gama, da sua heróica tripulação e dos curiosos adolescentes de Díli. Depois da censura colonial salazarenta veio a censura indonésia (aí os filmes continuam a ter que ir à tesoura apesar da democratização recente do país), e só nos últimos anos começou a abertura de Timor ao mundo.

Há uns meses atrás, enquanto estava ao rubro a violência baseada na discriminação entre gente de leste e de oeste, mostrei-lhes, um a seguir ao outro, o perturbante “Hotel Rwanda” de Terry George e o ainda mais eloquente “Sometimes in April” de Raoul Peck (da HBO). Houve gritos assustados nas cenas mais violentas, moças e moços que se levantaram das cadeiras como se para fugir quando os grupos de milícias juvenis interahamwe apareciam com as catanas a raspar na estrada. No fim agradeceram-me por lhes ter dado a oportunidade de assistir a estes filmes, cientes de que, se as pessoas boas não fizerem nada, Timor pode vir um dia a tornar-se um pesadelo semelhante.

Depois os confrontos de rua em Díli passaram a ser entre grupos de artes marciais e dei-lhes a ver o “Only the strong”, com Mark Dacascos, com um argumento bastante tosco, mas com a mensagem certa. É a história de um grupo de jovens delinquentes de uma escola secundária muito violenta, reabilitados através da aprendizagem da capoeira, a tal ponto que no final denunciam à polícia os familiares e vizinhos que são chefes do crime na área. Quando o protagonista bom batia no mau os meus estudantes premiavam-no com uma salva de palmas.

Numa altura em que andava a falar-lhes de variação social da língua, de gíria juvenil (chamam-lhe aqui “bahasa gaul”, termo indonésio) e de calão, exibi o “Balas e bolinhos – O regresso”. Riram à gargalhada com as aventuras e desventuras dos bandidos de meia tigela do Portugal nortenho. Quando a matéria eram as famílias linguísticas e o ramo românico que tem origem na língua latina foi a vez do “The passion of the Christ” de Mel Gibson, falado em latim e aramaico, uma longa reconstituição da tortura até à morte de Jesus, que os deixou bastante impressionados. “O nome da rosa” serviu-me de apoio às explicações sobre os monges copistas e escribas medievais, e às dificuldades de circulação do conhecimento antes da invenção da imprensa de caracteres móveis. Também deu azo a um debate sobre o crime recente de Maubara em que três mulheres foram queimadas acusadas de serem bruxas. “Os olhos azuis de Yonta” de Flora Gomes, é sempre visto com exclamações que chamam a atenção para as semelhanças entre as experiências deles e as das personagens numa Guiné-Bissau independente mas pobre, na qual os antigos combatentes sentem que não foi para isto que lutaram e as infra-estruturas falham constantemente. “Gadjo Dilo – O estrangeiro louco”, de Tony Gatlif, costuma ser um dos preferidos, retratando o processo de encontro e aculturação de um malai que vai viver com os ciganos da Roménia. “A vedação”, de Phillip Noyce, deixa-os perplexos, perguntam-me como é que os australianos que trataram tão mal os aborígenes se sentem com legitimidade moral para vir para aqui dar lições sobre a língua melhor para Timor. Enquanto cá o português convive pacificamente com o tétum e os outros idiomas locais, na terra deles não apenas muitas das línguas dos habitantes nativos do país desapareceram, mas os falantes foram exterminados com elas. Outros filmes que mostro habitualmente são “Billy Elliot”, “O clube dos poetas mortos”, “Bend it like Beckham”, “Malena”, “Balzac et la Petite Tailleuse Chinoise”, “Sete anos no Tibete”, “A vida é bela”, “Braveheart”...

O cinema é uma festa, e em Timor, em vez de nos preocuparmos muito com as imprecisões históricas feitas por Hollywood nas suas reconstituições, damos graças pelo apoio que este suporte visual pode dar para ajudar os nossos jovens universitários a conhecer um pouco mais do mundo e do percurso feito pela humanidade à procura de um futuro melhor. A visão provinciana, de mente fechada, intolerante, facciosa, do que está em redor é uma das causas da violência actual em Timor. No último fim-de-semana queimaram um armazém do Ministério da Educação cheio de livros. Numa conversa informal com estudantes alguns diziam-me que a culpa era do Governo e da ofensiva contra o militar renegado Alfredo Reinaldo, expliquei-lhes que os criminosos pirómanos que destroem livros escolares nem sequer estão a cometer um crime contra um ministro qualquer (que também seria crime e condenável) mas sim contra os seus próprios filhos, contra a possibilidade de os seus filhos terem acesso a uma educação minimamente decente que lhes abra um futuro melhor do que o presente deles. Alguns acabaram por concordar comigo, outros não ficaram muito convencidos. A educação é uma luta longa e árdua em condições desiguais, é “combater o bom combate”.

 

Textos antigos que vêm a propósito

Da guerra e outros demónios

Escrevo com o pensamento na morte ainda recente do comandante guerrilheiro timorense David Alex. De David Alex dizem-me os seus conterrâneos ter sido um líder carismático e um grande estratega. Falam-me da sua coragem como exemplo inspirador para os homens sob o seu comando, e para todos os que em Timor resistem ainda, e contam-me coisas sobre o seu trajecto pessoal como combatente, desde os dias da raiva quando o seu povo era massacrado em larga escala pelo exército ocupante indonésio, até às acções cuidadosamente preparadas dos tempos recentes em que o inimigo está por todo o lado e os guerrilheiros emergem das sombras das florestas para mostrar que ainda há homens livres em Timor.

David Alex está morto. Vítima dos ferimentos recebidos em combate aquando da sua captura, ou em consequência de tortura posterior, as versões da Indonésia e da resistência timorense diferem. De uma forma ou outra, uma morte de soldado, porque a guerra é a negação da civilização, e infelizmente os homens que assinaram a convenção de Genebra em confortáveis gabinetes não conseguiram encontrar forma de demonstrar aos militares que era possível manter o nível de operacionalidade dos seus homens respeitando “essa coisa dos direitos humanos”. Qualquer soldado treinado para combater é submetido a um processo de autêntica lavagem cerebral, condicionado para pensar no “inimigo” (IN, na gíria militar) como um ente abstracto, sem identidade própria, sem sentimentos, sem pais, mulher ou filhos que chorem a sua morte, enfim, como um alvo a abater. Suscita-se-lhe o ódio, responsabilizando o IN por todos os horrores que vê e sofre, pela sua sede, fome ou cansaço, pelos seus ferimentos, pela morte dos seus camaradas. Enaltece-se o “espírito de corpo”, a coesão interna do grupo para onde é mandado, enquanto se lhe embotam os valores como solidariedade, piedade, respeito pelo “outro”. Tudo isto somado à dura realidade da guerra explica como homens que até eram comuns acabam a fazer coisas que nunca fariam em condições normais. Os governos totalitários, especialmente, têm tendência para treinar exércitos sanguinários; ajuda-os a manter-se no poder pelo terror.

Não pretendo de maneira nenhuma desculpar os soldados indonésios – os testemunhos mostram que há muitos que são verdadeiras bestas – , só quero chamar a atenção para o facto de que muito piores do que eles são os políticos e generais responsáveis pelas operações em que eles são envolvidos. Se olharmos para a nossa própria história também não passa pela cabeça de ninguém responsabilizar pela existência da guerra colonial os soldados portugueses que nela participaram, oferecendo o seu sofrimento, a sua juventude, e em muitos casos a própria vida, por aquilo em que acreditavam, enquanto o velho ditador fazia discursos sobre “a missão civilizadora dos portugueses no mundo” e mantinha o país e o império em desagregação num estado de provincianismo cego e parolo que deu os tristes resultados que todos conhecemos. Tantas mortes, tanta miséria que poderia ter sido evitada se o regime fascista de então tivesse sabido acompanhar a evolução da história e da humanidade começando a preparar atempadamente a independência do Ultramar... Mas não, pouco mais fizeram do que mudar a designação de colónias para províncias ultramarinas. Depois, a cada ano pelo 10 de Junho, numa cerimónia grandiosa, vinham entregar as medalhas (muitas delas póstumas) aos “heróis”.

A TV2 está a exibir um ciclo de filmes sobre o Vietname, alguns deles muito bons. Recomendo. É importante preservar a memória, das atrocidades também, para que as novas gerações não repitam os erros das anteriores. E é útil ver filmes que mostrem soldados, daqueles parecidos com os de verdade, cansados, com medo e fartos da guerra, em vez das porcarias propagandísticas dos “heróis à la Rambo”. E para terminar esta reflexão que já vai longa deixo-vos com um poema:

Receita para fazer um herói

Tome-se um homem,
feito de nada, como nós,
e em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
lentamente,
duma certeza aguda, irracional,
intensa como o ódio ou como a fome.
Depois perto do fim,
agite-se um pendão
e toque-se um clarim.

Serve-se morto

Reinaldo Ferreira,
Poemas


- publicado no jornal regional “Bora te Beio”, em 10 de Agosto de 1997



Ainda Timor

Não estava no país em Setembro, e não tinha acesso permanente a televisão, mas fui seguindo irregularmente e à distância as notícias sobre os terríveis acontecimentos em Timor e sobre as manifestações com milhares de pessoas na rua que aqui se faziam, o uso da roupa branca como símbolo de solidariedade, etc... Fui crítico em relação a algumas destas coisas, mas não nego que foram úteis. Reafirmaram, e fortemente, perante a nossa classe política que Timor é assumido como uma causa nacional (A causa nacional?) pelos portugueses, pelo que custaria a qualquer partido a perda de muitos votos qualquer tentativa de evitar um investimento claro do Estado no apoio à recuperação e desenvolvimento de Timor (como os manifestantes não se pronunciaram sobre os problemas nos PALOP não devemos esperar dos deputados uma viragem para melhor na forma como é pensada a cooperação com África...). Deram também alguns argumentos aos negociadores portugueses em instituições como a União Europeia, que podem agora apelar à compreensão dos seus parceiros europeus ou internacionais para a impossibilidade de certas cedências por imperativo eleitoral: “Meu caro embaixador, se eu aceitasse isso o meu governo sofreria um abalo ou cairia”. Se bem que aqui as coisas não são muito lineares. Olhemos para a forma como os militares portugueses têm sido afastados da presença nos contingentes das forças de paz estacionadas no território, apesar do desejo claro dos timorenses de que eles lá estejam...

Não creio que a Indonésia ou mesmo a ONU se tenham preocupado muito com os cordões humanos e as vigílias em Portugal naquela altura, embora seja claro que a opinião pública internacional - principalmente no Ocidente - teve uma grande importância no desenrolar dos acontecimentos, especialmente tendo em conta o discurso a favor dos direitos humanos e da autodeterminação que foi usado pelos governos para legitimar a intervenção no Cossovo pouco tempo antes.

Uma coisa que me preocupa um bocado em relação à “onda de solidariedade que varreu o país” é compreender as motivações dos indivíduos, e devo confessar alguma perplexidade. Estive há algum tempo numa manifestação convocada pela Amnistia Internacional aquando da presença na Câmara de Lisboa de um dirigente chinês (para “receber as chaves da cidade” das mãos do defensor dos direitos humanos João Soares), na qual não estavam mais que algumas dezenas de pessoas. Sabendo-se que a China é uma ditadura brutal, que massacra a sua própria população, que invadiu e coloniza o Tibete, como explicar o alheamento dos solidários portugueses? Será por Timor ter sido uma colónia portuguesa, onde as pessoas são católicas e há quem fale português? Mas então e a África lusófona, e Angola, que está em guerra há quatro décadas e onde há fome e miséria e violações de direitos humanos e refugiados? Se um refugiado timorense pede apoio numa embaixada portuguesa recebe - e muito bem - todo o apoio, se um angolano chega a Portugal e diz ser refugiado tem uma forte probabilidade de ver o pedido recusado. É certo que o timorense pode legalmente requerer a nacionalidade portuguesa, mas será este o único motivo? Será que as coisas não seriam diferentes para o tal angolano se houvesse milhares de pessoas nas ruas a favor de Angola e papéis nos carros a manifestar solidariedade e não sei o quê mais?

Os timorenses foram promovidos recentemente no imaginário colectivo português a umas figuras meio santificadas que devem caminhar uns 30 cm acima do chão, não são gente com personalidade e individualidade, são ou vítimas (para neles exercitarmos a caridade) ou guerrilheiros heróicos. Isto conduz a formas maniqueístas de pensamento que afectam não apenas o cidadão da rua mas também os jornalistas e fazedores de opinião. Se vêm a público divergências políticas entre a UDT (União Democrática Timorense) e a Fretilin (Frente Revolucionária Timor Leste Independente) nos órgãos da Resistência, chovem acusações de “falta de união”, especula-se sobre “a ânsia de protagonismo dos irmãos Carrascalão”, quando o que seria correcto seria elogiar o processo de desenvolvimento da democracia nas estruturas timorenses. Parecem estes comentadores todos esquecer que ao contrário das lógicas de partido único, a democracia se constrói pela gestão das divergências e pela pluralidade de opiniões e não pelo consenso. Este discurso balofo e cansado sobre a “falta de unidade entre os timorenses” é de resto muito antigo também no meio dos movimentos de solidariedade com Timor e ONGs. Passei os últimos oito anos a ouvir gente para quem um timorense só tem algum interesse se for redutível às categorias que mencionei antes, de vítima ou guerrilheiro, a dar sermões com ar paternalista sobre a necessidade da “unidade”. É um dos motivos porque me aproximei de organizações timorenses, pareceu-me uma atitude menos hipócrita do que a de certas organizações de solidariedade completamente facciosas (diga-se que algumas delas tem pelo menos o bom gosto de não fingir ser neutrais) que dominavam os palcos, e que arranjavam um ex-guerrilheiro para ir lá dizer qualquer coisa do seu agrado. Não me enquadro obviamente na esquerda radical que procura em Timor um novo Che, um qualquer poeta guerrilheiro de lenço vermelho ao pescoço que pretenda conduzir as massas à revolução, assim como não me enquadro na direita, rançosa, que olha embevecida para os coitadinhos que rezam orações católicas em português e que, lembrando saudosamente o império, sonha ir distribuir caridadezinha pelos nativos que, ao contrário dos ingratos dos pretos da África, gostam muitos dos portugueses e querem-nos de volta. Gosto dos timorenses porque são gente boa e hospitaleira e porque tenho entre eles excelentes amigos, mas também gosto dos guineenses, moçambicanos, portugueses, galegos, etc... etc... Não gosto do conceito d”o povo escolhido”, do povo que é melhor do que os outros todos. Não gostava quando ouvia falar disso no Antigo Testamento em relação aos judeus, não gosto agora que muita gente pensa assim em relação aos timorenses.


- publicado no jornal regional “Bora te Beio”, 20 de Janeiro de 2000

quinta-feira, março 08, 2007 

Uns são mais iguais que outros

Já que a cidade está - pelo menos aparentemente - mais calma, aproveito para dizer duas coisas sobre a Mulher e a sua importância (ou desimportância..) em Timor-Leste.

Pausa na escrita, mudança de tema.

Afinal falei a destempo: nem tudo está bem. Aqui, onde as notícias e os boatos correm mais céleres que o vento, chegou agorinha, neste momento, a informação via SMS que Leandro Isaac levou um tiro no pé dado pelos australianos.
Vendo ao preço que comprei!
É tudo tão estranho! O Leandro Isaac é deputado ao Parlamento Nacional. Primeiro, pelo PSD com o qual entrou em rota de colisão, passando a independente. Apesar dos protestos do PSD, manteve-se no Parlamento. Namoriscou o partido do Poder mas afastou-se rapidamente.. Aproximou-se de Reinado e com ele estava aquando do cerco. Estava “escondido” disse o próprio à Lusa, numa caverna.
Esta é outra das questões que me faz alguma confusão. Então, o homem é deputado da Nação e foge? Mas, foge de quem? Porquê? É perseguido pelas forças internacionais? Se não há nada - pelo menos abertamente – contra o deputado Isaac a que se deve a perseguição? E o Parlamento Nacional não diz nada sobre o caso?
Claro que não ignoro que o medo e a insegurança transformaram o Parlamento Nacional numa quase casa de fantasmas, tão poucos são os representantes do povo que ali marcam presença. Não é por acaso que há dificuldade em arranjar quórum… Mas, também, agora que já sabem que têm a reforma garantida, porque haveriam de se expor ao perigo?
Também sei que o stress atacou tudo e todos. Afinal, os deputados – fora as mordomias e a reforma vitalícia - são seres humanos, normais, vulgares como o outra gente timorense. Mas, deixa-se cair assim um representante do povo, sem que nada se diga em sua defesa? Ou sabendo o Parlamento que o seu comportamento oferece dúvidas, que tudo se afigura demasiado turvo, não seria também lógico que esse próprio Parlamento tomasse uma posição sobre o caso e esclarecesse o povo-eleitor deste país? Leandro Isaac é um fora-da-lei, um foragido? Sobre ele impende alguma acusação?

Perdida que está a tranquilidade, a conversa sobre a Mulher fica para depois…

terça-feira, março 06, 2007 

Correccao

Correccao.
Ha uma imprecisao na noticia intitulada "Ex-militares revoltosos prometem luta de "guerrilha" em Timor-Leste":

"Alfredo Reinado é um dos 599 militares expulsos do Exército por insubordinação em Março do ano passado, porque se negarem a abandonar as reivindicações por melhoria nas condições de trabalho e por acusações de nepotismo dentro da corporação." - Na verdade Alfredo Reinaldo nao fazia parte do grupo original de peticionarios nem dos que se juntaram depois ao movimento liderado por Gastao Salsinha que fez a manifestacao em frente ao Palacio do Governo que terminou com os manifestantes a queimarem carros e motorizadas no local e a praticarem outros actos de vandalismo. Apos a utilizacao das FDTL em Dili contra os peticionarios e seus apoiantes, entao em fuga, Alfredo Reinaldo ausentou-se de Dili com alguns dos seus homens, passando desde esse momento a agir a revelia da cadeia de comando militar. Isso foi no inicio de Maio de 2006.

segunda-feira, março 05, 2007 

Orgulho...

Não sei até que ponto será totalmente verdade. Mas, ainda que só tenha um pingo de verdade, é perturbador que, à primeira oportunidade, surjam notícias destas sobre familiares de quem, num determinado momento, decidiu contrariamente ao que se esperava; que os mesmos sejam ameaçados ou vejam os seus bens desaparecerem num ápice por quem se sente de qualquer forma atingido. Não devia ser possível, mas é assim no meu país. A vingança anda à solta e é dona e senhora da cidade!
Anda-se na rua e não se vêem governantes que antigamente (antigamente, foi há pouco menos de um ano) se passeavam altivos nos “ carros do Governo”. Os funcionários públicos quase sumiram da face da cidade e os carros em que se transportavam andam hoje quase todos sem matrícula, antes que sejam apedrejados…
Agora, chegou a vez dos familiares do Presidente, cujas casas foram vandalizadas, diz-se pela cidade.
Porquê? Para quê? Que necessidade há em se perseguir e se destruir, cedendo aos apetites loucos de um dado momento?
Já me fiz centenas de vezes as mesmas perguntas e não consigo atinar com a resposta: quem poderá estar por detrás disto e a quem serve o caos instalado em Timor-Leste?
Muitos me têm dito que ponho demasiada emoção naquilo que escrevo.
Perguntarei: haverá algum timorense que não se sinta atingido? Haverá quem não reaja emotivamente perante a barbárie e a loucura que tomou literalmente conta de Timor-Leste?
Olho bem para dentro de mim. “Procuro e não te encontro”, quase me apetece dizer ao orgulho perdido em um qualquer canto longínquo, esquecido da minha alma. Orgulho de ser timorense, onde andas tu?

domingo, março 04, 2007 

Desabafos

No bairro onde moro falta a electricidade várias vezes ao dia. Quando isso me acontece de repente enquanto estou a fazer um trabalho importante que preciso de acabar com urgência esforço-me por fazer exercícios de respiração para não espumar pela boca e resmungar observações pouco educadas sobre as mães dos senhores responsáveis pelo “faça-se luz” neste país. A minha mulher, que é timorense e que antes de vir para a universidade vivia com os pais em Liquiçá numa casa onde não há corrente eléctrica, olha-me divertida enquanto acende velas e diz-me que não vale a pena ficar aborrecido, é só aguardar algumas horas e eles ligarão de novo a electricidade. Ainda por cima devo ser o único idiota que paga electricidade na minha rua, o Primeiro Ministro veio à televisão dizer que não fazia mal fazer ligações directas ilegais.

Alguns professores referem-se às vezes desdenhosamente aos fracos resultados dos alunos, ficam possessos porque alguém não fez o trabalho de casa, esquecem-se que por muito que a vida aqui seja difícil para o malai mal habituado é sempre mais difícil para o timorense. As refeições monótonas de arroz cozido com canco (um vegetal que cresce nos pântanos de água estagnada) - ou, agora que não há arroz, de milho ou de super mie (massa chinesa importada da Indonésia) -, a electricidade que falta todos os dias, fazendo com que as gotas de cera se juntem às gotas de suor que no calor da pequena casa de zinco escorrem para cima dos papéis da estudante, ao mesmo tempo que a mãe ralha com ela para tomar conta dos quinze irmãos mais novos que vão fazendo uma algazarra dos diabos, uns a brincar outros a chorar, e o irmão mais velho anda lá fora com a catana na mão a fazer “segurança ao bairro” e, às vezes, um calhau atirado pelOS OUTROS vem chocar violentamente com o zinco do telhado aumentando o choro das crianças e sobressaltando os pais que rezam o terço em volta alta e agora redobram o fervor da oração...

A vida aqui ainda por cima é muito cara, principalmente para quem, como nós cá no nosso lar, faz vida de rico: bebemos leite no matabicho, comemos carne ou peixe ao almoço e ao jantar, eu tenho uma motorizada própria e encho sempre o depósito quando vou pôr gazolina, aluguei uma casa com um quarto-de-banho decente e rede mosquiteira nas janelas (tenho direito a um quarto no Bairro da Cooperação perto da Faculdade, mas as regras da Cooperação Portuguesa não me deixam levar a minha mulher para morar lá comigo...), às vezes chegamos ao cúmulo de comprar iogurtes... Tudo coisas inacessíveis à grande maioria das famílias timorenses. E, para azar, trabalho para uma instituição onde o meu trabalho é respeitado, mas que paga mal. Quando eu for grande quero morar aqui e ser professor do Ministério do Ministério da Educação português (ganham duas vezes o que eu ganho e têm outras mordomias como subsídio de férias e décimo terceiro mês), ou leitor do Instituto Camões (três vezes o que eu ganho e também as tais mordomias), ou acessor internacional num ministério local (salário variável, umas quatro a oito vezes superior ao meu).

E já agora, a propósito de leitores. Há uns anos concorri para formador/leitor do Instituto Camões cá em Díli, trabalhando na época para eles aqui com a categoria de assistente. Passei no exame escrito, paguei do meu bolso a viagem a Lisboa para ser entrevistado durante cerca de trinta minutos (e o I.C. descontou-me das férias os dias em que me ausentei para ir à entrevista na própria instituição!), durante essa meia hora quase só me perguntaram coisas sobre o ensino de português aqui e sobre a presença portuguesa nesta região do mundo, apreciaram os meus conhecimentos de línguas e linguística locais, e depois disso tudo... ofereceram-me um lugar de leitor na Namíbia. Recusei e permaneci aqui mais uns tempos como assistente (que em Timor significava alguém que fazia o dobro do trabalho de um Formador por muito menos salário). Na altura senti-me como um nadador olímpico a quem dizem “Olhe, já tínhamos alguém para representar o país na competição dos cem metros crawl, mas gostámos das suas provas por isso resolvemos perguntar-lhe se não está interessado em participar antes nos cem metros em atletismo”. Portuguesices...

Agora é segunda-feira de manhã e este foi um fim-de-semana agitado. Começou a ofensiva contra o militar renegado Alfredo Reinaldo, e muitos jovens de Díli que estão convencidos de que ele é um herói vieram para as estradas queimar pneus e provocar distúrbios. No caminho de casa para a Faculdade passei por sítios onde o chão estava completamente juncado de vidros. As pessoas de bem vivem com o coração nas mãos, muitos mandam todos os filhos para a montanha, para longe da confusão da capital, à espera que as coisas acalmem para os chamarem então para regressarem à escola ou à universidade. Mas agora também as zonas rurais começam a andar agitadas. Violência, violência. Até quando?

 

O rei bicéfalo

Criam-se mitos. Destroem-se mitos. De um momento para o outro e de acordo com os interesses circunstanciais dos autores da criação e da destruição.
Usam-se pessoas. Atribui-se-lhes uma importância fictícia.
Não se cuida de saber o alcance de uma ou outra atitude. O que importa é satisfazer o apetite do momento. Tapa-se o sol com a peneira e pensa-se que todos são cegos. Todos passam a ver o país com os olhos deles, dos reis, de quem manda. Porque em terra de cegos, quem tem olho é rei…
E foi assim que Reinado passou do anonimato à fama.
E foi assim que o povo descontente se virou para um desconhecido como se ele fosse o salvador da Pátria.
Mas, também porque quem ainda se sente como herói sobre os tempos e as circunstâncias tenha sentido em perigo a sua condição de herói, destrói-se um mito. E o encolher de ombros traduzirá a displicência e a facilidade com que moldam os interesses do país. Porque amanhã será um novo dia e haverá tempo para a criação de novo mito, mais um ídolo, como os outros, de pés de barro!
Agora, vamos a ver como vão reagir os timorenses perante o ataque dos australianos a Same que originou já a morte de timorenses.
Vamos a ver como reagirá a população perante aqueles que participaram na criação do mito enquanto lhes deu jeito, o guardaram e o protegeram. Como, aliás, o rei bicéfalo o fizera…
E quando os internacionais, entre os quais os australianos, saírem de Timor-Leste, contentes por terem feito deste país uma terra pacífica à custa da morte de timorenses que reagiram de acordo com as regras ditadas pelo rei bicéfalo em terra de cegos, teremos uma terra vazia, pedras e paus.
E talvez aqueles que tanto criticaram outros de apelar à intervenção estrangeira em tempos idos – os de 1975 – deles, dos auto-denominados interventores-fazedores da paz, fazendo (ainda que involuntariamente) os novos senhores de Timor, talvez aqueles que agora apelaram à violenta intervenção australiana consigam o dom de mandar na terra deserta, nas pedras e nos paus.
E talvez chegue então a altura de deles se dizer que não passam de uns paus mandados dos estrangeiros; porque ausentes da vida estarão os outros paus mandados em que nos transformaram. E não haverá paus mandados nem cegos em quem os heróis, os reis tornados paus possam mandar…

quinta-feira, março 01, 2007 

Paus e pedras em vez de pessoas

A aldeia onde moro tem um nome muito sugestivo de que gosto muito. É a Aldeia 30 de Agosto, alusiva ao referendo de 1999, que confina com a de 4 de Setembro que marca o dia em que foram conhecidos os resultados desse referendo e o início da violência praticado por militares indonésios.
Um pouco mais longe, temos a do Gólgota (a que os meus conterrâneos chamam Golgóta) e a de Santa Maria. São nomes com um significado muito particular.
Na Aldeia 30 de Agosto, o ambiente até era bom. As pessoas faziam a sua vida. Havia uma rotina própria dos sítios onde a tranquilidade faz parte da vida.
Quando ainda havia calma e eu saía pelas 6h30 para o meu passeio matinal, já havia movimento na rua, com os pais de filhinho ao colo a apanhar o ar fresco da manhã e o jovem vendedor de pão na sua biclicleta pregando “pão, pãão, pãããão...” em cantilena a par dos trinados dos pássaros e da alegre vozearia dos miúdos que iam para a escola e cumprimentavam cada transeunte com um sonoro e sorridente bom dia!
Nunca mais saí cedo. Acabaram-se os passeios matinais. Ainda oiço pássaros mas, das crianças que vão à escola (ainda que em menor número), se alguma coisa se ouve é o silêncio a acompanhar o passo rápido (que a ocasião faz o ladrão, o problema surge do nada e é preciso andar depressinha...). Nem sequer existem as bancas improvisadas à porta da escola com frituras várias que faziam a delícia dos miúdos do D. Bosco que, em fila, se muniam de saborosa guloseiema por 10, 15, 25 cêntimos...
Outros tempos, constato tristemente!
Uma vez mais, Comoro foi palco de violência. Não no campo de refugiados do aeroporto, mas a uns metros de distância do campo pelado junto da Igreja de D. Bosco, na Aldeia 30 de Agosto.
O quiosque ao pé do cruzamento é o ponto de encontro da gente do bairro, em particular dos jovens daquela zona do bairro. Guitarra e alguns risos de vez em quando, muita conversa, sempre. Até que alguém deve ter perdido a cabeça ou se exaltou a ponto de ferir o amigo das tertúlias de berma de estrada com uma catanada.
A rua encheu-se de mirones, como é normal nestas ocasiões e a polícia internacional apareceu em número razoável.
Esperei um bom bocado até que a via ficasse desimpedida e fiz-me à estrada. A meio caminho, cruzei-me com duas carrinhas da GNR. Não sei se se dirigiam para aquele sítio.
Recordei as palavras da C., moradora no Bairro Pité, quando me contou que no bairro dela o amigo de infância de um lado da rua espreitava a primeira oportunidade para apedrejar o amigo de infância do outro lado da rua...
Ou o exemplo de F., sobre os confrontos de Santa Cruz entre vizinhos e compadres...
Ontem, na televisão, alguém se referia a outrem como o “inimigo”.
Outra triste constatação. Os nossos inimigos somos nós próprios...
Está a desaparecer tudo quanto tinha algum valor em Timor-Leste ao mesmo tempo que nasce uma nova cultura de violência que transforma tudo e todos em inimigos. Somos gente de um mesmo país, somos todos timorenses mas o ódio que anda à solta nas ruas vai fazer de nós um povo em extinção!
As palavras são como as cerejas; e as recordações também.
A propósito da desertificação humana de Timor-Leste causada pela violência, lembro-me das palavras do Bispo Ximenes Belo proferidas no aeroporto de Lisboa quando chegou ido de Díli, se a memória não me falha, em Setembro de 1999: quando Xanana Gusmão chegar a Timor vai encontrar paus e pedras em vez de pessoas.
Triste é a constatação de que, nesse ano, a desertificação era provocada pela Indonésia. Enquanto que agora...