Textos antigos que vêm a propósito
Da guerra e outros demónios
Escrevo com o pensamento na morte ainda recente do comandante guerrilheiro timorense David Alex. De David Alex dizem-me os seus conterrâneos ter sido um líder carismático e um grande estratega. Falam-me da sua coragem como exemplo inspirador para os homens sob o seu comando, e para todos os que em Timor resistem ainda, e contam-me coisas sobre o seu trajecto pessoal como combatente, desde os dias da raiva quando o seu povo era massacrado em larga escala pelo exército ocupante indonésio, até às acções cuidadosamente preparadas dos tempos recentes em que o inimigo está por todo o lado e os guerrilheiros emergem das sombras das florestas para mostrar que ainda há homens livres em Timor.
David Alex está morto. Vítima dos ferimentos recebidos em combate aquando da sua captura, ou em consequência de tortura posterior, as versões da Indonésia e da resistência timorense diferem. De uma forma ou outra, uma morte de soldado, porque a guerra é a negação da civilização, e infelizmente os homens que assinaram a convenção de Genebra em confortáveis gabinetes não conseguiram encontrar forma de demonstrar aos militares que era possível manter o nível de operacionalidade dos seus homens respeitando “essa coisa dos direitos humanos”. Qualquer soldado treinado para combater é submetido a um processo de autêntica lavagem cerebral, condicionado para pensar no “inimigo” (IN, na gíria militar) como um ente abstracto, sem identidade própria, sem sentimentos, sem pais, mulher ou filhos que chorem a sua morte, enfim, como um alvo a abater. Suscita-se-lhe o ódio, responsabilizando o IN por todos os horrores que vê e sofre, pela sua sede, fome ou cansaço, pelos seus ferimentos, pela morte dos seus camaradas. Enaltece-se o “espírito de corpo”, a coesão interna do grupo para onde é mandado, enquanto se lhe embotam os valores como solidariedade, piedade, respeito pelo “outro”. Tudo isto somado à dura realidade da guerra explica como homens que até eram comuns acabam a fazer coisas que nunca fariam em condições normais. Os governos totalitários, especialmente, têm tendência para treinar exércitos sanguinários; ajuda-os a manter-se no poder pelo terror.
Não pretendo de maneira nenhuma desculpar os soldados indonésios – os testemunhos mostram que há muitos que são verdadeiras bestas – , só quero chamar a atenção para o facto de que muito piores do que eles são os políticos e generais responsáveis pelas operações em que eles são envolvidos. Se olharmos para a nossa própria história também não passa pela cabeça de ninguém responsabilizar pela existência da guerra colonial os soldados portugueses que nela participaram, oferecendo o seu sofrimento, a sua juventude, e em muitos casos a própria vida, por aquilo em que acreditavam, enquanto o velho ditador fazia discursos sobre “a missão civilizadora dos portugueses no mundo” e mantinha o país e o império em desagregação num estado de provincianismo cego e parolo que deu os tristes resultados que todos conhecemos. Tantas mortes, tanta miséria que poderia ter sido evitada se o regime fascista de então tivesse sabido acompanhar a evolução da história e da humanidade começando a preparar atempadamente a independência do Ultramar... Mas não, pouco mais fizeram do que mudar a designação de colónias para províncias ultramarinas. Depois, a cada ano pelo 10 de Junho, numa cerimónia grandiosa, vinham entregar as medalhas (muitas delas póstumas) aos “heróis”.
A TV2 está a exibir um ciclo de filmes sobre o Vietname, alguns deles muito bons. Recomendo. É importante preservar a memória, das atrocidades também, para que as novas gerações não repitam os erros das anteriores. E é útil ver filmes que mostrem soldados, daqueles parecidos com os de verdade, cansados, com medo e fartos da guerra, em vez das porcarias propagandísticas dos “heróis à la Rambo”. E para terminar esta reflexão que já vai longa deixo-vos com um poema:
Receita para fazer um herói
Tome-se um homem,
feito de nada, como nós,
e em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
lentamente,
duma certeza aguda, irracional,
intensa como o ódio ou como a fome.
Depois perto do fim,
agite-se um pendão
e toque-se um clarim.
Serve-se morto
Reinaldo Ferreira,
Poemas
- publicado no jornal regional “Bora te Beio”, em 10 de Agosto de 1997
Ainda Timor
Não estava no país em Setembro, e não tinha acesso permanente a televisão, mas fui seguindo irregularmente e à distância as notícias sobre os terríveis acontecimentos em Timor e sobre as manifestações com milhares de pessoas na rua que aqui se faziam, o uso da roupa branca como símbolo de solidariedade, etc... Fui crítico em relação a algumas destas coisas, mas não nego que foram úteis. Reafirmaram, e fortemente, perante a nossa classe política que Timor é assumido como uma causa nacional (A causa nacional?) pelos portugueses, pelo que custaria a qualquer partido a perda de muitos votos qualquer tentativa de evitar um investimento claro do Estado no apoio à recuperação e desenvolvimento de Timor (como os manifestantes não se pronunciaram sobre os problemas nos PALOP não devemos esperar dos deputados uma viragem para melhor na forma como é pensada a cooperação com África...). Deram também alguns argumentos aos negociadores portugueses em instituições como a União Europeia, que podem agora apelar à compreensão dos seus parceiros europeus ou internacionais para a impossibilidade de certas cedências por imperativo eleitoral: “Meu caro embaixador, se eu aceitasse isso o meu governo sofreria um abalo ou cairia”. Se bem que aqui as coisas não são muito lineares. Olhemos para a forma como os militares portugueses têm sido afastados da presença nos contingentes das forças de paz estacionadas no território, apesar do desejo claro dos timorenses de que eles lá estejam...
Não creio que a Indonésia ou mesmo a ONU se tenham preocupado muito com os cordões humanos e as vigílias em Portugal naquela altura, embora seja claro que a opinião pública internacional - principalmente no Ocidente - teve uma grande importância no desenrolar dos acontecimentos, especialmente tendo em conta o discurso a favor dos direitos humanos e da autodeterminação que foi usado pelos governos para legitimar a intervenção no Cossovo pouco tempo antes.
Uma coisa que me preocupa um bocado em relação à “onda de solidariedade que varreu o país” é compreender as motivações dos indivíduos, e devo confessar alguma perplexidade. Estive há algum tempo numa manifestação convocada pela Amnistia Internacional aquando da presença na Câmara de Lisboa de um dirigente chinês (para “receber as chaves da cidade” das mãos do defensor dos direitos humanos João Soares), na qual não estavam mais que algumas dezenas de pessoas. Sabendo-se que a China é uma ditadura brutal, que massacra a sua própria população, que invadiu e coloniza o Tibete, como explicar o alheamento dos solidários portugueses? Será por Timor ter sido uma colónia portuguesa, onde as pessoas são católicas e há quem fale português? Mas então e a África lusófona, e Angola, que está em guerra há quatro décadas e onde há fome e miséria e violações de direitos humanos e refugiados? Se um refugiado timorense pede apoio numa embaixada portuguesa recebe - e muito bem - todo o apoio, se um angolano chega a Portugal e diz ser refugiado tem uma forte probabilidade de ver o pedido recusado. É certo que o timorense pode legalmente requerer a nacionalidade portuguesa, mas será este o único motivo? Será que as coisas não seriam diferentes para o tal angolano se houvesse milhares de pessoas nas ruas a favor de Angola e papéis nos carros a manifestar solidariedade e não sei o quê mais?
Os timorenses foram promovidos recentemente no imaginário colectivo português a umas figuras meio santificadas que devem caminhar uns 30 cm acima do chão, não são gente com personalidade e individualidade, são ou vítimas (para neles exercitarmos a caridade) ou guerrilheiros heróicos. Isto conduz a formas maniqueístas de pensamento que afectam não apenas o cidadão da rua mas também os jornalistas e fazedores de opinião. Se vêm a público divergências políticas entre a UDT (União Democrática Timorense) e a Fretilin (Frente Revolucionária Timor Leste Independente) nos órgãos da Resistência, chovem acusações de “falta de união”, especula-se sobre “a ânsia de protagonismo dos irmãos Carrascalão”, quando o que seria correcto seria elogiar o processo de desenvolvimento da democracia nas estruturas timorenses. Parecem estes comentadores todos esquecer que ao contrário das lógicas de partido único, a democracia se constrói pela gestão das divergências e pela pluralidade de opiniões e não pelo consenso. Este discurso balofo e cansado sobre a “falta de unidade entre os timorenses” é de resto muito antigo também no meio dos movimentos de solidariedade com Timor e ONGs. Passei os últimos oito anos a ouvir gente para quem um timorense só tem algum interesse se for redutível às categorias que mencionei antes, de vítima ou guerrilheiro, a dar sermões com ar paternalista sobre a necessidade da “unidade”. É um dos motivos porque me aproximei de organizações timorenses, pareceu-me uma atitude menos hipócrita do que a de certas organizações de solidariedade completamente facciosas (diga-se que algumas delas tem pelo menos o bom gosto de não fingir ser neutrais) que dominavam os palcos, e que arranjavam um ex-guerrilheiro para ir lá dizer qualquer coisa do seu agrado. Não me enquadro obviamente na esquerda radical que procura em Timor um novo Che, um qualquer poeta guerrilheiro de lenço vermelho ao pescoço que pretenda conduzir as massas à revolução, assim como não me enquadro na direita, rançosa, que olha embevecida para os coitadinhos que rezam orações católicas em português e que, lembrando saudosamente o império, sonha ir distribuir caridadezinha pelos nativos que, ao contrário dos ingratos dos pretos da África, gostam muitos dos portugueses e querem-nos de volta. Gosto dos timorenses porque são gente boa e hospitaleira e porque tenho entre eles excelentes amigos, mas também gosto dos guineenses, moçambicanos, portugueses, galegos, etc... etc... Não gosto do conceito d”o povo escolhido”, do povo que é melhor do que os outros todos. Não gostava quando ouvia falar disso no Antigo Testamento em relação aos judeus, não gosto agora que muita gente pensa assim em relação aos timorenses.
- publicado no jornal regional “Bora te Beio”, 20 de Janeiro de 2000
Escrevo com o pensamento na morte ainda recente do comandante guerrilheiro timorense David Alex. De David Alex dizem-me os seus conterrâneos ter sido um líder carismático e um grande estratega. Falam-me da sua coragem como exemplo inspirador para os homens sob o seu comando, e para todos os que em Timor resistem ainda, e contam-me coisas sobre o seu trajecto pessoal como combatente, desde os dias da raiva quando o seu povo era massacrado em larga escala pelo exército ocupante indonésio, até às acções cuidadosamente preparadas dos tempos recentes em que o inimigo está por todo o lado e os guerrilheiros emergem das sombras das florestas para mostrar que ainda há homens livres em Timor.
David Alex está morto. Vítima dos ferimentos recebidos em combate aquando da sua captura, ou em consequência de tortura posterior, as versões da Indonésia e da resistência timorense diferem. De uma forma ou outra, uma morte de soldado, porque a guerra é a negação da civilização, e infelizmente os homens que assinaram a convenção de Genebra em confortáveis gabinetes não conseguiram encontrar forma de demonstrar aos militares que era possível manter o nível de operacionalidade dos seus homens respeitando “essa coisa dos direitos humanos”. Qualquer soldado treinado para combater é submetido a um processo de autêntica lavagem cerebral, condicionado para pensar no “inimigo” (IN, na gíria militar) como um ente abstracto, sem identidade própria, sem sentimentos, sem pais, mulher ou filhos que chorem a sua morte, enfim, como um alvo a abater. Suscita-se-lhe o ódio, responsabilizando o IN por todos os horrores que vê e sofre, pela sua sede, fome ou cansaço, pelos seus ferimentos, pela morte dos seus camaradas. Enaltece-se o “espírito de corpo”, a coesão interna do grupo para onde é mandado, enquanto se lhe embotam os valores como solidariedade, piedade, respeito pelo “outro”. Tudo isto somado à dura realidade da guerra explica como homens que até eram comuns acabam a fazer coisas que nunca fariam em condições normais. Os governos totalitários, especialmente, têm tendência para treinar exércitos sanguinários; ajuda-os a manter-se no poder pelo terror.
Não pretendo de maneira nenhuma desculpar os soldados indonésios – os testemunhos mostram que há muitos que são verdadeiras bestas – , só quero chamar a atenção para o facto de que muito piores do que eles são os políticos e generais responsáveis pelas operações em que eles são envolvidos. Se olharmos para a nossa própria história também não passa pela cabeça de ninguém responsabilizar pela existência da guerra colonial os soldados portugueses que nela participaram, oferecendo o seu sofrimento, a sua juventude, e em muitos casos a própria vida, por aquilo em que acreditavam, enquanto o velho ditador fazia discursos sobre “a missão civilizadora dos portugueses no mundo” e mantinha o país e o império em desagregação num estado de provincianismo cego e parolo que deu os tristes resultados que todos conhecemos. Tantas mortes, tanta miséria que poderia ter sido evitada se o regime fascista de então tivesse sabido acompanhar a evolução da história e da humanidade começando a preparar atempadamente a independência do Ultramar... Mas não, pouco mais fizeram do que mudar a designação de colónias para províncias ultramarinas. Depois, a cada ano pelo 10 de Junho, numa cerimónia grandiosa, vinham entregar as medalhas (muitas delas póstumas) aos “heróis”.
A TV2 está a exibir um ciclo de filmes sobre o Vietname, alguns deles muito bons. Recomendo. É importante preservar a memória, das atrocidades também, para que as novas gerações não repitam os erros das anteriores. E é útil ver filmes que mostrem soldados, daqueles parecidos com os de verdade, cansados, com medo e fartos da guerra, em vez das porcarias propagandísticas dos “heróis à la Rambo”. E para terminar esta reflexão que já vai longa deixo-vos com um poema:
Receita para fazer um herói
Tome-se um homem,
feito de nada, como nós,
e em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
lentamente,
duma certeza aguda, irracional,
intensa como o ódio ou como a fome.
Depois perto do fim,
agite-se um pendão
e toque-se um clarim.
Serve-se morto
Reinaldo Ferreira,
Poemas
- publicado no jornal regional “Bora te Beio”, em 10 de Agosto de 1997
Ainda Timor
Não estava no país em Setembro, e não tinha acesso permanente a televisão, mas fui seguindo irregularmente e à distância as notícias sobre os terríveis acontecimentos em Timor e sobre as manifestações com milhares de pessoas na rua que aqui se faziam, o uso da roupa branca como símbolo de solidariedade, etc... Fui crítico em relação a algumas destas coisas, mas não nego que foram úteis. Reafirmaram, e fortemente, perante a nossa classe política que Timor é assumido como uma causa nacional (A causa nacional?) pelos portugueses, pelo que custaria a qualquer partido a perda de muitos votos qualquer tentativa de evitar um investimento claro do Estado no apoio à recuperação e desenvolvimento de Timor (como os manifestantes não se pronunciaram sobre os problemas nos PALOP não devemos esperar dos deputados uma viragem para melhor na forma como é pensada a cooperação com África...). Deram também alguns argumentos aos negociadores portugueses em instituições como a União Europeia, que podem agora apelar à compreensão dos seus parceiros europeus ou internacionais para a impossibilidade de certas cedências por imperativo eleitoral: “Meu caro embaixador, se eu aceitasse isso o meu governo sofreria um abalo ou cairia”. Se bem que aqui as coisas não são muito lineares. Olhemos para a forma como os militares portugueses têm sido afastados da presença nos contingentes das forças de paz estacionadas no território, apesar do desejo claro dos timorenses de que eles lá estejam...
Não creio que a Indonésia ou mesmo a ONU se tenham preocupado muito com os cordões humanos e as vigílias em Portugal naquela altura, embora seja claro que a opinião pública internacional - principalmente no Ocidente - teve uma grande importância no desenrolar dos acontecimentos, especialmente tendo em conta o discurso a favor dos direitos humanos e da autodeterminação que foi usado pelos governos para legitimar a intervenção no Cossovo pouco tempo antes.
Uma coisa que me preocupa um bocado em relação à “onda de solidariedade que varreu o país” é compreender as motivações dos indivíduos, e devo confessar alguma perplexidade. Estive há algum tempo numa manifestação convocada pela Amnistia Internacional aquando da presença na Câmara de Lisboa de um dirigente chinês (para “receber as chaves da cidade” das mãos do defensor dos direitos humanos João Soares), na qual não estavam mais que algumas dezenas de pessoas. Sabendo-se que a China é uma ditadura brutal, que massacra a sua própria população, que invadiu e coloniza o Tibete, como explicar o alheamento dos solidários portugueses? Será por Timor ter sido uma colónia portuguesa, onde as pessoas são católicas e há quem fale português? Mas então e a África lusófona, e Angola, que está em guerra há quatro décadas e onde há fome e miséria e violações de direitos humanos e refugiados? Se um refugiado timorense pede apoio numa embaixada portuguesa recebe - e muito bem - todo o apoio, se um angolano chega a Portugal e diz ser refugiado tem uma forte probabilidade de ver o pedido recusado. É certo que o timorense pode legalmente requerer a nacionalidade portuguesa, mas será este o único motivo? Será que as coisas não seriam diferentes para o tal angolano se houvesse milhares de pessoas nas ruas a favor de Angola e papéis nos carros a manifestar solidariedade e não sei o quê mais?
Os timorenses foram promovidos recentemente no imaginário colectivo português a umas figuras meio santificadas que devem caminhar uns 30 cm acima do chão, não são gente com personalidade e individualidade, são ou vítimas (para neles exercitarmos a caridade) ou guerrilheiros heróicos. Isto conduz a formas maniqueístas de pensamento que afectam não apenas o cidadão da rua mas também os jornalistas e fazedores de opinião. Se vêm a público divergências políticas entre a UDT (União Democrática Timorense) e a Fretilin (Frente Revolucionária Timor Leste Independente) nos órgãos da Resistência, chovem acusações de “falta de união”, especula-se sobre “a ânsia de protagonismo dos irmãos Carrascalão”, quando o que seria correcto seria elogiar o processo de desenvolvimento da democracia nas estruturas timorenses. Parecem estes comentadores todos esquecer que ao contrário das lógicas de partido único, a democracia se constrói pela gestão das divergências e pela pluralidade de opiniões e não pelo consenso. Este discurso balofo e cansado sobre a “falta de unidade entre os timorenses” é de resto muito antigo também no meio dos movimentos de solidariedade com Timor e ONGs. Passei os últimos oito anos a ouvir gente para quem um timorense só tem algum interesse se for redutível às categorias que mencionei antes, de vítima ou guerrilheiro, a dar sermões com ar paternalista sobre a necessidade da “unidade”. É um dos motivos porque me aproximei de organizações timorenses, pareceu-me uma atitude menos hipócrita do que a de certas organizações de solidariedade completamente facciosas (diga-se que algumas delas tem pelo menos o bom gosto de não fingir ser neutrais) que dominavam os palcos, e que arranjavam um ex-guerrilheiro para ir lá dizer qualquer coisa do seu agrado. Não me enquadro obviamente na esquerda radical que procura em Timor um novo Che, um qualquer poeta guerrilheiro de lenço vermelho ao pescoço que pretenda conduzir as massas à revolução, assim como não me enquadro na direita, rançosa, que olha embevecida para os coitadinhos que rezam orações católicas em português e que, lembrando saudosamente o império, sonha ir distribuir caridadezinha pelos nativos que, ao contrário dos ingratos dos pretos da África, gostam muitos dos portugueses e querem-nos de volta. Gosto dos timorenses porque são gente boa e hospitaleira e porque tenho entre eles excelentes amigos, mas também gosto dos guineenses, moçambicanos, portugueses, galegos, etc... etc... Não gosto do conceito d”o povo escolhido”, do povo que é melhor do que os outros todos. Não gostava quando ouvia falar disso no Antigo Testamento em relação aos judeus, não gosto agora que muita gente pensa assim em relação aos timorenses.
- publicado no jornal regional “Bora te Beio”, 20 de Janeiro de 2000