terça-feira, outubro 31, 2006 

Inocência

Fui há bocadinho levar a minha mulher às aulas, de motorizada, como habitualmente, que a vida de pobre não dá para carros. O trânsito era intenso mas fluía com facilidade. De repente, um adolescente de pé na berma da estrada pegou rapidamente numa pedra e atirou-a ao carro que ia mesmo à nossa frente, uma viatura do CRS (Catholic Relief Services). Para mim foi um acto de pura malvadez, que revela a má educação e a falta de valores do rapaz. Há por aí muitos adeptos de teorias da conspiração (ver p.ex. o blog “Timor-Online”) que dirão provavelmente que o moço recebeu 100 dólares para atirar a pedra, sendo 20 pagos pelos australianos, 20 pela Igreja Católica, 20 pelos partidos da oposição, 20 pelo Presidente Xanana Gusmão e o resto pelo actual Primeiro Ministro Ramos Horta. Se por acaso a GNR, ou outra força policial qualquer, apanhasse este delinquente ele naturalmente explicaria que estava só a defender o seu bairro e que os criminosos eram “os outros” (na altura não havia nenhum, mas isso não seria relevante para ele), e também naturalmente no dia seguinte o STL publicaria uma notícia na 1ª página onde os amigos e familiares do moço se queixariam da brutalidade e parcialidade das forças policiais internacionais.

Há muitos sítios no mundo onde a culpa morre solteira, em Timor morre solteira, “virgem” e alegadamente sem nunca ter sido vista sequer a andar de mãos dadas com quem quer que fosse.

segunda-feira, outubro 30, 2006 

Até quando?

Continuamos em crise. O clima de insegurança mantém-se. Os rumores não desaparecem. Multiplicam-se as versões para uma só história dramática, daquelas que deitam muito, imenso sangue! Melhor dizendo, há versões para todos os gostos. O bandido como o herói tem várias caras.
E “diz-se” muita coisa. Mas ainda que muita coisa se diga, tudo ronda à volta da crise, da situação, da insegurança…
Crise, insegurança, medo, armas, rama ambom, FDTL, Polícia, australianos, GNR, heróis, bandidos, líderes, golpes, partidos, pedradas, pedras, refugiados, campos, golpes, dinheiro, bebida, rumor, boato, morte, sangue… são palavras repetidas até à exaustão, todos os dias, a qualquer hora.
Ouvem-se histórias parecidas sobre a vitória acidental de alguém que escapou a uma pedrada, sobre a desgraça de outro alguém que passou na hora errada pelo lugar errado; relato de alguém que emudeceu repentinamente com receio de que a pronúncia o/a denunciasse. Choros, lágrimas, revolta, dor silenciada de quem perdeu um familiar quando menos o esperava e pressa na homenagem a quem partiu desta Vida, porque o perigo está à espreita…
Todos estão certos de que o vizinho com quem não se simpatiza é o bandido, ninguém ignora que o político de quem não se gosta faz parte do grupo de golpistas, tal como também ninguém desconhece que o seu herói não passa de um vulgar bandido…
Assiste-se a uma completa desvergonha, a uma absoluta inversão de valores. Aceite, apesar de tudo!
Falamos de reconciliação. Mas vamos somando ódios, desconfiança, insultos… Perdemos as referências. E vamo-nos matando…
Estamos numa encruzilhada e teimamos em não escolher o melhor, o único caminho. Queremos paz, tranquilidade, mas nada fazemos porque isso é trabalho de outrem… enquanto outros buscam a paz, nós vamos estando assim. De braços caídos, esperando; ou vamo-nos deixando ficar ao sabor dos nossos humores, de um humor corrosivo, mortífero!
Quereria escrever sobre o que Timor tem de bonito, sobre o lado apetecível deste pais. Quase me sinto culpada por querer escrever sobre a beleza, os hábitos e costumes de Timor! E café em flor, festas, praias, paisagens, paz, calma, segurança, o que quer que me ocorra afigura-se-me fabricado, falso. Como se em Timor nada mais houvesse para além da crise, insegurança, medo, armas, rama ambom
Até quando?

sábado, outubro 28, 2006 

Terra de loucos e de ninguém



Um homem de determinada zona foi morto por outro de diferente ponto geográfico.
E porque um campeão não gosta de perder, foi em nome da zona geográfica do executor e da necessidade de marcar mais um ponto no campeonato dos homicídios que novo executor deu asas à sua fúria assassina. E assim surgiu mais um matador. E assim foi morto mais um homem. Na praia. Porque o executor tinha de se mostrar mais campeão, porque o homicida sabe que pode matar impunemente; porque a vingança anda à solta e de braço dado com o desvario que atacou Timor-Leste.
Dizem muitas vozes que o morto da praia implorou que não o matassem, que tinha filhos, que parassem. De joelhos, chorando… Debalde! Os outros não se comoveram e mais uma vida foi ceifada em nome de coisa nenhuma. Ou do ódio, da alienação, da insensatez.
Cada dia que passa tornamo-nos mais bárbaros, mais loucos, mais irracionais. Gente perturbada! Nada nem ninguém se respeita. O país está destruído. A vida perdeu todo o valor. Mata-se, pelo simples gozo de matar.
E, se se cumprir o dito de que na vida é mais frequente a vitória dos maus sobre os bons, o mau que está por detrás deste desvairo colectivo e que vier a ganhar o país para si, sairá – ou sentir-se-á -vitorioso mas herdará uma terra de ninguém.

sexta-feira, outubro 27, 2006 

À espera que a loucura dê lugar ao discernimento!

Gaza Strip, Gaza Street, Texas. Três nomes diferentes para a mesma realidade, a mesma violência, sempre igual, sempre gratuita.
A zona mais complicada da cidade nestes últimos dias, a esta hora da noite, até parece um mar de calmaria!
Não fossem duas carrinhas brancas da ONU estacionadas junto ao açafate gigante que faz as vezes de monumento na rotunda do aeroporto, a coberto da escuridão e a recordar-nos que aí estão para manter a segurança, e todos pensaríamos que a paz tinha voltado. Pura ilusão!
Está tudo silencioso. Claro, os campeões precisam de descansar que o amanhã exige sempre que estejam cheios de energia, bem dormidos, bem descansados para que não lhes falte a força e a destreza! Para que a pedrada saia com força destruidora, certeira, fatal, melhor que a do adversário do outro lado da rua! Ganha o campeonato aquele que tiver mais perícia a destruir! A matar!
Quando ainda havia paz, no caminho interior (aeroporto-centro de Díli) tal como na marginal, as ruas animavam-se ao fim da tarde e o movimento das pessoas num vaivém constante estendia-se pela noite fora.
Na marginal, os petiscos nas improvisadas barracas junto da praia constavam de espetadas grelhadas, milho ou peixe assado; na via interna, junto à estrada, defronte das barracas em que viviam, vendia-se excelente leitão assado, com a pele tostadinha e molho de “sutate” (um misto de soja, mel e especiarias) com ou sem piripiri. Grelhado a preceito, servido com apuro pela vendedora de luva de plástico calçada, o leitão satisfazia até o gosto dos amantes mais exigentes da boa comida.
Mas, logo a seguir aos incidentes do fim de Maio, incendiaram as barracas daquela zona e as vendedoras que me pareciam vietnamitas desapareceram.
Há pouco mais de um mês, porém, fizeram uma tímida reaparição. Duvido que o negócio esteja a florescer. A zona desertificou-se; as pessoas fecham se em casa mal o sol se esconde; deixou de haver segurança para que alguém cometa a ousadia de tentar fazer vida de noctívago (entenda-se, até às 21h00, 21h30…)
Lá mais para a frente, os vendedores dos veículos “tiga-roda” (três rodas), de lamparina acesa para espantar a escuridão, vendiam bebidas, caldo quentinho, fritos variados e algumas especialidades com sabor mais indiano e indonésio que timorense. Aqui e além, viam-se grupos de jovens, sentados à beira da estrada conversando, sem cuidar de saber da passagem tangente dos carros …
Nem foi assim há tanto tempo. Em Abril ainda era assim. Agora, esfumou-se tudo. Tudo agora são recordações de um outro dia em que ainda era possível ter a veleidade de pensar que Timor-leste havia sabido ultrapassar com competência os traumas do penoso período da ocupação.
Hoje… bem, hoje é tudo muito diferente. Hoje estamos nas bocas do Mundo porque somos anormalmente violentos, auto-destrutivos.
Hoje, as pedras espalhadas no meio da via pública estão ali a recordar-nos a cada instante que a paz está longe e elas podem ser lançadas sempre que os campeões quiserem…
Hoje, estamos noutra! Hoje, mata-se em cada esquina, em qualquer hora, por qualquer ou sem motivo nenhum.
As memórias desse outro tempo provocam-nos alguma desesperança. E desgaste também.
Cansa e não é fácil ter de estar assim, de braços caídos, assistindo a este desnorte colectivo, impotente, simplesmente, apenas à espera que a loucura dê lugar ao discernimento!

quarta-feira, outubro 25, 2006 

Desordem!


Depois do desassossego da tarde, a situação manteve-se calma, silenciosa até à meia-noite quando, por um período mais longo que o normal, os helicópteros se encarregaram de emprestar agitação a este bairro onde, depois do pôr-do-sol e em tempos normais, os ruídos mais vulgares pertencem a grilos, tokés ou galos. Ou a música de um casamento, de uma festa.
De manhã, entendi o porquê de tanto alvoroço.
Eram oito horas quando saí de casa. A meio da rua encontrei o Jonhny que me pôs ao corrente da situação:
- A noite foi má… Nem dormimos! Há meia hora, houve confusão e muitas pedradas, mas as forças internacionais chegaram e todos sossegaram. Vá com cuidado. Mantenha os olhos bem abertos!
Realmente, ali na rotunda do aeroporto, o ambiente era desolador. As pedras, enormes!, enchiam a via, umas casitas, pequenas, estavam destruídas. E à entrada para o aeroporto estavam estacionadas as forças australianas, parecendo atentas ao movimento na zona. Aparentemente, havia segurança. Só não havia funcionários nem veio avião…
Lá mais para a frente, mesmo à entrada da ponte, estavam as forças malaias. Controlando o movimento do bairro de Bebonuk.
Prossegui o meu caminho e só no local de trabalho soube que hoje, a exemplo de ontem, era feriado. Fim do Ramadão.
De regresso a casa, a agitação e o movimento na rotunda já eram bem grandes, tendo-se alastrado à rua onde moro. Disse-me um transeunte que as coisas continuavam feias…
A via principal foi cortada ao trânsito e, precisando de voltar ao centro da cidade, fui pela ribeira. Durante todo o dia, manteve-se o alvoroço especialmente em Comoro, mas não só aqui.
Balanço de mais um dia de agitação na cidade de Díli:
Barreiras. Controlo do movimento dos carros. Incêndios de casas e tendas. Troca de provocações, pedradas e insultos. Atiraram-se culpas. Um homem morreu. Três elementos das forças internacionais ficaram feridos, com mais ou menos gravidade. E nós perdemos um pouco mais de amor-próprio. E também nos destruímos mais um pedaço.
Preparamo-nos para o dia de amanhã que, estamos quase certos, está mais próximo de ser igual ao de hoje do que um dia calmo. Até por isso, o segurança de serviço de uma casa particular se fez acompanhar de mulher e três filhos pequenos levando-os para o seu posto de trabalho, não vá o diabo tecê-las e alguém assaltar ou destruir a casa durante a sua ausência em trabalho nocturno.
Todos se mostram cansados. Todos dizem que o povo timorense não merecia isto. Alvitra-se que alguém estará por detrás desta desordem. E deixa-se, permite-se que o desordeiro continue a agir impunemente.
Não sei se poderemos considerar a violência como uma questão cultural, algo que herdámos dos nossos antepassados, avoenga… Se assim é, quanto tempo mais será preciso para extirpar esta característica menos boa da nossa cultura? Ou vamos aceitar que, sendo parte da cultura, é intocável e, sendo intocável, é vulgar, comum, fatal que nos destrua até que não tenhamos nada, até que não sejamos ninguém, até que deixemos de ser Nação?

 

Heróis

Acabo agora mesmo de voltar de uma tentativa frustrada de ir a casa. A policia internacional, com apoio de alguns agentes da PNTL ja regressados ao activo, bloqueou a estrada na ponte que da acesso ao meu bairro. Estao a decorrer confrontos graves na zona proxima do aeroporto. Isto depois de ter havido barulho de lutas e disparos (talvez das balas de borracha da policia e tambem de gas lacrimogenio) durante toda a noite. Hoje de manha, ao sair do meu bairro, um policia neozelandes pediu-me ajuda como interprete para falar com alguns moradores. O policia queria saber qual era o problema ali, e um senhor local dizia que nao havia nenhum, o policia perguntou entao porque e que 15 minutos antes havia ali 100 pessoas armadas com paus e pedras, e o homem respondeu que eles "estavam so a defender o bairro". Os "defensores dos bairros" sao um dos problemas mais graves que Dili enfrenta, é que muitos deles consideram defesa do bairro agarrar numa catana ou em pedras e ir por exemplo fazer operacoes de bloqueio nas estradas a pedir os cartoes de registo para poderem espancar e impedir a entrada a quem tiver nascido na outra metade do país. Nao ha desportos radicais para a juventude rebelde em Timor, o que mais se aproxima, o que eleva os níveis de adrenalina e dá a oportunidade de ser um às perante os colegas é andar à porrada. Há uns anos atrás já havia batalhas campais destas, mas eram em menor escala e os que nelas participavam eram olhados pela populacao em geral como bandidos e vadios, o que é diferente agora é que os grupos adversários passaram a ser vistos por muita gente como "os nossos" e "os deles" conforme a parte do país em que nasceram. Basta estar sentado um bocado a conversar com um grupo de populares em que todos sejam oriundos da mesma metade de Timor-Leste para ouvir explicacoes para os conflitos que comecam sempre por "a culpa é deles, eles é que provocam os nossos, a cultura deles é mesmo assim violenta, os nossos só se defendem". E assim, em vez de ficarem sentados quietos nas suas casas e chamarem a polícia quando há problemas, muitos cidadaos preferem fazer "justica" pelas suas próprias maos, ou com a sua própria catana, ou faca, ou moca, ou calhaus... Depois, quando sao entrevistados pela televisao ou pelos jornais, todos explicam que "estavam so a ver", e denunciam as accoes dos policias "malvados" que nao batem nos bandidos (que sao "os outros") e agridem ou prendem os "defensores do bairro". A julgar pelas noticias os lutadores timorenses sao verdadeiramente excepcionais - todos os feridos que aparecem "estavam só a ver", nenhum estava envolvido directamente nas lutas.
Alguns malais dizem-me às vezes que isto vai ser mais um país falhado, desses onde há golpes de Estado todos os anos, e onde a populacao se mata sazonalmente por razoes de discriminacao étnica (ou no caso timorense discriminacao geográfica). Eu discordo. Apesar do medo, apesar dos confrontos, apesar dos covardes que nada constroem e baseiam a sua vida na satisfacao de aterrorizar os outros, há muitos timorenses - e eu acho que ainda sao a maioria - que querem construir um futuro. Os meus alunos que, apesar de tudo, arranjam maneira de vir as aulas estao entre esses. Gente como a Mónica, que caminha todas as manhas e tardes uma distancia enorme entre a Faculdade e a sua nova morada (a sua casa foi atacada por gente de Oeste por ela ser natural de Ossu e agora vive com familiares noutra parte da cidade) , e que tem receio de andar de microlete por causa dos controles feitos às vezes nas estradas por jovens ocidentais em busca de gente do Leste. Ou o Gilberto, de Maliana, no Ocidente, que apareceu - sozinho, só ele - para fazer um exame na época em que se vivia uma orgia de loucura e violencia nas ruas da capital e o país esteve à beira de uma guerra civil, o Gilberto que desde essa altura já teve que mudar várias vezes de residencia por causa dos ataques e que veio às aulas há umas semanas no dia seguinte à noite em que a casa em que estava a viver foi queimada.
Há outros Gilbertos e Mónicas em Timor-Leste. Sao estes os meus heróis.

terça-feira, outubro 24, 2006 

Nostalgia, ansiedade..



De repente, ouvem-se as sirenes e, logo a seguir, os gritos de uma multidão em correria; ao mesmo tempo, o toque de alarme da sineta, o aviso de ataque iminente.
Encho-me de coragem e, do portão, dou uma espreitadela. Em país de rumores, ei-los que surgem rápidos como o vento; cada um conta a sua história. Tudo gira em torno da violência. Aliás, este foi mais um dia marcado pela violência. Assiste-se ao agravamento da situação com a instabilidade, a tensão e a violência a aumentarem de tom desde que foram conhecidas as datas das próximas eleições presidenciais e legislativas.
Repete-se até à exaustão a pergunta: aonde iremos parar?
Ninguém parece ter resposta e as soluções tardam.
Cheguei esta manhã de Darwin. O passeio que separa os parques de estacionamento do aeroporto está cheio de tendas; substituiu uma grande extensão do campo de refugiados que ficou em muitas más condições aquando da primeira chuvada da época.
Junto ao terminal das malas, vêem-se muitos garotos e suas mães displicentemente sentados, distraídos, observando, acompanhando o movimento do aeroporto. Sentem-se em sua casa. Mexem-se bem. Estão à vontade.
As crianças do campo, tal como faziam outras crianças desde o tempo da UNTAET, oferecem-se em bando para fazer segurança ao carro, transportar as malas ou levar de volta o carrinho de transporte de bagagem, desejosos da gorjeta; tornam-se mais atrevidos quando percebem que o passageiro é estrangeiro, fazem cara feia mas ficam ligeiramente envergonhados quando se lhes diz em tétum que as crianças devem andar na escola e brincar em vez de trabalhar!

Tão depressa como surgiu, desaparece o alvoroço e tudo retorna ao silêncio.
Reconquistada alguma tranquilidade, oiço no espaço musical da RTTL um jovem entoando em tétum “Silvie, hau nia nurak”, uma versão de “Silvie, mon amour”.
Foram uns instantes breves, tive a ilusão de que a vida decorria calma e serena em Timor-Leste, senti-me transportada aos dias calmos da minha adolescência. Em simultâneo com a nostalgia desses tempos de paz, de mim se apodera alguma ansiedade e, de mim para mim, refaço a pergunta mil vezes feita, mil vezes abandonada, mil vezes sem resposta: aonde iremos parar?

domingo, outubro 22, 2006 

Ouvem-se violinos?


Não seria elegante da minha parte criticar o país onde me encontro convidada e certamente não o farei. Mas, agora que já consigo postar as minhas impressões ao fim de quase uma semana de forçada ausência, não resisto a dizer que as dificuldades – pelo menos algumas! - não são um exclusivo de Timor-Leste! É triste consolação, eu sei, mas soube-me bem dizê-lo, escrevê-lo!
O quarto confortável do elegante complexo hoteleiro onde estive hospedada estava bem apetrechado. Bem visível, à minha frente o dispositivo – dir-se-á assim? - para “dial-up Internet” parecia não oferecer nenhuma dificuldade, pelo que me propus estabelecer rapidamente a ligação. Não tive sorte nenhuma pelo que desci a dois e dois as escadas para pedir ajuda ao penteadíssimo recepcionista.
Sou um zero à esquerda em informática no que me senti bem acompanhada pelo penteado, que não me deu ajuda nenhuma e, mesmo tendo olhado para todos os lados tipo homem do assobio, de quem-não –tem-nada-a-ver-com-o-assunto, não conseguiu disfarçar que sabe ainda menos que eu. É uma vez mais triste consolação, eu sei mas, uma vez mais, soube-me bem dizê-lo, escrevê-lo!
Depois de nova tentativa no dia seguinte, fiquei ciente de que, para o superpenteado, Internet devia ser uma alma de outro mundo… Desisti, após mais umas tentativas sem sucesso.
Sei do que se passa em Timor-Leste através dos telefonemas da família. Note-se, telefonemas de Timor para a Austrália! Porque daqui para Timor, as chamadas são tão caras que 30 dólares australianos não permitem mais do que meia dizia de mensagens e chamadas daquelas muito breves, “Tudo bem por aqui. E por aí?”, com resposta adivinhada, pois claro, que para isso serve empatia e telepatia entre pessoas que se conhecem bem!
O sítio, conhecida estância turística que foi em tempos uma colónia penal inglesa, é francamente bonito, agradável, arrumado e plantado ao pé do mar, onde se vêem alguns surfistas sobre as ondas, outros amantes da vida ao ar livre ginasticando, estendendo as pernas, correndo… Está frio e chove. Dizem que não é normal. Talvez por isso haja pouca gente nas ruas.
Timor-Leste continua a suscitar a curiosidade de muitos, interessados no que se passa no novíssimo país do 3º milénio. Por exemplo, falarei eu português com os meus compatriotas? E tétum, dominarei a língua? Poderá Timor ser considerado parte integrante do Pacífico? E, claro, não poderia faltar: porque haverá tanta instabilidade, porque não nos entenderemos depois de tanto sofrimento?
Bem, como facilmente se adivinhará, se não quero ser deselegante com quem me convidou, menos me apetece perder a elegância focando o que de mau acontece no meu país timorense. A questão fica facilmente arrumada tal como se satisfaz a curiosidade - que, aliás, me parece genuína – explicando que em Timor-Leste, há algumas ondas, claro, mas tudo é compreensível, são coisas normais, simples questões de pormenor num país sofrido que ainda agora se tornou independente. Até porque todos sabem quão difícil é crescer, construir do zero!
Ouvem-se violinos? Será música, estarei a dar música? Talvez…

terça-feira, outubro 17, 2006 

Timor, visto de longe

Estou ausente de Timor até daqui a uma semana.
Não me sinto muito à vontade para escrever sobre o relatório que, sei, já foi publicado.
Visto de longe, de Brisbane, tudo se me afigura demasiado estranho e, por mais que tente, não sou capaz de arredar a sensação de desconforto. Para além do mais porque também aqui, aqueles que sempre se interessaram pela causa timorense não disfarçam a desilusão pelo desaire timorense.
Em alturas como esta, sinto uma revolta surda por não poder argumentar que estão enganados, que houve exagero ou manipulação e que tudo vai ficar rapidamente bem e depressa! E quando assim é, opto por me manter em prudente silêncio, não vá a revolta que sinto levar-me a dizer o que não devo.
é que vou fazer agora. Até que me passe a angústia ou que me ocorra alguma história que me leve a passar a mensagem de que Timor é mais do que este país em constante clima de insegurança.

sexta-feira, outubro 13, 2006 

Ei-la, a chuva!

De repente, ouve-se um barulho ensurdecedor. Não é do gerador, não estamos a ser sobrevoados por nenhum helicóptero... e ei-la, a chuva, faz a sua entrada triunfal, sem cerimónia!
A chuva de ontem à noite desabou sobre a cidade à vontade durante uma hora. A época das chuvas começou, pois, em tempo oportuno.
O ar impregnou-se do cheiro da terra que, tão ressequida, embebeu sofregamente a água em menos de um ai; as folhas das árvores livraram-se da poeira; o ar tornou-se mais límpido; a ribeira de Comoro continua seca, sinal de que ainda não choveu bastante nas montanhas. Mas nos campos de refugiados espalhados um pouco por toda a cidade, a chuva deve ter inundado tudo!
Daqui a duas semanas, se a chuva continuar a cair diariamente, as montanhas castanhas que abraçam Dili estarão atapetadas de verde!
Nas montanhas, onde já deve ter sido preparada a terra para as sementeiras, vamos a ver se haverá tranquilidade suficiente para que os agricultores possam aproveitar a dádiva da Mãe Natureza!
E depois, sem paragem, irão suceder-se os pequenos sinais de um novo tempo. Um desses sinais é o da chegada de novos insectos, alguns deles ocupantes nocturnos e inoportunos das varandas, fascinadas pela luz que irradia dos candeeiros.
Nos meus tempos de menina e moça, bem garota, quando vivia na montanha, e quando ainda a energia eléctrica não fazia sequer parte dos nossos sonhos, as noites eram iluminadas pelo “petromax”, candeeiro a petróleo que difundia uma luz razoável.
Na cozinha, quando o petróleo não chegava a tempo de Díli, a iluminação era muitas vezes conseguida pelo uso do camim. O miolo da noz da árvore do camim, de cor amarelada,era reduzido a uma pasta com o qual se envolvia a extermidade de um pedaço de pau de café mais ou menos comprido ao qual se pegava fogo. Resultava, garanto!
Na varanda, de um momento para o outro, o petromax ficava rodeado por formigas voadoras, bem grandes, gordas! O espaço era delas! E nós sacudíamos o ar que esbofeteávamos como a nós próprios, desesperados, impotentes... e elas, ali, senhoras donas volteando, saracoteando.
Devo acrescentar que, nesses tempos, também não havia insecticida e, ou convíviamos amigavelmente com elas, ou nos batíamos, ou nos desesperávamos, ou arranjámos forma de as retirar do nosso sítio.
Optava-se sempre pela última hipótese.
No chão, colocava-se um recipiente cheio de água, precisamente por baixo do petromax, reflectindo a sua luz. E era vê-las, loucas e fascinadas por mais um elemento de luz e brilho, em delírio pela certa, mergulhar de cabeça na água! Daí a pouco, a bacia estava repleta de formigas.
Deitavam-se fora? Claro que não! O seu destino era outro e os habitantes da montanha sabiam bem que fazer com elas.
Então, era assim:
Retirava-se totalmente a água das formigas, fritavam-se ligeiramente em banha, com ou sem sal, e servia-se!
Eram um petisco de comer e chorar por mais, digo eu enquanto recordo e imagino que ainda guardo na memória o sabor deste petisco apenas experimentado em outros dia bens longínquos!
Hoje, não sei se seria capaz de as comer. Também comi muita cigarra grelhada sobre as brasas e agora, só gosto mesmo é de as ouvir cantar...

quarta-feira, outubro 11, 2006 

Bicho nojento! Malvado Mafarrico!

Desconfiei e não levei a sério. Mas estava mesmo por detrás da porta o mafarrico malvado!
Realmente, mais vale viver o dia a dia, sempre à espera do perigo– que o diabo tece-as mesmo! - e não cair na tentação de imaginar que os dias estão mais calmos! Pelo menos não haverá sucessão de desilusões ao ritmo dos acontecimentos desagradáveis que se tornaram o prato do dia na cidade.
Em dois dias, ceifa-se a vida de dois seres humanos! Abatem-se mais depressa homens para gozo pessoal, estilo desporto, do que gado destinado a alimentação.
Vai alguém a enterrar? Pronto, surgiu a desculpa! Já lá vai o tempo em que o cemitério de Santa Cruz era respeitado! Agora, trocam-se pedradas, a ver quem tem melhor pontaria, quem danifica mais, quem mata mais depressa!
Nas ruas os assassinatos a sangue frio acontecem à vista de quem esteja por perto – tudo acontece natural e impunemente! - , os assassinos desaparecem céleres como o vento, não deixam rasto e preparam calmamente o ataque que virá a seguir!
Nos becos, nos bairros populares, os confrontos, os ataques, os roubos e as ameaças acontecem de forma igualmente traiçoeira mas mais dissimulada…
Passa uma mulher e tem o azar de trazer um relógio no pulso ou atende uma chamada no telemóvel? Ah, mas isso representa um insulto para o ladrão, o senhor! E é assim que em resposta ao murmúrio ameaçador “passa-me depressa isso para as mãos, porque senão…” a mulher passa ligeiro o que tem e lhe custou provavelmente um mês de trabalho não vá acontecer-lhe um acidente!
Aproxima-se a microlet e vem cheia de gente? Então é o momento de mandar parar o autocarro! E a pergunta sai em disparo de silenciosa arma, quase num sussurro, sem sorriso: quem está aqui de Lorosae, ou Loromonu (questão colocada de acordo com a origem geográfica do inquiridor em serviço) ?
Pobre de quem responder contra o que o inquiridor pretende! Temos castigo, pois claro!
O homem varre a rua, distraidamente, metido com os seus pensamentos? Talvez o faça como disfarce enquanto espera por uma oportunidade para surripiar o zinco “esquecido” no telhado do vizinho!
Do nosso país se dirá que “aqui vale tudo”!
De nós, timorenses, se ajuizará que somos uns selvagens.
Dos nossos líderes não faltará quem pense que subiram demasiado depressa e se deixaram deslumbrar pelo Poder. Pois é, o Poder cega! Tão cegos e tão impantes de vaidade porque tinham o Mundo a seus pés que se distraíram, tropeçaram e nem perceberam que estavam a conduzir o país para o caos!
Belzebu maldito! Ruim! Bicho nojento! Malvado Mafarrico!

segunda-feira, outubro 09, 2006 

Quando voltaremos a ter paz?



A violência veio para ficar. Um jovem perdeu a vida. O atacante esfumou-se, desapareceu sem que ninguém mais o visse.
A paz tarda e nós estamos todos demasiado cansados. Todos, não. Ainda há alguém sedento de sangue e de vingança, cheio de ódio, enraivecido. Não fora isso, como se explica que alguém, um jovem, um ser humano e em pleno dia, tenha sido assassinado assim a sangue frio?
Em nome de quê e de quem se mata? Porquê?
Que objectivos perseguem os assassinos que, impunemente, actuam neste país?
Estaremos todos loucos? Estamos tão mal que nos esquecemos totalmente de que somos todos parte desta Nação?
Muitos, quase todos estão demasiado cansados, desiludidos, tristes, envergonhados, assustados. Mas encolhemos os ombros! Afinal, aconteceu com o outro… não connosco…Até um dia em que chegará a nossa vez. Se não fizermos nada. Se nos mantivermos de braços caídos à espera que surja um milagre e a paz seja restabelecida em Timor-Leste! E então será talvez tarde de mais. Não restará ninguém para contar. Sem timorenses, deixará de haver Timor-Leste.
É isto que se pretende para Timor-Leste? Quem pode desejá-lo?

sábado, outubro 07, 2006 

Consciência estimulada


Bela, a cerimónia de abertura dos Jogos da Lusofonia! Gostei. Tal como gostei que a televisão timorense a tivesse transmitido em directo.
Talvez que assistindo ao desfile de centenas de atletas de onze países e regiões onde se fala português, os descrentes e desconfiados da bondade da nossa permanência na CPLP tenham compreendido que esta comunidade é constituída por países independentes, soberanos, de todos os continentes, que não correm o risco de perder a independência e não vão ser de novo colonizados; que só há vantagens em integrarmos organizações nas quais haja interesses comuns. E o afecto, como a língua são, comuns aos oito países da CPLP.
Era bom que, de entre os desconfiados e descrentes, houvesse quem tivesse percebido que, em vez de fabricarmos à pressa novas e mal consubstanciadas amizades e alianças baseadas apenas em interesses de grupos e de ocasião, talvez fosse melhor consolidarmos os elos que já existem.
Vivi uns meses em Macau, entre 1982 e 1983; sempre que pude, revisitei a região, antes e depois da sua transferência para a China. Sempre me espantou o ritmo do desenvolvimento macaense! Conseguido por mérito próprio, é bom que se acrescente.
Recordo que, na década de 80, pouca gente falava português. Mas, hoje, é diferente. Macau percebeu que a diferença passava pela língua. E a China vendo que dai não viria mal nenhum, não bloqueou o ensino do português.
Perante aquele espantoso espectáculo de luz e de cor, muitos pensamentos me afluíram à cabeça ao mesmo tempo que fui experimentando sensações contraditórias entre a alegria, a tristeza, o orgulho, a vergonha, a humildade, a incerteza…
Mas hoje importa apenas o lado positivo, até porque “tristezas não pagam dívidas”.
Gostei de ver a minha gente - a do lado de cá, deste lado do Mundo que antigamente era Oceânia e agora passou a Ásia - , de ar alegre, sorridente, vestida de festa! Gostei do ar - entre o emocionado e o orgulhoso - do presidente do comité olímpico de Timor-leste, o meu irmão João, quando o Eládio Clímaco anunciou a entrada da delegação timorense.
Uns minutos antes já me tinha emocionado com a passagem da delegação de Portugal. E claro que gostei igualmente de ver os atletas do meu país de “charme europeu”!
Em momentos como este, nunca sei se sou mais timorense, se sou mais portuguesa. Sinto que sou as duas coisas. E gosto, gosto muito da minha condição de luso-timorense. Gosto muito de ser, adoro ser mestiça!
Ainda que saiba que ao afirmar isto, não faltará quem vocifere contra os mestiços que “não são carne, nem peixe, não são de uma terra nem de outra, não são brancos nem pretos”! Ou que sendo filha de uma mulher de Lorosa´e, não deveria estar em Loromunu, zona geográfica onde, aliás, nasci.
Talvez esteja ainda contagiada pelo ambiente de festa que a transmissão da TV deixava transparecer; talvez a transmissão tenha estimulado a consciência da minha mestiçagem e provavelmente sacudiu-me o suficiente para que me apercebesse de uma verdade incómoda: é que, muitas vezes, deixando-se levar pelas vozes dos fundamentalistas que acreditam que o Mundo é feito apenas de branco e preto, os mestiços sentem-se culpados da sua origem e mal reagem à marginalização. Tanto, que também os há os que se encolhem e os que escolhem uma parte em detrimento de outra! E, no entanto, deveria apenas sobressair o sentimento de profunda satisfação por serem fruto de uma união de dois seres provindos de lugares, educação e cultura diversa!
É por me sentir hoje tão segura e de consciência tão estimulada que concluo dizendo quanto lamento que haja quem se atenha a estas pequenas coisas de raça, de cor, ou de geografia e as utilize como arma de arremesso ou de insulto. Porque, quem assim se deixa ficar, quem assim pensa, quem assim segrega, nunca entenderá que o Mundo é povoado de seres humanos e esses não podem nem devem ser catalogados.

sexta-feira, outubro 06, 2006 

Credibilidade, precisa-se!

Amanhã não haverá entrega do relatório da Comissão Independente sobre a crise político-militar de Abril e Maio passado.
Mas já se foi adiantando alguma coisa. E sem recorrer a rumores, mas fazendo fé nas declarações oficiais, há muita gente com responsabilidade na condução política deste país com responsabilidades na crise...
O representante em funções do secretário-geral da ONU, Finn Reske-Nielsen defendeu que “a impunidade em Timor-Leste só termina com a responsabilização de quem instiga a violência”, lê-se na Lusa que também diz que “ No apelo feito hoje a partir da Presidência da República, depois de um encontro com o presidente do Parlamento Nacional, Francisco Guterres "Lu-Olo", e o primeiro-ministro José Ramos-Horta, Xanana Gusmão antecipou que o conteúdo do relatório e as medidas propostas para responsabilização "poderão ser duros para muitas pessoas, duros para os líderes, duros para os cidadãos, para os civis e para as forças militares e policiais".
Acrescente-se apenas que o povo espera que as suas expectativas relativamente à responsabilização de quem delienou, comandou e executou tanto desmando não sejam defraudadadas e que o sistema judicial execute “as recomendações que vierem a ser produzidas pela comissão”.
Que a Justiça funcione. É preciso. Para que nunca mais se ponha em causa a existência deste país. Para que não se vaticine que Timor-Leste pode tornar-se ou já é um Estado falhado. Para que não se confunda país com feudo nem pessoas com robots. Para que nunca mais o desespero e o medo justifiquem a ditadura como alternativa à democracia.
Que desapareçam a xenofobia, o racismo, a discriminação, o clientelismo, a corrupção, o insulto, a promiscuidade, a intriga, a arrogância, a injustiça. Tudo quanto de muito mau e de braço dado com o medo e a impunidade, campeou livremente neste pais, seja substituído pela paz, tolerância, respeito, dignidade, responsabilidade e Justiça.
É difícil? Pois, sim. Mas, se não fizermos nenhum esforço no sentido de recolocar Timor-Leste no mapa das nações credíveis, alguém nos levará a sério? E se não formos nós, quem se esforçará?

quinta-feira, outubro 05, 2006 

Palavras para quê?

Há sempre o receio de que o diabo espreite por detrás da porta mas, estou hoje confiante de que ele tenha ido passear ao mais profundo dos infernos, pelo que aproveito o intervalo para participar que não tem havido notícia de apedrejamentos! Pelo menos nada tem havido digno de registo!
Até chegar a Balide e seguir no sentido da marginal , passo por umas quantas zonas problemáticas,com o pavimento semeado de pedras aqui e além esquecidas para uso posterior; em qualquer uma dessas zonas, o ambiente é de calma. É certo que as ruas estão quase desertas de pessoas e de carros e, até mesmo a IC 19 cá do sítio – que começa logo a seguir à ponte de Comoro em direcção a Díli – está sem hora de ponta.
Fazendo jus ao que é usual, citem-se as vozes do povo que dão como certo que a desertificação da cidade se deve ao receio sentido por quem já adivinhou quem está implicado ou tem responsabilidades na crise timorense. São muitos os adivinhadores, em número coincidente aos que que têm medo de problemas e, coincidentemente ou não, são esses os que primeiro se refugiam na montanha.
Sabe bem respirar fundo e comentar: a cidade está calma!
De súbito, bem sussurado e vindo de longe, lá mais para os lados do subconsciente, há uma voz, de qual velho ou velha do Restelo, contrariando-me, avisando-me de que não há certezas de que a calma voltou definitivamente. Não lhe querendo dar ouvidos, corrijo e digo então: Até ver, por agora, a cidade está calma!
Dou uma vista de olhos aos jornais. E dou de caras com a notícia de que refugiados de vários campos se reuniram e, em virtude de ainda não ter sido reposta a paz na cidade, solicitam ao Governo que imponha a ditadura em substituicão da democracia!
Estarei a ver bem? A ler correctamente? É verdade que a situação ainda continua calma fora de portas. Eu é que, fiquei de boca bem aberta. De estupefacção. E antes que perca totalmente a calma ou que me dê um mau jeito na boca deixando-a aberta pasto ou morada de moscas e mosquitos, vou fechá-la e remeter-me, já, ao silêncio!
Palavras para quê?

terça-feira, outubro 03, 2006 

As iscas do Zé do Benfica

Há muito, muito tempo, talvez há uns quarenta anos, o bar do Sport Díli e Benfica enchia-se ao fim da tarde, quer houvesse quer não actividades desportivas. Também não se enchia propriamente só de jovens desejosos de dar uma espreitadela ao treino de basquetebol das meninas jogadoras nem às aulas de patinagem artística das alunas do liceu Dr. Francisco Machado.
Nada disso!
A razão era bem mais prosaica e prendia-se com o estômago, com a arte de bem petiscar! Passada a hora da sesta, melhor, lá mais para as quatro, cinco da tarde, o bar enchia-se de bons chefes de família, ou não fossem eles do Benfica! Lamento, sportinguistas, mas todos sabem que não há exagero…
Sempre houve rivalidade entre os dois clubes. O Sporting tinha uma sede imponente e com o leão pintadinho de novo impressionava do mais pacóvio ao mais ilustre. O Benfica era menos espampanante. A águia que ainda hoje se vê na frontaria do salão, coitada, não impressionava muito. Mas se a águia não se recomendava, o mesmo já não se podia dizer das iscas: essas não tinham igual!
Ninguém queria perder o petisco cujo cheirinho alastrava bem para além da sede do clube das águias. Tão boas e tão famosas que ainda hoje todos recordam com alguma nostalgia as iscas do Zé do Benfica que era o empregado do bar. Alguns dos meus familiares mais velhos e seus amigos dizem que a frigideira onde se fritavam as iscas nunca era lavada. Não sei se seria esse o segredo. A verdade é que eram uma especialidade e ninguém lhes resistia. Os mais velhos acompanhavam a comezaina com uma geladíssima Laurentina, cerveja moçambicana que ganhou sempre à angolana Cuca.
Não havia iscas com elas, as batatas cozidas, mas havia com ele, o excelente pão da padaria do senhor Pereirita.
O senhor Pereirita devia o diminutivo à sua pouca altura. Era um senhor doce, simpático e quem não soubesse nunca iria acreditar que, sob aquele ar dócil e afável, se escondia um “feroz” comunista opositor de Salazar. Era deportado político, daquela mão-cheia de comunistas e anarco-sindicalistas que – permitam-me que me refira a alguns deles - como o senhor Abreu o senhor Serafim Martins (pai do Eng.º Rogério Martins) o senhor Fernando Martins (que foi barbaramente assassinado pelos japoneses), os irmãos Filipe (avô e tio-avô de Ramos Horta) ou o meu pai, tendo sido considerados muito perigosos, foram mandados para Timor porque, sendo este o destino mais longínquo do império, podia ser que nunca mais voltassem ou que as “febres” acabassem com eles…
Uma recordação traz outra e disto tudo me lembrei esta tarde quando uma senhora, figura franzina e sorridente de mim se aproximou perguntando-me o meu grau de parentesco relativamente aos meus irmãos. Conversa longa de velhas amigas, lá me foi falando das dificuldades da vida, do sofrimento do pai doente que faleceu faz tempo depois de ter apanhado muita tareia porque queria a independência. Da tristeza passou à animação ao recordar o Benfica e, claro, as iscas!
A Maria Silva nem compreende porque ainda não se reabriu o Benfica, agora que a sede do Sporting já está toda pintada! E lançou o desafio que daqui repito aos benfiquistas: é preciso fazer reviver o clube! Ela que, sendo Maria Silva, só é tratada pelos amigos por Maria Benfica! E logo me lembrei da professora de Matemática, também ela Maria Benfica assim baptizada por um grupo de cábulas de que eu fazia parte.
Pois bem! A Maria Benfica timorense tem razão: reabramos o Benfica! É que sem a frigideira nunca lavada do Zé do Benfica, nunca teríamos aprendido a gostar de iscas, não teríamos comido especialidade tão apetitosa nem saberíamos que melhor do que iscas “com elas”, as batatas cozidas, são iscas “com ele”, o pão confeccionado com a receita do senhor Pereirita. Não só pelo futebol e pelo basquete, mas também pelo pão e pelas iscas de outrora! Vale a pena tentar revitalizar o Benfica, não acham?

segunda-feira, outubro 02, 2006 

O tempo urge!

A crise acabou? Já há estabilidade?
Podemos andar à vontade por esse país fora contemplando as belíssimas paisagens com as quais tropeçamos a cada curva de estrada?
Ninguém distribuiu armas? E não há armas espalhadas ou guardadas à espera tão só de adivinhado indício de confusão para serem utilizadas?
As pedras não mais foram utilizadas como arma de arremesso?
As desconfianças, as provocações, os insultos desapareceram?
A prepotência foi de férias?
As instituições do Estado funcionam normalmente?
Os boatos, as perseguições e o medo fazem parte do passado?
Já não há desemprego? A pobreza e a fome foram finalmente erradicadas?
E a corrupção, e o clientelismo e a promiscuidade na vida pública foram apenas um pesadelo ou fruto de fértil imaginação de loucos?
Já não há deslocados nem campos de refugiados porque a paz voltou e há casas para todos?
A Justiça, finalmente, funciona? E aplica-se a todos? É verdade que ninguém se sobrepõe a ela, à Justiça?
Deixamos finalmente de estar divididos? Acabou-se a discriminação? Somos todos cidadãos de primeira? E já ninguém tem de pôr-se em bicos de pés e quase gritar: sou timorense, tenho direito a passaporte!!! Tenho direitos!!!
Somos todos filhos dilectos de Timor-Leste?
E a saúde? E a Educação? E os direitos das crianças? E os direitos… os direitos… os direitos… existem na justa medida das nossas obrigações?
São perguntas que, certamente, nos colocamos. Perguntamo-nos, todos os dias quando acabará. Em cada novo dia, porém, a única coisa de novo é a repetição da violência, do vandalismo. Sempre o mesmo, sempre pelos motivos! Infelizmente!
Mas um dia haverá uma resposta que venha de encontro aos nossos desejos. Um dia a crise fará parte do passado! Um dia estará a Democracia tão interiorizada e a sua prática será tão comum! Um dia seremos um país tão tolerante, tão desenvolvido! Um dia haverá paz, segurança, estabilidade, respeito… Não sei quando mas continuo a acreditar que um dia vamos todos desfrutar de um Timor-Leste em paz!
Acontecerá no futuro? São puras ilusões, sonhos? Ninguém acredita já que vamos conseguir? Mas nós temos de continuar a acreditar! Vamos ter de mudar? Certamente. Vale a pena fazê-lo? Alguém tem dúvidas de que vale realmente a pena construir a paz?
Então, porque esperamos? O tempo urge!