À espera que a loucura dê lugar ao discernimento!
A zona mais complicada da cidade nestes últimos dias, a esta hora da noite, até parece um mar de calmaria!
Não fossem duas carrinhas brancas da ONU estacionadas junto ao açafate gigante que faz as vezes de monumento na rotunda do aeroporto, a coberto da escuridão e a recordar-nos que aí estão para manter a segurança, e todos pensaríamos que a paz tinha voltado. Pura ilusão!
Está tudo silencioso. Claro, os campeões precisam de descansar que o amanhã exige sempre que estejam cheios de energia, bem dormidos, bem descansados para que não lhes falte a força e a destreza! Para que a pedrada saia com força destruidora, certeira, fatal, melhor que a do adversário do outro lado da rua! Ganha o campeonato aquele que tiver mais perícia a destruir! A matar!
Quando ainda havia paz, no caminho interior (aeroporto-centro de Díli) tal como na marginal, as ruas animavam-se ao fim da tarde e o movimento das pessoas num vaivém constante estendia-se pela noite fora.
Na marginal, os petiscos nas improvisadas barracas junto da praia constavam de espetadas grelhadas, milho ou peixe assado; na via interna, junto à estrada, defronte das barracas em que viviam, vendia-se excelente leitão assado, com a pele tostadinha e molho de “sutate” (um misto de soja, mel e especiarias) com ou sem piripiri. Grelhado a preceito, servido com apuro pela vendedora de luva de plástico calçada, o leitão satisfazia até o gosto dos amantes mais exigentes da boa comida.
Mas, logo a seguir aos incidentes do fim de Maio, incendiaram as barracas daquela zona e as vendedoras que me pareciam vietnamitas desapareceram.
Há pouco mais de um mês, porém, fizeram uma tímida reaparição. Duvido que o negócio esteja a florescer. A zona desertificou-se; as pessoas fecham se em casa mal o sol se esconde; deixou de haver segurança para que alguém cometa a ousadia de tentar fazer vida de noctívago (entenda-se, até às 21h00, 21h30…)
Lá mais para a frente, os vendedores dos veículos “tiga-roda” (três rodas), de lamparina acesa para espantar a escuridão, vendiam bebidas, caldo quentinho, fritos variados e algumas especialidades com sabor mais indiano e indonésio que timorense. Aqui e além, viam-se grupos de jovens, sentados à beira da estrada conversando, sem cuidar de saber da passagem tangente dos carros …
Nem foi assim há tanto tempo. Em Abril ainda era assim. Agora, esfumou-se tudo. Tudo agora são recordações de um outro dia em que ainda era possível ter a veleidade de pensar que Timor-leste havia sabido ultrapassar com competência os traumas do penoso período da ocupação.
Hoje… bem, hoje é tudo muito diferente. Hoje estamos nas bocas do Mundo porque somos anormalmente violentos, auto-destrutivos.
Hoje, as pedras espalhadas no meio da via pública estão ali a recordar-nos a cada instante que a paz está longe e elas podem ser lançadas sempre que os campeões quiserem…
Hoje, estamos noutra! Hoje, mata-se em cada esquina, em qualquer hora, por qualquer ou sem motivo nenhum.
As memórias desse outro tempo provocam-nos alguma desesperança. E desgaste também.
Cansa e não é fácil ter de estar assim, de braços caídos, assistindo a este desnorte colectivo, impotente, simplesmente, apenas à espera que a loucura dê lugar ao discernimento!