quinta-feira, novembro 30, 2006 

O Diabo

Na esquina do que foi há uns meses o ponto de encontro de muitos timorenses, dois amigos encontraram-se. Já não se viam há tanto tempo que trocaram um longo abraço. De satisfação pelo reencontro e por ainda estarem vivos! Como bem se imagina, a conversa tinha necessariamente de resvalar para a crise que assola o país.
Dizia o José que, apesar de tudo, a cidade está mais calma, para logo acrescentar "mas nem vou fazer grande alarido, porque não quero espantar a sorte! Se o Diabo está a dormir, então é melhor deixá-lo sossegado!"
Carlos retorquiu que estavam ambos de acordo quanto à relativíssima estabilidade e foi acrescentando que a situação é tão volátil que já ninguém se atreve a vaticinar que a tranquilidade veio para ficar. Carlos esclareceu ainda que a calma, relativa, voltou apenas a algumas zonas enquanto noutras se mantém o clima de tensão, com a população em contínua vigilância, não vá o diabo tecê-las.
No entendimento de Carlos, o Diabo em vez de adormecido, está apenas silencioso, à espreita atrás da porta, à espera da primeira oportunidade para atacar. E justificava o que dizia com a leitura dos dois diários mais lidos. A maioria das notícias de primeira página falava de armas e de Justiça. De Reinado e de Rogério.
Argumenta Carlos que para haver armas, para estarem tão espalhadas e em tão grande número, alguém as deu. E, se Timor-Leste nem tem uma fábrica de armamento, donde vieram elas? Quem as comprou? Neste contexto, terá havido bom uso dessas armas? Contra quem e com que finalidade?
E se houve tanta vítima inocente e se o futuro do país está em risco, deve haver Justiça para os culpados, defende Carlos....
Tocado pelo discurso do amigo, José convenceu-se de que o Diabo continua à espreita. A ocasião faz o ladrão, dizia com os seus botões... Sem se atrever a falar alto, foi acenando que sim, muito ao de leve, não fosse ele o causador da ira repentina do Diabo!

segunda-feira, novembro 27, 2006 

A arte pela paz!

Na Fundação Oriente inaugurou-se esta tarde uma exposição de pintura de “Arte ba dame”, ou seja, a arte pela paz. As obras dos timorenses Gelly Neves, Bosco e Yahya enchem as salas da Fundação. Diz o prospecto que “Arte Ba dame é uma reflexão com trabalhos de pintura dos três pintores e uma apreciação dos acontecimentos sociais e políticos do país.”
Gostei das obras expostas. Emocionei-me. Aliás, como sempre me acontece quando entro nas instalações da Fundação Oriente. Porque não é fácil dissociar o que é hoje a sede da Fundação da casa da minha infância feliz e da carga que aquele edifício encerra e se prende com o massacre de 17 de Abril de 1999.
Os tempos que hoje vivemos não são de massacre explícito mas continuam sendo tempos de demência, de cólera, de desvairo, de irresponsabilidade, de dor e de vergonha.
Porque somos independentes mas continuamos a matar-nos, a destruir o que é nosso, a empenhar o futuro.
Porque nos deixámos vencer pelo ódio ao invés de construirmos a paz.
Por isso é reconfortante observar que, felizmente, ainda há quem se tenha mantido imune ao ambiente de loucura colectiva que parece ter tomado conta de Timor-Leste e que, apesar de tudo, tenha tranquilidade suficiente para dar asas à imaginação e à arte.
A tarde valeu pela esperança mesmo ténue de que ainda não perdemos o nosso futuro… que é possível a paz. Assim o entenda também quem, com tanta perícia, apedreja, destrói e mata!

domingo, novembro 26, 2006 

Jornalismo moderno

Há um jogo de dinâmica de grupos em que se põem as pessoas num círculo e uma conta uma história ao ouvido de quem está ao lado, e depois a história vai passando assim de ouvido em ouvido até chegar ao fim do círculo, quando é contada em voz alta e se pode apreciar as distorções que foi sofrendo durante o percurso. Os boatos também funcionam assim, e diz o povo que “quem conta um conto acrescenta um ponto”. Actualmente um jornalista que escreve sobre um assunto já não precisa de saber muito sobre o tema nem de perguntar a quem saiba, basta-lhe fazer uma busca na Internet e encontra muita informação disponível sobre o que quer que seja. O problema é que essa informação muitas vezes não é exacta e ao reproduzi-la o jornalista vai perpetuar um erro e dar-lhe credibilidade para que seja reproduzida por outros mais. Vou dar um exemplo: há pouco tempo houve alguma polémica por causa de um relatório sobre os grupos de artes marciais em Timor, na altura houve notícias que chamavam à PSHT “Perguruan Setia Hati Terate” em vez do nome oficial correcto “Persaudaraan Setia Hati Terate”. Utilizando um motor de busca qualquer na Internet é fácil ver quais os jornalistas que escreveram os seus artigos fazendo “copy paste” em vez de irem às fontes. A PSHT tem muitos milhares de membros em Timor-Leste, qualquer um deles podia dizer aos jornalistas o real significado da sigla, até porque nos treinos deles o aspecto de “Irmandade” é sistematicamente sublinhado, tendo inclusivamente precedência sobre os aspectos de educação física, de defesa pessoal e artístico. E isto tem alguma importância, perguntarão alguns? Depende do valor que se dá à objectividade e precisão dos conceitos, no jornalismo que se faz nos orgãos de comunicação social timorenses não é algo muito relevante. Se um jornalista explicar que a sigla CPLP significa Clube dos Países de Língua Portuguesa isso é ser exacto?

Persaudaraan” é uma irmandade no sentido místico-religioso em que todos os membros se vêem como irmãos, como tendo entrado para uma nova família (como nas congregações religiosas católicas); “perguruan” quando usada no contexto das artes marciais significa um estilo ou escola. Jigoro Kano, antes de fundar o judo, estudou diferentes escolas de jujutsu: Tenjin Shinyo Ryu, Kito Ryu. Também Morihei Ueshiba, fundador do aiquidô, estudou na juventude, entre outras artes, o jujutsu (escolas Daito, Shinkage...). Actualmente também existem diferentes escolas ou estilos dentro do aiquidô: Aikikai, Tomiki Ryu, Iwama Ryu, Yoshinkan Ryu, etc...

Assim, irmandade (Persaudaraan) e escola (Perguruan) são conceitos bem distintos. A objectividade é importante?

sábado, novembro 25, 2006 

Garotos de Rua


Logo a seguir ao Hotel Turismo, há um supermercado.
Cá fora, de um lado está uma banca de fruta colada a um grande letreiro que proíbe a venda naquele local. Num e noutro lado amontoam-se vendedores de fruta, peixe, legumes e cartões de recarga para telemóveis.
Os vendedores de fruta são, quase sempre, garotos franzinos que palmilham muitos quilómetros por dia tentando ver-se livre da carga que, literalmente, trazem sobre os ombros. Não raro, quando ganham alguma confiança, imploram “ ajude-me, compre-me, isto pesa tanto!” É difícil resistir mesmo quando a fruta já está enrugada e amolecida devido ao calor e até mesmo quando se adivinha alguma manha no pedido. É impossível negar quando um deles se resolve pedir uma garrafa de água ou uma maçã.
Há ainda outro grupo de garotos. Também são apreciadores de maçãs e, por vezes, pedem uma camisa...
Nas imediações dos supermercados, desapareceram ou vêem-se pouco os que, desde os tempos da UNTAET, ofereciam os seus serviços de “securiti”. Mas não desapareceram as crianças sujas, ranhosas algumas, aparentando o ar de quem é sem eira nem beira. Apesar disso, sorriem!
Esta tarde, no cumprimento da rotina semanal de dona-de-casa, tive de ir às compras. E lá me encontrei com os vendedores e os outros.
Todos miúdos.
Todos pobres.
Todos sem eira nem beira.
Para o das mangas fui “tia”, passei num ai a “mãe” para o dos maracujás e transformei-me em “avó” para o garotinho mais sem eira nem beira. Meti-me na pele de “avó” e perguntei-lhe:
- Porque não vais para casa?
- Porque não tenho casa. Foi incendiada.
E eu a teimar: então, e os teus pais?
E ele, olhar subitamente triste, a responder-me: estão em Hera, não os vejo.
- Então e tu, o que comes e onde dormes?
Encolheu os ombros, baixou a cabeça e respondeu-me ainda que num tom mais baixo que o normal:
- Tenho uns colegas. Ando por aí, com eles…
Não resisto e tenho de perguntar: quem pode acabar definitivamente com a vida miserável destes garotos de rua?

sexta-feira, novembro 24, 2006 

A zanga da Mãe Natureza

Aconteceu no tempo em que, vencida a guerra entre os homens, a guerra se circunscrevia à luta por uma melhor colheita, depois de observados todos os pormenores relativos ao respeito imposto pela Mãe Natureza.
Nem sempre era assim e houve até gente de determinada comunidade que resolveu desafiar as leis da Natureza, esquecida que estava de que o poder desta se manifestava mesmo quando o prevaricador era detentor de um alto cargo administrativo ou economicamente poderoso.

A árvore estava lá, altaneira, divisando-se bem ao longe, para lá da povoação, sempre pronta para receber o abraço conjunto e simultâneo de muitos braços e de mãos dadas em torno do seu tronco encorpado, somando energia...
Diziam os mais velhos que, já no tempo dos avós dos seus avós, a árvore existia. À sua sombra descansaram sucessivamente geração após geração, velhos, homens, mulheres e crianças.
Ali se realizavam os cerimoniais, se conversava, se traçavam planos para o futuro, se falava da guerra e da paz, se bebia tuaka ou se mascava betel, cal e areca, o bua malus... Ali, quem quer que fosse resguardava-se dos raios de inclemente sol do meio-dia ou da humidade da noite...
Nos ramos mais altos dormiam as galinhas que da árvore faziam o seu poleiro. No emaranhado dos troncos mais finos se entrelaçavam os membros da família das cobras... Sob a sombra amiga também se deitavam ao descanso cabritos, porcos e a vaca...
Todos usufruíam da árvore.
Até ao dia em que o mais poderoso do sítio decidiu que a árvore estava ali a mais, que as suas raízes podiam um dia mais tarde atingir os alicerces da casa provocando a sua destruição ... O futuro, ainda que longínquo, tornou-se num pesadelo e o poderoso entendeu que havia de extirpar de uma vez por todas o mal pela raiz. Muniu-se de afiada catana , cortou o tronco bem junto à raiz e, para se certificar de que nunca mais a árvore pudesse renascer, retirou da terra as raízes que queimou em tarde escura de tristeza a prenunciar que algo de mau viria...
E assim foi, a Mãe Natureza castigou o prevaricador com três anos de seca... Chovia em todo o povoado , menos na zona em que vivia o poderoso e sua família que assistira impávida à matança da árvore secular... E o poderoso do sítio viu diminuída ao mais ínfimo possível a sua capacidade económica; de poderoso passou a pobre...

Há pouco mais de uma semana realizou-se com pompa e circunstância uma parada conjunta que reuniu militares e polícias. O povo não acorreu em massa mas acompanhou o evento. Quis acreditar, mas algo havia no ar que o fazia manter alguma descrença na vontade humana.
O céu pôs-se cinzento algumas vezes a anunciar desejada chuva, fundamental para que a semente germine e a colheita possa ser boa...
Sucedem-se os dias e a chuva não chega. Nesta última semana nem sequer o céu se mascara de cinzento... Porquê?
Entende o velho Mau Bessi que é natural. Se os homens não interiorizaram a necessidade da reconciliação como caminho para o estabelecimento da paz, se os homens continuam a matar, a destruir e a queimar, somando ódio e vingança em cada momento das suas vidas, a Mãe Natureza tem de intervir pela negativa, a ver se o homem acorda e entende que não tem o direito de ser um destruidor... Porque assim nada se constrói. Nada nasce, nada se renova. Apenas a morte é tida como certa...
A Mãe Natureza está zangada!

quarta-feira, novembro 22, 2006 

Cuidado, não vás por aí...


Quero ir até Lecidere e já consegui escapar do tormento da rotunda do aeroporto!
Tenho de escolher o caminho.
Tenho de evitar a marginal.
Junto à Pertamina, num terreno que antes dos problemas estava vedado com arame farpado, existe agora um grande mercado de rua que é ninho de atiradores francos, a qualquer hora e contra quem quer que seja. O importante é apedrejar. O resto, virá depois...
Se tiver escapado dessa, terei de ter cuidado com o campo situado ao pé do porto. Se lhes apetece, sempre se distraem com algumas pedradas sobre quem lhes parece estar a provocá-los...
Prefiro a estrada anterior? Pois, sim, mas há o mercado de Comoro, Fatuhada. Ai Mutim, o Delta Comoro... Há que evitar esse caminho...
Prefirirei uma terceira via? Posso escolher o caminho que passa pelo bairro Pité... Pois, mas e então a zona de Hudi Laran e do próprio bairro Pité, será que aí não há problemas?
Se tiver sorte, chego a Colmera. Posso continuar pela marginal até Lecidere. Terei de acelerar junto ao hotel, não vá a pedra apanhar-me... Ou então, vou por Balide. Mas também por aí terei de ter a sorte de não apanhar com conflitos junto ao campo de refugiados situado defronte do Obrigado Barracks...
Poderei descer para o centro da cidade em direcção ao campo de futebol? Sim, desde que tenha saído incólume do Quintal Mascarenhas e Quintal Kiik e a zona do mercado municipial de Díli esteja calma!
Então, talvez seja de esolher o caminho via Santa Cruz... Sim, se não houver pedradas entre a família do morto e aqueles que estão do lado do grupo que matou...
Vou ver como está Bidau! Que complicação!!! Levei uma pedrada, um tiro, tenho a pele estraçalhada por uma rama ambon! Bom, o melhor é ir ao hospital Guido Valadares para que me tratem... Irei, ou terei de fugir antes que se lembrem de me castigar por passar num sítio "libertado"?
Assumo que sou timorense, mestiça, filha de pai português, mãe timorense de Lorosae e que eu nasci em Loromonu... Resultará? Não? Que faço? Fujo?
Então, que posso fazer?
Fico fechada em casa à espera que o problema acabe, que a situação melhore, que a tranquilidade volte?
Bem, devo estar muito pessimista, mas acho que morreria sentada.
À espera!

PS: De fora, ficaram Becora, Bebonuk, Taibesse, Lahane, Manleuana. Fatu Meta... Será que tudo está bem por aí?

segunda-feira, novembro 20, 2006 

Ai, Timor!


Em vinte e quatro horas, mais duas vidas – de um brasileiro e de um timorense - se perderam em nome do desvairo que tomou conta deste país. Pereceram às mãos de loucos que nada mais sabem fazer senão amedrontar, perseguir, destruir, matar, sabe-se lá movidos por que interesses obscuros!
Por muito que quisesse não me sobra disposição para escrever e por muito que escrevesse repetiria até à exaustão aquilo que eu e
muitos outros timorenses cansados desta loucura sentimos: frustração, vergonha, indignação, tristeza!
Ai, Timor! Para onde vamos nós?

sábado, novembro 18, 2006 

Timor-Leste, a língua e a identidade nacional

O desmembramento da União Soviética e a queda do Muro do Berlim ditaram o esbatimento de fronteiras e das questões suscitadas pela divisão Leste-Oeste. Sobreveio uma nova ordem mundial.
No Mundo, agora com fronteiras mais atenuadas e com o surgimento do novo fenómeno da globalização que tudo abrange - surgindo como uma imenso guarda-chuva onde se abrigam países grandes e pequenos, todos pugnando com armas cada vez mais sofisticadas por um lugar de charneira no painel dos países desenvolvidos e consequente supremacia sobre os mais fracos -, torna-se imprescindível marcar a diferença.
E, nesta competição selvática pela conquista de um lugar cimeiro no contexto do mundo desenvolvido, são justamente os países mais pequenos e mais fracos que têm cada vez mais dificuldades em afirmar-se. Têm de o fazer mas assistem, a maior parte das vezes, como simples espectadores, à luta travada pelos mais fortes na tentativa de esmagamento e consequente desaparecimento dos mais fracos, ou seja, deles próprios.
Nesse contexto - e quando se sabe que, sem identidade um Estado não sobrevive ou sobrevive mal, em particular quando se trata de países com fragilidades existentes por circunstâncias várias -, cada vez se torna mais premente a defesa e a consolidação da identidade nacional que passa pelo aprofundamento da consciência nacional, para o que é indispensável a interiorização e consciencialização dos traços identitários comuns. Até porque, no Mundo globalizado de hoje, assiste-se já ao despertar de uma outra identidade poderosa, a colectiva, a querer ocupar o lugar da identidade singular de uma Nação.
A identidade nacional está intimamente ligada à figura de Estado-Nação, característica dos tempos modernos, na qual instituições como o exército, as instituições políticas democráticas ou o ensino público sustentam uma cultura nacional e congregadora. Contudo, também o conceito de Estado-Nação parece estar a sofrer uma metamorfose, precisamente como resultado das transformações trazidas pela queda do Muro de Berlim e pelo advento do fenómeno da globalização, sendo urgente a criação de novas formas de sustentabilidade das características de uma Nação.

É indispensável que os países pequenos engendrem formas de sobrevivência e de manutenção da sua soberania de forma a não serem facilmente absorvidos, trucidados pelos países grandes, poderosos e economicamente mais fortes. Traços como um passado comum, a História, a língua, a cultura e a etnicidade, qualificativos essenciais do conceito de identidade nacional, devem ser cada vez mais aprofundados e enraizados em países pequenos, frágeis e pobres como é o caso de Timor-Leste.
Todos sabemos que a língua constitui uma das ferramentas fundamentais de um país, da representatividade de um povo, da identidade de uma Nação e, por outro lado, ninguém ignora que as atitudes neocolonialistas de hoje se manifestam de uma forma bem mais subtil. Por outro lado, um país sem identidade, sem carisma nem História, um país que se limita a ser uma cópia de outros, um país sem alma, será um país submisso, permeável a ser colonizado, assimilado e transformado numa extensão de outro país.

Os timorenses estão comummente ligados pela história da Resistência. Mais recuadamente, estão-no pela perseverança com que defenderam a manutenção dos seus traços culturais imemoriais ao mesmo tempo que beberam do país colonizador experiências que, gradualmente, o tempo se encarregou de integrar como novas características culturais, sem, contudo, prejudicar a cultura autóctone. A par da religião católica, a língua portuguesa é disso exemplo.
Compreende-se que Timor-Leste, país independente e com vincadas tradições culturais mas situado geograficamente junto de países fortes como a Austrália e a Indonésia, com os quais partilha fronteiras territoriais e marítimas, tenha colocado extremo cuidado no tratamento de questões consideradas determinantes para a consolidação da sua identidade, como foi a escolha corajosa da língua portuguesa como idioma oficial a par do tétum.
Se atentarmos na dificuldade da reintrodução do português devido à utilização abusiva do inglês e do indonésio em detrimento das línguas oficiais, podemos concluir que a existência das duas línguas oficiais – português e tétum – servindo os interesses dos que defendem a língua como traço identitário de Timor-Leste, é, por outro lado, um sério entrave a quem pretende, precisamente, o enfraquecimento desse traço, logo, do esbatimento da identidade timorense.
O português foi a língua utilizada pela Resistência durante a luta pela independência e a sua utilização marcou a diversidade timorense da dos ocupantes. Etnicamente parecidos com os indonésios do outro lado da ilha que também falam tétum – tendo em conta ainda que a Indonésia se pauta pela “unidade na diversidade” -, aos timorenses afigurava-se importante cultivar a desigualdade. A existência do traço marcante de total dissemelhança reside no português.
A Austrália é um país anglófono e é prática dos países de língua inglesa que o uso desta língua se sobreponha às línguas locais e dite o seu desaparecimento. No caso timorense, o tétum e os outros dialectos desapareceriam. Disso mesmo avisou o linguista australiano Geoffrey Hull quando, no Congresso do CNRT realizado em Díli em 2000, aconselhou os timorenses a escolherem o português em vez do inglês como língua oficial, dizendo claramente: “Eu sei que o Tétum, para sobreviver, precisa do Português".
E se tivermos em conta o panorama dos aborígenes da Austrália, facilmente concluiremos que seria um desastre para o tétum caso o inglês fosse adoptado.
Timor-leste é um pequeno país e vive uma incipiente democracia e não lhe é fácil, por si só, afirmar-se no Mundo; precisa, naturalmente, de se rodear de uma boa estratégia para se defender das novas colonizações que, todos sabem, são hoje mais aprimoradas. Nesta linha está a política de alianças, com países ou organizações com os quais haja pontos em comum e a integração do país no espaço cultural da CPLP, a comunidade dos países de língua oficial portuguesa, constituída por oito países soberanos falantes do português.

Parafraseando alguns dos nossos políticos para quem a escolha do português pouco tem de afectivo e não se baseou no enraizamento da herança histórico-cultural portuguesa, antes constituindo uma escolha político-estratégica, pautando-se a sua preferência pela disposição de assinalar a identidade nacional timorense, parece-me, contudo, importante sublinhar que, aliada ao pragmatismo da necessária selecção político-estratégica está, sem dúvida, subjacente - mesmo que no mais profundo da nossa consciência - o afecto resultante de séculos de prática e de convívio com outros falantes do português.
A dispersão actual de timorenses por vários continentes, bem como o regresso ao país de muitos timorenses exilados no estrangeiro em virtude da luta interna de 1975 e da ocupação indonésia, veio enriquecer o conceito de identidade nacional timorense.
Na verdade, a Nação timorense estende-se hoje para além dos seus limites territoriais. Ela está presente em Timor-Leste como em Portugal, na Austrália, em Macau ou na Indonésia. Se, em qualquer um destes pontos se viver Timor e a sua cultura, se se enriquecer a cultura ancestral timorense de outras particularidades – em que se inclui obviamente a miscigenação - , a identidade nacional timorense, longe de se ater aos limites do tempo português e dos que lhe precederam, sairá favorecida, mais rica e mais consolidada e Timor-Leste ganhará nova dimensão e outra visibilidade no Mundo.

sexta-feira, novembro 17, 2006 

O tempo urge!

Lágrimas, muitas. Tal como abraços, sorrisos, palmadas nas costas. Assisti das arcadas do Palácio do Governo à parada conjunta das F-FDTL e da PNTL.
O João “Choque”, ou João Becora, o mesmo que se tornou célebre em 1999 ao fazer frente aos militares indonésios durante os seus últimos dias de horror em Timor-Leste, ostentava um sorriso de orelha a orelha e conversava animadamente com os agentes da UIR, a Unidade de Intervenção Rápida da PNTL e alguns militares das FDTL. Todos pela paz, pela concórdia. Todos em reconciliação.
Garbosos, de flor na mão, militares e polícias acenaram aos poucos mail de mil pessoas presentes, aplaudiram alguns discursos – tiveram mais sorte que eu que não consegui ouvir nada devido ao deficiente sistema sonoro - e desfilaram de uma ponta a outra do Palácio do Governo, uns metros, o suficiente para se mostrarem como instituição organizada.
Quandoas forças já estavam a dispersar, Falur abraçou um agente da polícia; dele ouvi “agora ita halo ona dame, problema mos la iha”, ou seja, agora já estamos em paz acabaram-se os problemas.
Imagino que muitos timorenses estarão a sentir alguma dificuldade em acreditar neste esforço pela paz. Até porque, enquanto se falava de paz no Palácio do Governo, noutro local, em Ermera, os Kolimau 2000 e um grupo de artes marciais se envolviam em violentos confrontos.
E ainda porque mesmo com muitos sorrisos, as armas nas mãos de alguns militares que montavam a segurança na zona circundante ao Palácio, intimidavam um bocado...
Díficil foi também conseguir que os habitantes de Santa Cruz e de Quintal Quiik aceitassem fazer tréguas.
Na rotunda do Aeroporto, mantêm-se as forças internacionais. Umas vezes estão os filipinos, outras os malaios ou os australianos. A situação está estável dentro da instabilidade reinante mas, de um momento para o outro e em nome de nada, pode surgir um conflito!
Há que manter a tranquilidade porque a paz, a segurança e a estabilidade são efectivamente importantes. Deve ter sido com essa profunda preocupação que os nossos dois poderosos vizinhos firmaram um novíssimo acordo de cooperação bilateral visando a defesa, a luta contra o terrorismo, a segurança, a troca de informações, etc, etc, tudo de acordo com a Carta das Nações Unidas e em nome da vontade de se viver em paz com todos os povos e governos.
E por isso me parece fundamental que nós, timorenses - ao invés de andarmos a ver quem é mais herói, mais forte ou mais importante, mais bandido, mais corrupto ou mais miserável -, devemos tratar de cultivar a paz, interiorizá-la de forma bem profunda antes que sejamos tidos como agentes cultivadores de desestabilização nesta área do Mundo! O tempo urge
!

quarta-feira, novembro 15, 2006 

O velho aeroporto

Nos bons velhos tempos - entenda-se, ligados a uma fase da vida em que os tempos, os da juventude, são sempre pintados de cor-de-rosa - a cidade de Díli acabava junto à ponte que se situa junto do aeroporto que, por nunca ter sido baptizado era apenas o aeroporto, embora nunca devesse ter passado de campo de aviação.
Pequeno, era ali que semanalmente se reuniam as pessoas para as partidas e chegadas dos amigos ou de outras personalidades públicas.
Quando chegava um novo governador vindo da longínqua Mãe-Pátria ou uma personalidade do Governo Central (tão poucas que sobram alguns dedos de uma mão para os recordar) o aeoporto transformava-se em palco de celebridades. Era então "obrigatório" ir ao aeroporto para os cumprimentos e para a habitual feira de vaidades a que Timor não escapava.
À presença das celebridades juntava-se a da cavalaria de Maubara que, sob o comando do imponente régulo D. Gaspar, trajado a rigor, o surik (espada) desembainhado a prestar homenagem, acompanhava impante o cortejo automóvel até ao Palácio onde se encontrava o povo para assisitir ao desfile dos moradores dos diversos concelhos e do Exército português.
O aeroporto era pequeno mas servia para as necessidades do território. O avião era tão pequeno como o da companhia australiana que hoje assegura os voos diários entre Díli e Darwin.
Houve um curto espaço em que o Governo Central dotou a província de um avião maior, quadrimotor, com 16 lugares que desapareceu num acidente sujeito a muita especulação.
Se a cidade acabava ali junto do aeroporto, conclui-se que tudo o mais era paisagem, cabritos e vacas à solta pelo campos. Uns momentos antes da chegada ou da partida do avião bimotor, os animais eram retirados da pista , "enxotados" como se dizia. Saíam e voltavam daí a pouco. Afinal, o reino era deles!
No tempo indonésio, o aeroporto passou a militar e aí se viam inúmeros helicóteros, uma inovação que se manteve durante os tempos da ONU e da independência.
Depois, começou a ouvir-se falar de um novo destino a dar ao então baptizado heliporto.
Dizia-se que aí iria ser construído a nova residência oficial, vulgo Palácio do Presidente da Repúbica e até se dizia que o mesmo iria ter apoio chinês.
Isso foi até Maio deste ano. Porque agora que os tempos são outros, o aeroporto sofreu nova transformação. A pista já não tem vacas nem cabritos, helicópteros, um ou outro mas, em compensação, assiste-se ao nascer de uma nova "cidade", composta pelos diversos pavilhões onde se acomodam as forças australianas. Reparei que as novas construções ainda inacabadas são sólidas, grandes, variadas. O que me permite pensar que vai ter de ser descoberto um outro espaço para a tal residência ofical do Presidente da República porque, como páram as modas, tudo indica que aquela nova cidade veio para ficar. Ela, a cidade e, logicamente, os seus novos habitantes.

terça-feira, novembro 14, 2006 

É possível a paz em Timor-Leste

As comemorações a propósito do 15º aniversário do massacre de Santa Cruz em que centenas de jovens deram a vida, perecendo por Timor, devem ter coberto de vergonha, pelo menos temporariamente, os que se têm ocupado da destruição e da desordem na cidade. Em alguns bairros, verificou-se alguma acalmia embora noutros, como foi o caso dos bairros de Santa Cruz e de Bebonuk, tenham persistido os apedrejamentos entre grupos rivais.
Ontem , as ruas de Díli encheram-se de jovens que, um pouco por toda a cidade se manifestavam ruidosamente pela paz e pela unidade nacional. Sucederam-se os abraços e as lágrimas de pessoas de Lorosae e de Loromonu que, naquele momento, terão sentido que somos, efectivamente, um só Timor, recordando-se talvez de que foi a unidade nacional que nos conduziu à independência, como se lia numa dos muitas faixas transportadas pelos manifestantes.
Esperemos agora que as manifestações exteriorizadas dêem fruto e que cada um interiorize de quão necessária e importante são a unidade e uma vivência em paz para o desenvolvimento deste país; que ninguém mais se deixe levar pelo enganador canto de sereia;que ninguém mais dê ouvidos a quem apenas interessa a desordem e a insegurança no país.
Se tivermos diariamente alguns bons momentos de discernimento será possível que nos habituemos à ideia de que a vida em paz é bem mais agradável do que esta sucessão de dias em constante sobressalto!
Pode ser uma ilusão mas, talvez aconteça que os fazedores da desgraça se convençam de que perderam e desistam da sanha de destruição inculcada dia após dia nos jovens timorenses. Pode ser! Mas, se a esperança é a última a morrer, então mantenhamos a esperança de que ainda é possível a paz em Timor-Leste! Basta querermos!

sábado, novembro 11, 2006 

Chega!!!

Um grupo de casas foi ocupado em 1999, quando a população da montanha desceu à cidade fugindo das forças de ocupação que aproveitaram os últimos dias da sua permanência para a orgia de crueldade e loucura que assinalou o fim da presença indonésia em Timor.
Em 2006, os ocupantes-moradores dessas casas - a maior parte deles de Lorosae - que, aliás, nunca foram muito bem recebidos pelos primeiros moradores da zona tornada bairro popular em fins dos anos 70, ou regressaram ao seu sítio, no interior, na montanha, ou se refugiaram nos campos de deslocados.
Abandonadas as casas, umas quantas foram incendiadas outras tantas vandalizadas; sobraram umas quantas que foram rapidamente ocupadas por outros, quase todos de Loromonu, parentes, amigos, correligionários dos outros primeiros moradores que assentaram raízes no bairro.
Entretanto e, por curto período, a situação acalmou um pouco; alguns dos ocupantes-moradores de 1999 tentaram reocupar o que entendiam ser seu.
Como facilmente se depreende, foi o rastilho para mais uma mostra de valentia entre grupos rivais que se vão digladiando, aumentando dia a dia os motivos para novos actos de violência e de vingança em nome da reposição da verdade e dos direitos de cada um, querendo cada um fazer justiça por suas próprias mãos.
Neste momento, e no que respeita a esta sucessão de ocupação de casas, ganham os Loromonu, perdem os Lorosae. Até um dia destes, quando vier a retaliação.
Somos todos timorenses? Um natural de Loromonu tem ligações familiares estreitas com alguém de Lorosae? Temos um país cuja sobrevivência é, tem de ser, responsabilidade nossa? Perdemos as nossas referências? Temos a soberania em perigo?
Quem se importa?
Cada dia que passa se nota mais ódio, se extremam mais os campos. E, por mais que se tente passar a mensagem de que a violência, a vingança e o ódio devem dar lugar ao respeito, à tolerância e à boa convivência, pouco ou nada se consegue. Ninguém de entre os dois lados da contenda quer desistir, já ninguém parece acreditar que a paz é necessária neste país e que , para a conseguir, temos de parar antes que seja tarde de mais!
Há momentos em que apetece lançar um grito do alto da montanha: Chega!!!

quinta-feira, novembro 09, 2006 

Erros de ortografia? Não, escrevo em tétum!


Num jornal conta-se que a falha diária no fornecimento de energia eléctrica se deve a uma avaria (daqui a pouco será afaria) na sentral de Comoro. Por outras palavras, estamos muitas horas seguidas sem eletrisidade e o motivo pelo qual a elektricidade falta tantas vezes na kapital tem a ver com uma avaria no sentru onde cinco geradores não funsionam. O funsionario deu-nos todas as explicações no edefisiu da EDTL . A afaria dura há duas semanas e até estas oras ainda não foi reparada.
Como se calculará, o impaktu é muito negativo para a instituisaun publika e para os funsionarios que infrentam inúmeros problemas relasionados com isto.
Há difikuldades no manajamentu e nos rekursus humanus.
Os funsionarios sugerem ao Guvernu que preste atenção ao servisu da EDTL que não podem infrentar constantemente estas dificuldades!
Alein disso, defendem os funsionarios que o Governo presija prestar atensaun porque é necessário que os serviços tenham qualidade. É que não é justo que os funsioanrios tenham de infrentar sistematicamente este problema , em especial quando se trata de atendimentu da komunidade. O jornalista bem tentou konfirmar tudo junto do direitor tekniku mas não konsegiu porque o direitor estava ausente do local de servisu.

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Nos dois primeiros anos da independência, cada palavra inexistente em tétum era substituída por outra em inglês ou indonésio. Hoje, nota-se alguma diferença. Há mais português, o que não significa que haja motivos para lançar foguetes; a procissão ainda vai no adro e a batalha da língua ainda não está ganha!

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Há uns dois ou três anos havia a convicção profunda de que em breve os geradores iriam ser peças de museu! Não foi assim e agora, cada vez mais, a sinfonia da música metálica dos geradores nossos fiéis amigos– sempre do nosso lado até nas horas mais difíceis! - soa como valsa aos nossos ouvidos… Um destes dias, estarão surdos todos quantos se socorrem dos nossos amigos mas isso não interessa nada para a história!

quarta-feira, novembro 08, 2006 

Homens e bichos


Anteontem, ao postar sobre a cidade de Díli, referi-me aos porcos e cabritos que se passeiam pelas ruas da capital que utilizam da mesma forma que os humanos. Nalgumas zonas, para além destes, também se vêem patos, patas, galos e galinhas, com a ninhada seguindo obedientemente os progenitores. Pensando melhor, é mais rigoroso mudar o tempo do verbo: viam-se, passeavam, utilizavam, seguiam. É que, devido à crise tudo faz parte do nosso passado recente! E se hoje os animais domésticos ainda se passeiam, fazem-no muito à socapa, não vá serem desviados para a panela de alguém.
Aqui na minha rua havia um búfalo que, uns meses mais tarde foi substituído por uma vaca. As minhas lindíssimas buganvílias serviam de pasto ao animal que depois ficava a ruminar pachorrentamente no descampado defronte da minha casa. Mas, nem alimentando-se de lindas buganvílias vermelhas e brancas, a vaca se tornou mais bela e mais airosa! Manteve-se um autêntico mastodonte que não me ligava nenhuma, nem quando eu procurava enxotá-la com um vigoroso “xut xut, sai daqui! Nunca saiu; até que um dia reparei que ela já aqui não andava…
Conta-se que ,no tempo da ocupação, se um militar visse um animal no meio ou na berma da estrada, perseguia-o, atropelava-o e só deixava a perseguição depois de se ter certificado de que o animal estava bem morto! E o dono do animal nem se atrevia a sair de casa para cobrar o preço do bicho atropelado!
Nos primeiros tempos, os da transição da ONU, quase não havia cães e os que havia, desapareciam rapidamente, sendo utilizados na cozinha numa inovação gastronómica introduzida pelos ocupantes. Ainda há alguns restaurantes onde se serve carne de cão mas parece que (felizmente!) estão em declínio!
Já depois da independência, um homem descobriu uma forma de fazer dinheiro facilmente. Tinha uns quantos franganitos raquíticos no quintal que não lhe davam lucro nenhum. Vai daí, o homem entendeu que devia dar-lhes outro fim. Frango debaixo do braço, escondido por detrás de um arbusto, mal divisava um carro a aproximar-se, o idiota lançava o franganito para debaixo das rodas e ao pobre bicho nem lhe sobrava tempo para revirar os olhos! Depois, era só saltar para a via, vociferar contra o desgraçado do condutor e exigir-lhe pelo frango uma indemnização estabelecida de acordo com o estatuto que transparecia do aspecto do condutor e do tamanho do carro. Assim foi juntando uns cobres até que alguém descobriu a marosca e o idiota não teve outro remédio senão mudar de modo de vida…
Quando ainda era possível ir à praia dos portugueses, que fica do lado de lá do Cristo-Rei, muitas vezes me cruzei com um rebanho de cabritos. Não sei se iam tomar banho à praia. O que sei é que alguns deles se deixavam ficar sob a sombra das árvores, quietos a olhar o mar, como o comprova esta fotografia que já publiquei noutro sítio mas que, sendo tão sugestiva, não resisto a republicá-la!

segunda-feira, novembro 06, 2006 

Um novo jardim?

Sou do tempo em que não havia energia eléctrica na cidade. Em que era preciso ligar por um telefone à manivela ao Sr. Salvador telefonista e pedir-lhe que estabelecesse uma qualquer ligação telefónica ou para saber quem estava a ganhar no campo de jogos situado um bom bocado mais acima da estação dos correios. Mas nós acreditávamos nos dotes de adivinhação do Sr. Salvador que dizia soltando sonora gargalhada com um ar de quem sabia tudo “O Benfica está a ganhar!”. Ou então, num tom mais sério, “O Benfica está a perder…”
Sou do tempo em que Díli era uma cidadezinha bonita, arrumada, com as ruas arborizadas, bem delineadas. Era poeirenta - só havia pouco mais de três quilómetros de estrada asfaltada! -, mas penso que ninguém se lembrará negativamente desse pequeno e menos bom pormenor, até porque também não havia assim tantos carros!
Naqueles tempos, uma vez por ano, a cidade animava-se com as festas do Dez do Junho, o dia da Raça do tempo de Salazar e de Caetano, quando cada concelho administrativo expunha as suas mais valias artísticas e económicas .
Nos tempos de hoje, não há nem mostra de arte nem do nosso desenvolvimento económico - ou não haverá desenvolvimento nenhum? - e Díli é uma cidade feita de remendos, sem qualquer plano urbanístico, com casas coladas umas às outras, outras tantas casas ocupadas e mal cuidadas, lixo, muito lixo nas bermas das ruas esburacadas e mercados que nascem como cogumelos onde haja sombra de uma árvore, para além dos esgotos a céu aberto que desaguam nas praias da capital, assim contribuindo para a degradação do “environamento” do país.
Ainda se vêem sinais da destruição de 1999 e a estes, nós, os timorenses, já bem dentro do tempo da nossa independência, em 2006, fizemos o favor de contribuir com algo de verdadeiramente nosso, dando azo a que nos achem tão bons destruidores quanto os “outros”, os ocupantes, adicionando mais uns quantos edifícios que queimámos por divertimento, por vingança, por selvajaria.
Ainda me lembro das acácias vermelhas no jardim defronte do Palácio do Governo, dos gondoeiros enormes, majestosos, junto à marginal. Em dias de festa ou não, era no jardim defronte do Palácio que jovens e menos jovens marcavam encontro para conversar, para ver as modas de então ou até mesmo e só para apreciar a paisagem.
Já li e ouvi alguns argumentos a favor e outros tantos contra as obras que se desenrolam no espaço que foi o do mal redesenhado jardim do tempo indonésio e pouco cuidado dos nossos dias de independência.
É claro que todos sabemos que há muitas outras prioridades no país, que há campos de deslocados nos quais as condições são pouco menos que miseráveis, etc, etc, etc.
Mas também sabemos que não devemos necessariamente cultivar o miserabilismo apenas e só porque receamos ter de assumir que também temos direito ao belo e ao bonito!
Um espaço bem concebido, ajardinado e necessariamente bem cuidado, tornará bem mais aprazível a zona dianteira do palácio em substituição da área estanque, cheia de grandes blocos de cimento a delimitar o território que foi o parque automóvel circunscrito a titulares de cargos públicos!
Não compreendo em que há-de a reconstrução do jardim prejudicar o desenvolvimento do país. Gosto do esforço do embelezamento da cidade, gosto que haja espaços abertos de lazer, plantio de árvores e de flores. Talvez porque quero acreditar que esse pode ser um ponto de partida para que retomemos o gosto pela limpeza da cidade com o retorno obrigatório de porcos e cabritos aos currais de onde não deveriam sair…

domingo, novembro 05, 2006 

A violência do presente e a do passado

Há já algum tempo tive uma conversa muito interessante com um grupo de cachopas timorenses. Tinha havido um primo de algumas delas que tinha saído de Timor para ser emigrante nas Ilhas Britânicas (o que é possível devido à facilidade que os timorenses têm em conseguir que lhes seja reconhecida uma nacionalidade da União Europeia, a portuguesa), e o moço tinha tido problemas com os serviços de imigração na passagem pelo aeroporto de Hong Kong, que, segundo parece, tinham questionado a autenticidade do passaporte dele. Depois de alguma angústia o rapaz tinha acabado por ser enviado de volta para Timor. Entretanto, aqui um grupo de jovens familiares e amigos organizou-se espontaneamente logo que estes souberam do ocorrido para ir tratar da vingança apanhando e espancando chineses-mandarim (os timorenses distinguem entre “china-timor”, que são os timorenses de etnia chinesa que cá estão há gerações e que na maioria falam hacá, e “china-mandarim”, que são imigrantes recém-chegados da China - como os que agora abrem lojas por todo o Portugal - e que falam mandarim ou outras línguas chinesas), e só não concretizaram a sua intenção porque foram convencidos por alguém que eles respeitavam que seria melhor resolver o assunto pelas vias oficiais com a embaixada da China. Ora, a tal conversa foi interessante porque as moças defendiam com toda a garra e emoção o “direito” dos seus parentes e amigos de irem bater nalguns pobres imigrantes que aqui trabalham no duro numa lojeca improvisada ou transportando um “mini-supermercado” ambulante em cima da bicicleta, e que não tinham absolutamente nada a ver com o assunto. O argumento delas era que tendo alguns chineses em Hong Kong criado problemas a um timorense, era de toda a “justiça” que os timorenses chegassem a roupa ao pelo a alguns chineses vindos da China. Esta atitude é uma das chaves para compreender a violência de rua que continua a existir em Díli neste momento.

A violência entre lorosa’e e loromonu é nova ou antiga?

Em todas as sociedades humanas existe a tendência de resolver problemas pela violência, mesmo nos países mais ricos e avançados encontramos ainda flagelos como a violência doméstica. É um fenómeno universal em todos os povos, principalmente quando ainda não existem instituições do Estado em que as comunidades possam confiar para garantir a segurança dos cidadãos e a justiça. Diz o povo português que “em casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão”, o que significa que problemas sociais como a pobreza, o desemprego e a falta de perspectivas para o futuro tendem a aumentar as probabilidades de as frustrações e inseguranças resultarem em porrada. Há por aí uns malais que pensam que isso é exclusivo dos timorenses, mas estão completamente enganados. Vejam os casos recentes da França e da Hungria, lá na Europa dita civilizada, e isto só em relação à violência juvenil (deixando de lado coisas como a guerra civil na ex-Jugoslávia).

Pouco tempo depois de eu ter chegado a Timor, em 2001, houve uma aldeia em que muitas casas recém-reconstruídas foram queimadas, se bem me recordo lá para a zona de Quelicai e Laissorolai, devido a um desentendimento qualquer entre vizinhos. Em Julho de 2004 houve em Díli violentos confrontos entre membros da PSHT e gente do grupo “Sete-Sete”. Em meados de Agosto do mesmo ano conflitos entre elementos do KORKA e do “Cinco-Cinco” em Soru-Kraik (Ainaro) tiveram como resultado 53 casas incendiadas. E tem havido muitos outros episódios semelhantes ao longo dos últimos anos. O que é novo em Timor nos dias que correm é a politização da violência e delinquência juvenil, e os novos contornos xenófobos de que se reveste – uma coisa com que as populações da Irlanda do Norte, p.ex., conviveram durante muitos anos. Isto significa que, ao contrário do que acontecia antigamente, o povo comum começou agora a distinguir os que se envolvem na violência de rua entre “os nossos” e “os deles", e deixou de falar deles como “esses vadios e bandidos”. E em vez de os delinquentes serem responsabilizados pelos seus crimes, são vistos pelas comunidades como participantes numa espécie de cruzada ou como heróis que defendem o bairro da invasão dos “deles”.

Antes do início da crise os antagonistas nas cenas de pancadaria eram grupos de pertença mais pequenos: uma família contra outra, os jovens de um bairro contra os de outro bairro, os praticantes de um estilo de artes marciais contra os de outro estilo, um grupo de polícias contra um grupo de militares, a claque dos solteiros contra a claque dos casados num jogo de futebol amigável. A crise recente começou quando alguns elementos das FDTL nascidos nas zonas ocidentais do país se queixaram de discriminação através de uma petição; há uma comissão que tem andado a investigar se havia razão para essa acusação ou não, mas o que foi significativo para o evoluir da situação durante os meses seguintes é que os irmãos, primos, amigos, vizinhos e conterrâneos dos peticionários consideraram que os seus eram vítimas de discriminação, e por outro lado, os irmãos, primos, amigos, vizinhos e conterrâneos dos elementos das forças armadas nascidos nas zonas orientais do país consideraram que os peticionários estavam a trair as FDTL. E a divisão agudizou-se também na polícia. Isto modificou radicalmente a percepção do povo em relação a dois grupos de pertença que até aí eram pouco relevantes no quotidiano das pessoas: os de loromonu (oeste) e os de lorosa’e (leste). Em Portugal muitas pessoas do Norte consideram a sua origem geográfica como um traço importante da sua identidade, como fazem também as do Alentejo, p.ex., mas nem um nortenho nem um alentejano pensa em bater num algarvio só por causa do lugar onde ele nasceu. Isso era o que acontecia aqui em Timor até há pouco tempo, os de loromonu e os de lorosa’e contavam anedotas uns sobre os outros, mandavam umas bocas sobre as características colectivas atribuídas pela imaginação do povo a cada um dos grupos, mas as pessoas não batiam em alguém por ter nascido no leste ou no ocidente. Há uns nove meses atrás era uma ideia completamente inconcebível que um timorense de Baucau tivesse medo de ir passear para Maliana ou Ermera, ou que alguém de Liquiçá receasse ir dar uma volta até Lospalos ou Laga, hoje este medo é a regra quase sem excepção.

Há por aí quem queira ver uma raiz histórica para o actual ódio entre naturais de lorosa’e e de loromonu nas divisões fomentadas pelos portugueses no seu esforço para dominar Timor. Isto é uma ficção, ligada a uma tendência de olhar para a História que deixou o nacionalismo salazarento caquético, que falava só sobre os feitos grandiosos dos portugueses, para ingressar num mea culpa pós-colonial que anseia por poder arcar com as culpas de todos os males da humanidade, principalmente os do terceiro mundo. Meu caro leitor, não leve a sério ninguém que lhe apareça a falar sobre os quatrocentos anos de domínio e opressão dos portugueses sobre países como Timor-Leste ou Guiné-Bissau, p.ex... O colonialismo português não foi igual em toda a parte e em muitos territórios dominava muito pouco até ao início do séc. XX. Na Guiné-Bissau durante uma parte significativa dos tais séculos de domínio os portugueses controlavam apenas pequenas zonas ribeirinhas como Cacheu, ou Bissau (de onde raramente podiam sair por terra sem levar porrada dos pepeis), e estava entretanto a acontecer uma colonização muito mais importante, a decorrente da expansão do império fula. Em Timor-Leste antes do séc. XX havia ainda muitas zonas do interior que rejeitavam a soberania portuguesa, mesmo que simbólica, e normalmente nas outras áreas o domínio de Portugal baseava-se num sistema de extorsão e “segurança” – pagas e eu protejo-te e deixo-te gerir a tua loja como quiseres, não pagas e eu venho cá partir a loja e bater-te. Mas voltando à questão de leste e ocidente, não há memória nem nos livros nem na tradição oral dos timorenses de uma guerra que fosse que tivesse aparecido como sendo de lorosa’e contra loromonu (e o relatório da Comissão Especial Independente da ONU fala da total ausência do assunto nos milhares de testemunhos recolhidos pela CAVR – Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação), as guerras antigas eram entre reinos vizinhos, ou entre coligações de reinos próximos, que procuravam aumentar o seu território ou roubar gado, mulheres, cabeças, áreas de cultivo, coqueirais, gente para escravizar...

Os portugueses fomentavam e faziam uso das rivalidades existentes entre reinos, sim, e muito, mas essas rivalidades não se baseavam numa divisão entre o leste e o oeste do então chamado Timor Português. Vejamos o que nos conta Teófilo Duarte, governador de Timor entre 1926 e 1928, em “Ocupação e Colonização Branca de Timor” (1944), p.62-63:

«Celestino [da Silva, governador 1894-1908] valia-se das rivalidades dos diferentes povos para os enfraquecer e dominar. Umas vezes não intervinha nas suas lutas senão por baixo de mão, como se depreende das seguintes notas enviadas aos comandantes militares de Aileu e Alas:

“Ao Sr. Comandante militar de Aileu se comunica para os devidos efeitos e por ordem se S. Exª o Governador que é muito provável que o reino de Alas ataque a jurisdição de Tutuluro [há um suco com esse nome na zona de Same, não sei se será o mesmo...] pertencente a esse comando: em tal caso deverá V. conservar-se inteiramente estranho, porque ao govêrno convém que Tutuluro seja derrotado, e a todos os que lhe falarem em tal assunto responderá que o govêrno nada tem com tal guerra, que são questões entre povos que êles resolverão como entenderem e puderem, mas ao mesmo tempo proïbirá, publicando os bandos do costume, que em tôda a área do seu comando se venda pólvora e mais munições de guerra, e ensinará aos maiorais da sua jurisdição que lhes é inteiramente vedado o interferirem na guerra que se der entre Alas e Tutuluro...” “Ao sr. Comandante militar de Alas se comunica para os devidos efeitos por ordem de S. Exª o Governador e em resposta à sua nota nº 57 de 26 do corrente, que pode permitir ao sr. Régulo de Alas que junte os seus arraiais e castigue a jurisdição de Tutuluro pelos latrocínios e crimes a que se refere; mas faça-lhe saber que a guerra não pode prolongar-se além de 20 de Agôsto próximo, pois que os arraiais do seu reino deverão estar já reünidos e à disposição do govêrno depois de tal dia; far-lhe-á também saber que a guerra não pode ser feita como é costume fazê-las em Timor [poderá talvez estar a referir-se ao tradicional corte de cabeças dos inimigos...], e que é indispensável que êle coloque a gente de Tutuluro na impossibilidade de inquietar o reino de Alas, durante alguns anos. Êsse levantamento de arraiais por parte do reino de Alas pode favorecer e encobrir os projectos do govêrno relativamente a Manufai, Raimea e Suai. Nesta data se previne o comandante de Aileu para que fique impassível perante a guerra que Alas vai fazer a Tutuluro e que evite que mais gente da sua jurisdição se junte a tal reino, mas V. não tomará parte alguma ostensiva em tal guerra para que se não diga que é feita pelo Govêrno, e limitar-se-á particularmente a aconselhar o D. Januário e o D. Félix sôbre a maneira de a fazerem, deixando-lhes ver que o Govêrno não terá dúvida em lhes emprestar a pólvora que necessitem, responsabilizando-se êles pelo pagamento dela, para os ajudar; nesta data se dá ordem ao Comandante de Alas para proïbir desde já a venda de pólvora na área de tôda a sua circunscrição, a que também pertence Tutuluro.” »

A revolta liderada por D. Boaventura de Manufahi, a mais importante para o imaginário colectivo dos timorenses, “necessitou, para ser esmagada, de uma força de 28 europeus e de mais de 12.000 outros soldados”, como nos diz Geoffrey C. Gunn, em “Timor Loro Sae – 500 anos”, p. 195. E de onde vinham os homens que esmagaram a revolta de Manufahi? Das regiões pertencentes aos actuais 3 distritos considerados de lorosa’e? Não, a maior parte vinha de outros reinos das regiões pertencentes aos actuais 10 distritos considerados de loromonu, de lugares como o Suro (Ainaro), Lacló, Manatuto... Diz ainda Geoffrey C. Gunn, p. 203: “E embora haja o sentimento de que a rebelião de 1911-1912 constituiu o apogeu da oposição aos Portugueses, ela foi, ao mesmo tempo, geograficamente muito restrita e esteve mesmo rodeada por reinos neutrais ou colaboracionistas”.

Sobre a II Guerra Mundial conta-nos também Geoffrey Gunn, p. 249: “Segundo um soldado australiano, Bernard Callinan, este conflicto teve outra dimensão, a de uma verdadeira guerra dentro de outra guerra. Esta é uma alusão à revolta dos Maubesse [sic] contra os Portugueses, em Agosto de 1942, e ao papel desempenhado pelos Portugueses, mobilizando os povos cristãos de Ainaro e Same, «que não eram nada amistosos para com os Maubesse não-cristãos», para esmagar impiedosamente esta manifestação de independência. Pélissier observa que o levantamento dos Maubesse [sic] não foi propriamente motivado pelo seu amor aos Japoneses, mas sim pelas memórias, velhas de décadas, das guerras de Manufaí [sic] e, especialmente, pela vontade, por parte deste povo dissidente de exercer uma vingança contra o reino rival de Suro (Aileu [Ainaro?!]) e os seus lealistas, nomeadamente D. Aleixo Corte Real, liurai de Suro, sobrinho de Nai-Cau, o liurai «traidor» da revolta de 1912, que alinhou ao lado dos Portugueses. D. Aleixo (que receberia a homenagem póstuma do Estado português), os seus filhos e os seus seguidores, empenharam-se numa resistência heróica, mas de antemão condenada, contra as forças japonesas, nas montanhas de Timor, em Maio de 1943.

Se fossemos procurar na literatura encontraríamos muitas guerras entre povos vizinhos por todo o Timor, mas também há registos de pactos, alianças e juramentos de sangue, por vezes celebrados entre a aristocracia de reinos bem distantes (ou mesmo de outras ilhas próximas). Armando Pinto Corrêa, no livro “Gentio de Timor” (1935), p. 41, conta por exemplo sobre um pacto sagrado de amizade entre a gente de Uani-Uma (Baucau) e a de Maubara, pertencente à então circunscrição de Liquiçá. Esta aliança, feita há muitas gerações atrás, em Lifau, entre os chefes destes dois lugares, proibia que houvesse conflictos entre os seus habitantes. É pena que, a julgar pela situação actual, pareça ter caducado...

sexta-feira, novembro 03, 2006 

Uns dias de calma na cidade!

A cidade está calma. Isto, claro, se nos referirmos às vias principais da capital. É que nos guetos, nas ruelas, no emaranhado dos bairros do tempo indonésio compostos por casinhotos aos quais, com alguma boa vontade se chamam “casa”, só quem anda lá dentro pode, em boa verdade, assegurar que há calma.
Gostava de acreditar que a tranquilidade veio para ficar! Mas receio ser demasiado ousada nos meus desejos. De qualquer dos modos, sabe bem constatar que há três dias que, por exemplo, aqui na rotunda do aeroporto, não há pedras espalhadas no meio da rua nem gente olhando distraidamente o ar, espreitando uma oportunidade – ainda que ínfima! - para fazer o gosto ao dedo que é, como quem diz, para lançar uma pedrada a quem quer que seja que tenha o azar de passar à hora errada pelo “seu” campo de batalha.
Aproveitando os dias feriados de 1 e 2 a que se juntou o dia de hoje – fazendo a ponte para o fim-de-semana - muitos timorenses saíram para o interior. Quanto aos estrangeiros, aproveitaram os cinco dias de descanso para dar um salto a Bali.
Nota-se muito menos movimento na cidade. Parece-me que a razão da calma está relacionada com o êxodo da população. E também com a solenidade da época.
É fundamental que se continue a recordar e a respeitar quem partiu. O culto dos mortos é levado muito a sério pelos timorenses que o praticam com muito cuidado e reverência. Mais do que dos vivos, somos todos veneradores súbditos da morte, dos mortos, do Além!
Porque se acredita que eles, os mortos, os “matebian”continuam de certa forma vivos e continuam a ver-nos do lado de lá da vida. De uma outra vida, os que partiram vêem o que de bom e de mau é feito pelos que cá ficaram. E ora castigam, ora premeiam, de acordo com a natureza boa ou má das acções dos que permanecem vivos.
Se o que está à vista pode, de alguma forma, ser contrariado, desafiado, independentemente da dimensão da coisa, o mesmo não se dirá do que está oculto, do que não se vê! Ninguém quer nem se atreve a desafiar o poder dos “mate clamar”, as almas dos mortos!
Alguns já experimentaram o prémio dado por seres de um outro Mundo - um bom casamento, conseguir emprego, receber uma prenda inesperada – outros, o castigo, através de uma bofetada seguramente real ainda que só imaginada, de um redemoinho de vento forte, do animal que morreu repentinamente ou até mesmo do pesadelo e a pressão no peito em mal dormida noite explicada com o “mate clamar hanehan hau ”, ou seja, “a alma a esmagar-me…”
Talvez o medo do que nunca se viu mas se imagina ser muito poderoso, talvez o medo do que é intangível tenha provocado alguma sensação de insegurança e de desconforto nos campeões de rua; talvez isso tenha trazido um momento de lucidez. A suficiente para que tenha havido estes dias de tréguas, de quase paz em Díli!

PS: Ainda não tinha saboreado os pedaços de calma em cuja existência quis acreditar, quando sou obrigada a reabrir o posto e dar o dito por não dito. Não, não respeitamos nada nem ninguém, nem os mortos! Pois é, perdemos tudo, e nem as nossas tradições, nem a cultura nos valem de nada!
Vem isto a propósito de uma mensagem de aviso enviada pela embaixada australiana aos seus nacionais e que mão amiga me fez chegar dizendo que " increasing risk of australians being targeted. Use extreme caution on Comoro and beach roads. australian have been caught up in armed robbery and assault".
De vergonha e de tristeza, emudeço.

quarta-feira, novembro 01, 2006 

Quer uma chávena de café de laco?

O animal parece um boneco de peluche. Em vários tons de castanho, do dourado ao mais escuro, o pêlo do laco é macio e brilhante. Tem uns olhos bem vivos, focinho comprido e uma cauda longa e felpuda e, sendo embora fugidio e até agressivo no seu habitat – o cafezeiro ou cafeeiro - , o laco torna-se meiguinho e dócil quando domesticado. Assemelha-se a uma minúscula raposa, talvez do tamanho de uma gato não muito grande.
Vive na mata, esconde-se por entre a folhagem espessa e alimenta-se de fruta. O café, quando o grão já está bem maduro, vermelho, em cereja, é o seu alimento de preferência.
O laco é um animal noctívago. Dorme durante o dia, acorda e espreguiça-se lá pelo cair da tarde e à noite, com alguma fome, lança-se ao prazer de se alimentar. De café, pois claro!
Depois, sobrevêm normalmente as necessidades fisiológicas e os grãos de café são expelidos inteiros, apenas sem a película outrora vermelha e doce que lhe dá o nome de “café em cereja”.
Presumo que do lado de lá do computador haverá quem esteja a torcer o nariz ou, pelo menos, esteja curioso em saber que história é esta do café do laco.
Bom, vamos então a explicar:
Expelido juntamente com as fezes do laco, o café fica o tempo que for necessário como que esquecido no solo atapetado de folhas até que, finda a colheita normal, chega o tempo de apanhar o dito café de laco, para o que se exige uma grande dose de paciência, devido à morosidade da tarefa. E, como se calculará, esta é uma tarefa que precisa de gente que não se deixe abalar com estas coisas das sociedades primitivas!
Transportado ao terreiro, antes ainda de qualquer outro tratamento, a primeira tarefa consiste em apartar os grãos das fezes ressequidas.
Seguidamente, é posto de molho e bem lavado após o que é posto a secar ao sol. Mais tarde, e dependendo das exigências dos apreciadores que não dispensam um bom lote de café, há que proceder-se à escolha e separação entre as três variedades de café: arábica, robusta e libérica (este já praticamente inexistente).
Se se pretender que o café dure mais tempo, guarda-se o grão em pergaminho. Se se pretender usá-lo a curto prazo, deve ainda executar-se outra tarefa, a de retirar em máquina própria - com cuidado para que os grãos se mantenham inteiros - a película transparente a que se dá o nome de pergaminho.
E, pronto, eis o café de laco, limpo, escolhido e preparado para ser torrado a preceito e saboreado a qualquer hora do dia, em qualquer lugar, em boa companhia! Rui Cynatti era um grande entusiasta de café de laco.
Não sei se o leitor ainda mantém o nariz torcido. Alguma repugnância, talvez… É natural!
Mas, o que posso afiançar é que este café é menos ácido e bem mais aromático e saboroso! Dizem os entendidos que isso se deve ao facto do “tratamento biológico” a que é sujeito no estômago do laco. Acredito plenamente nisso. Sou uma fã do café de laco e recomendo-o aos apreciadores desta bebida.
Mas, admitindo que possa haver alguma desconfiança, aconselho a leitura de artigos sobre isso. Há meses, a minha amiga Anabela do Centro de Documentação do jornal “Público” enviou-me o recorte de um jornal com um artigo sobre o café do laco. Fiquei estupefacta pois não imaginava que houvesse tanto interesse por esta variante do café e por o mesmo ser tão caro!
Daqui deste lado do Mundo, pergunto com simpatia de quem nasceu na terra do melhor café do Mundo:
Quer uma chávena de café de laco?