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sexta-feira, novembro 24, 2006 

A zanga da Mãe Natureza

Aconteceu no tempo em que, vencida a guerra entre os homens, a guerra se circunscrevia à luta por uma melhor colheita, depois de observados todos os pormenores relativos ao respeito imposto pela Mãe Natureza.
Nem sempre era assim e houve até gente de determinada comunidade que resolveu desafiar as leis da Natureza, esquecida que estava de que o poder desta se manifestava mesmo quando o prevaricador era detentor de um alto cargo administrativo ou economicamente poderoso.

A árvore estava lá, altaneira, divisando-se bem ao longe, para lá da povoação, sempre pronta para receber o abraço conjunto e simultâneo de muitos braços e de mãos dadas em torno do seu tronco encorpado, somando energia...
Diziam os mais velhos que, já no tempo dos avós dos seus avós, a árvore existia. À sua sombra descansaram sucessivamente geração após geração, velhos, homens, mulheres e crianças.
Ali se realizavam os cerimoniais, se conversava, se traçavam planos para o futuro, se falava da guerra e da paz, se bebia tuaka ou se mascava betel, cal e areca, o bua malus... Ali, quem quer que fosse resguardava-se dos raios de inclemente sol do meio-dia ou da humidade da noite...
Nos ramos mais altos dormiam as galinhas que da árvore faziam o seu poleiro. No emaranhado dos troncos mais finos se entrelaçavam os membros da família das cobras... Sob a sombra amiga também se deitavam ao descanso cabritos, porcos e a vaca...
Todos usufruíam da árvore.
Até ao dia em que o mais poderoso do sítio decidiu que a árvore estava ali a mais, que as suas raízes podiam um dia mais tarde atingir os alicerces da casa provocando a sua destruição ... O futuro, ainda que longínquo, tornou-se num pesadelo e o poderoso entendeu que havia de extirpar de uma vez por todas o mal pela raiz. Muniu-se de afiada catana , cortou o tronco bem junto à raiz e, para se certificar de que nunca mais a árvore pudesse renascer, retirou da terra as raízes que queimou em tarde escura de tristeza a prenunciar que algo de mau viria...
E assim foi, a Mãe Natureza castigou o prevaricador com três anos de seca... Chovia em todo o povoado , menos na zona em que vivia o poderoso e sua família que assistira impávida à matança da árvore secular... E o poderoso do sítio viu diminuída ao mais ínfimo possível a sua capacidade económica; de poderoso passou a pobre...

Há pouco mais de uma semana realizou-se com pompa e circunstância uma parada conjunta que reuniu militares e polícias. O povo não acorreu em massa mas acompanhou o evento. Quis acreditar, mas algo havia no ar que o fazia manter alguma descrença na vontade humana.
O céu pôs-se cinzento algumas vezes a anunciar desejada chuva, fundamental para que a semente germine e a colheita possa ser boa...
Sucedem-se os dias e a chuva não chega. Nesta última semana nem sequer o céu se mascara de cinzento... Porquê?
Entende o velho Mau Bessi que é natural. Se os homens não interiorizaram a necessidade da reconciliação como caminho para o estabelecimento da paz, se os homens continuam a matar, a destruir e a queimar, somando ódio e vingança em cada momento das suas vidas, a Mãe Natureza tem de intervir pela negativa, a ver se o homem acorda e entende que não tem o direito de ser um destruidor... Porque assim nada se constrói. Nada nasce, nada se renova. Apenas a morte é tida como certa...
A Mãe Natureza está zangada!

Gosto muito de ler essas lendas que misturadas com a realidade dá um sabor inigualável a esse país, apesar de todas as vicissitudes diárias.

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