Uns dias de calma na cidade!
A cidade está calma. Isto, claro, se nos referirmos às vias principais da capital. É que nos guetos, nas ruelas, no emaranhado dos bairros do tempo indonésio compostos por casinhotos aos quais, com alguma boa vontade se chamam “casa”, só quem anda lá dentro pode, em boa verdade, assegurar que há calma.
Gostava de acreditar que a tranquilidade veio para ficar! Mas receio ser demasiado ousada nos meus desejos. De qualquer dos modos, sabe bem constatar que há três dias que, por exemplo, aqui na rotunda do aeroporto, não há pedras espalhadas no meio da rua nem gente olhando distraidamente o ar, espreitando uma oportunidade – ainda que ínfima! - para fazer o gosto ao dedo que é, como quem diz, para lançar uma pedrada a quem quer que seja que tenha o azar de passar à hora errada pelo “seu” campo de batalha.
Aproveitando os dias feriados de 1 e 2 a que se juntou o dia de hoje – fazendo a ponte para o fim-de-semana - muitos timorenses saíram para o interior. Quanto aos estrangeiros, aproveitaram os cinco dias de descanso para dar um salto a Bali.
Nota-se muito menos movimento na cidade. Parece-me que a razão da calma está relacionada com o êxodo da população. E também com a solenidade da época.
É fundamental que se continue a recordar e a respeitar quem partiu. O culto dos mortos é levado muito a sério pelos timorenses que o praticam com muito cuidado e reverência. Mais do que dos vivos, somos todos veneradores súbditos da morte, dos mortos, do Além!
Porque se acredita que eles, os mortos, os “matebian”continuam de certa forma vivos e continuam a ver-nos do lado de lá da vida. De uma outra vida, os que partiram vêem o que de bom e de mau é feito pelos que cá ficaram. E ora castigam, ora premeiam, de acordo com a natureza boa ou má das acções dos que permanecem vivos.
Se o que está à vista pode, de alguma forma, ser contrariado, desafiado, independentemente da dimensão da coisa, o mesmo não se dirá do que está oculto, do que não se vê! Ninguém quer nem se atreve a desafiar o poder dos “mate clamar”, as almas dos mortos!
Alguns já experimentaram o prémio dado por seres de um outro Mundo - um bom casamento, conseguir emprego, receber uma prenda inesperada – outros, o castigo, através de uma bofetada seguramente real ainda que só imaginada, de um redemoinho de vento forte, do animal que morreu repentinamente ou até mesmo do pesadelo e a pressão no peito em mal dormida noite explicada com o “mate clamar hanehan hau ”, ou seja, “a alma a esmagar-me…”
Talvez o medo do que nunca se viu mas se imagina ser muito poderoso, talvez o medo do que é intangível tenha provocado alguma sensação de insegurança e de desconforto nos campeões de rua; talvez isso tenha trazido um momento de lucidez. A suficiente para que tenha havido estes dias de tréguas, de quase paz em Díli!
PS: Ainda não tinha saboreado os pedaços de calma em cuja existência quis acreditar, quando sou obrigada a reabrir o posto e dar o dito por não dito. Não, não respeitamos nada nem ninguém, nem os mortos! Pois é, perdemos tudo, e nem as nossas tradições, nem a cultura nos valem de nada!
Vem isto a propósito de uma mensagem de aviso enviada pela embaixada australiana aos seus nacionais e que mão amiga me fez chegar dizendo que " increasing risk of australians being targeted. Use extreme caution on Comoro and beach roads. australian have been caught up in armed robbery and assault".
De vergonha e de tristeza, emudeço.