Amor em tempo de cólera
Tomo de empréstimo o título de Garcia Marquez para contar a história do meu casamento no passado dia 10 de Junho, que para os portugueses em geral é o dia de Portugal, de Camões ou das Comunidades Portuguesas, mas para mim é a data em que celebrei a minha união com Fernanda, a mulher maravilhosa que encheu de felicidade a minha vida. Os caríssimos leitores destas palavras que me perdoem a imodéstia de vir para aqui contar coisas do meu enlace matrimonial. Parece-me no entanto que esta história reflecte um pouco o ambiente dos tempos que correm, e de certa forma dá até uma imagem da história conturbada de Timor-Leste.
O início do conto é como o de todas as narrativas cor-de-rosa, o meu pobre coração ferido e cheio de ligaduras começou a bater mais mais forte por causa de uma certa beldade de olhos meigos e sorriso tímido, e uns tempos depois lá estava eu em Liquiçá para explicar aos futuros sogros que queria casar com a filha deles. Não mandei mensageiros ou enviados como é tradição por cá, fui com a minha namorada e os familiares com quem ela vivia em Díli, e enfrentei o desafio sozinho, de maneira franca, como gosto de fazer. O meu futuro sogro conduziu a conversa, a sua esposa algures lá para dentro da casa, tal como a minha namorada, enquanto eu era submetido ao “interrogatório para averiguações”. A conversa decorreu amena, sobre coisas como os valores familiares e a responsabilidade de um marido, mas era entrecortada de cinco em cinco minutos por uma pergunta algo ansiosa: então e é mesmo solteiro? Não era à toa que esta interrogação se repetia, muitas timorenses viveram histórias de amor com desfecho infeliz com malais que tiravam a aliança do dedo ao chegar ao aeroporto de Díli, para que esta não fosse um obstáculo aos seus “amores de férias” ou às relações que duravam enquanto durasse a comissão de serviço, por vezes sem que as envolvidas tivessem consciência de que o seu idílio amoroso era a prazo. Os timorenses repetem frequentemente uma expressão que já vem do tempo da administração colonial portuguesa: “Malae sa’e ró, timór sa’e rai” (algo como “O malai embarca, a timorense fica em terra”).
Ultrapassada a fase de inquérito sobre a natureza das intenções do candidato a genro, marcámos a data do casamento, a realizar, naturalmente, na paróquia da noiva, lá em Liquiçá. Escolhemos para padrinhos um casal meu amigo de há muitos anos, timorenses crescidos no exílio, ele em Portugal, ela na Austrália, companheiros de actividades no âmbito daquilo a que se veio a chamar a Frente Diplomática, ele também colega de residência durante os dois anos em que fui acolhido na casa dos ex-seminaristas timorenses no bairro social de Laveiras, perto de Lisboa. Tivemos que adiar a data de casamento uma semana porque no dia programado originalmente o padrinho iria estar ausente, em Genebra, numa viagem de trabalho. Entretanto soltaram-se em Timor os demónios adormecidos ou em semi-sonolência, e os planos para o casamento tiveram que ser alterados. Mantivemos a data entretanto re-marcada, 10 de Junho, mas não pudemos imprimir convites porque na altura de o fazer todo o comércio em Díli estava fechado e as pessoas confinadas às suas casas ou a campos de deslocados (refugiados na sua própria terra), enquanto grupos armados andavam aos tiros uns aos outros na capital d”o mais novo país do mundo”. Fomos a Liquiçá falar com o pároco para mudar a hora da cerimónia. Em vez de ser, segundo a tradição, à tarde e seguida de um banquete e baile durante a noite toda, optámos pela missa de casamento de manhã e depois um almoço para família e amigos próximos, porque a quase-entidade fantasmagórica a que se chama nas conversas em sussurros “a situação” cobre tudo como um manto de trevas, criando um ambiente que não dá para grandes festas. Os meus amigos e da noiva naturais de zonas do leste disseram-nos logo que tinham pena mas não poderiam ir por terem medo de se deslocarem a uma região do ocidente do país nestes dias de ódio irracional que vivemos actualmente. O grupo musical que iria tocar no casamento, amigos meus, tem os elementos dispersos pelos refúgios para onde a fortuna os empurrou. Os padrinhos originais fugiram para o estrangeiro, como fizeram muitos dos timorenses com passaportes de Portugal ou da Austrália. Aceitaram simpaticamente o convite para padrinhos alternativos os tios da noiva com quem ela tem vivido nos últimos anos em que tem estado a estudar na universidade em Díli, Tai Kiu e Kiu Mé. Decidi com a minha namorada que seria melhor irmos para Liquiçá na quinta-feira, dia 8, para estarmos já lá no caso de haver algum grupo a decidir cortar a estrada na data em que casaríamos. Entretanto, no bairro da Cooperação Portuguesa, onde tenho um quarto devido ao meu vínculo contratual com a Fundação das Universidades Portuguesas, pediram-me que aproveitasse a boleia de um grupo de GOEs que iria deslocar-se a Liquiçá com professores do Ministério da Educação português que ali tinham trabalhado e que iriam buscar as suas coisas. Os GOEs, da forma simpática e profissional a que nos têm habituado durante estes dias agitados, foram levar-me mesmo a casa da noiva, para conhecerem o caminho no caso de vir a surgir alguma situação perigosa na área que levasse a que tivessem que ir resgatar-me, o que implicou meterem os carros no leito da ribeira que dá acesso à casa dos meus sogros, num recanto meio escondido dos montes, e fez da minha chegada um sucesso, devido à escolta, dando-me a aparência de alguém importante no mundo dos malais (o que está bem distante da realidade...). Poucos conhecidos ou familiares meus ou da noiva residentes fora de Liquiçá puderam ir ao casamento, “devido à situação” (a minha família não poderia de qualquer forma porque é muito longe e muito caro vir de Portugal para aqui), mas mesmo assim pude contar com a presença de dois grandes amigos, a São e o Uka. Para mim foi uma festa bonita, porque com “situação” ou sem “situação” foi a comemoração do meu casamento com a Anoi (nome de estima da Fernanda entre os familiares).
A família da minha esposa é um pouco como que um símbolo dos dramas que têm ensombrado a vida dos timorenses. A mãe dela é chinesa timorense, filha biológica de um japonês aqui estacionado durante a Segunda Guerra Mundial. Casou com o pai da Fernanda, timorense de língua tocodede, e tiveram quatro filhos. Na altura da invasão indonésia foram para o mato, para as áreas controladas pela Fretilin. Os quatro filhos que tinham morreram todos. De doenças, de subnutrição, das precárias condições de vida durante aqueles agrestes anos de guerra. Depois de se renderem aos indonésios iniciaram de novo a vida, tiveram mais cinco filhos, a minha mulher é a segunda mais velha destes. A irmã mais nova dela é uma viúva com um filho bebé, porque o seu namorado morreu durante a gravidez, vítima de hepatite B, que a vacinação é um luxo de países ricos. Felizmente quer ela quer o filho de ambos estão saudáveis. E todos enfrentam a vida com um misto de esperança e resignação que faz espantar um observador exterior.
Eu e a minha mulher, por nosso lado, estamos agora no início de uma nova jornada nas nossas vidas, de olhos postos no horizonte, no sol que se vislumbra lá ao longe, para lá das nuvens escuras que ainda persistem no céu azul de Timor. E caminhamos com esperança.
O início do conto é como o de todas as narrativas cor-de-rosa, o meu pobre coração ferido e cheio de ligaduras começou a bater mais mais forte por causa de uma certa beldade de olhos meigos e sorriso tímido, e uns tempos depois lá estava eu em Liquiçá para explicar aos futuros sogros que queria casar com a filha deles. Não mandei mensageiros ou enviados como é tradição por cá, fui com a minha namorada e os familiares com quem ela vivia em Díli, e enfrentei o desafio sozinho, de maneira franca, como gosto de fazer. O meu futuro sogro conduziu a conversa, a sua esposa algures lá para dentro da casa, tal como a minha namorada, enquanto eu era submetido ao “interrogatório para averiguações”. A conversa decorreu amena, sobre coisas como os valores familiares e a responsabilidade de um marido, mas era entrecortada de cinco em cinco minutos por uma pergunta algo ansiosa: então e é mesmo solteiro? Não era à toa que esta interrogação se repetia, muitas timorenses viveram histórias de amor com desfecho infeliz com malais que tiravam a aliança do dedo ao chegar ao aeroporto de Díli, para que esta não fosse um obstáculo aos seus “amores de férias” ou às relações que duravam enquanto durasse a comissão de serviço, por vezes sem que as envolvidas tivessem consciência de que o seu idílio amoroso era a prazo. Os timorenses repetem frequentemente uma expressão que já vem do tempo da administração colonial portuguesa: “Malae sa’e ró, timór sa’e rai” (algo como “O malai embarca, a timorense fica em terra”).
Ultrapassada a fase de inquérito sobre a natureza das intenções do candidato a genro, marcámos a data do casamento, a realizar, naturalmente, na paróquia da noiva, lá em Liquiçá. Escolhemos para padrinhos um casal meu amigo de há muitos anos, timorenses crescidos no exílio, ele em Portugal, ela na Austrália, companheiros de actividades no âmbito daquilo a que se veio a chamar a Frente Diplomática, ele também colega de residência durante os dois anos em que fui acolhido na casa dos ex-seminaristas timorenses no bairro social de Laveiras, perto de Lisboa. Tivemos que adiar a data de casamento uma semana porque no dia programado originalmente o padrinho iria estar ausente, em Genebra, numa viagem de trabalho. Entretanto soltaram-se em Timor os demónios adormecidos ou em semi-sonolência, e os planos para o casamento tiveram que ser alterados. Mantivemos a data entretanto re-marcada, 10 de Junho, mas não pudemos imprimir convites porque na altura de o fazer todo o comércio em Díli estava fechado e as pessoas confinadas às suas casas ou a campos de deslocados (refugiados na sua própria terra), enquanto grupos armados andavam aos tiros uns aos outros na capital d”o mais novo país do mundo”. Fomos a Liquiçá falar com o pároco para mudar a hora da cerimónia. Em vez de ser, segundo a tradição, à tarde e seguida de um banquete e baile durante a noite toda, optámos pela missa de casamento de manhã e depois um almoço para família e amigos próximos, porque a quase-entidade fantasmagórica a que se chama nas conversas em sussurros “a situação” cobre tudo como um manto de trevas, criando um ambiente que não dá para grandes festas. Os meus amigos e da noiva naturais de zonas do leste disseram-nos logo que tinham pena mas não poderiam ir por terem medo de se deslocarem a uma região do ocidente do país nestes dias de ódio irracional que vivemos actualmente. O grupo musical que iria tocar no casamento, amigos meus, tem os elementos dispersos pelos refúgios para onde a fortuna os empurrou. Os padrinhos originais fugiram para o estrangeiro, como fizeram muitos dos timorenses com passaportes de Portugal ou da Austrália. Aceitaram simpaticamente o convite para padrinhos alternativos os tios da noiva com quem ela tem vivido nos últimos anos em que tem estado a estudar na universidade em Díli, Tai Kiu e Kiu Mé. Decidi com a minha namorada que seria melhor irmos para Liquiçá na quinta-feira, dia 8, para estarmos já lá no caso de haver algum grupo a decidir cortar a estrada na data em que casaríamos. Entretanto, no bairro da Cooperação Portuguesa, onde tenho um quarto devido ao meu vínculo contratual com a Fundação das Universidades Portuguesas, pediram-me que aproveitasse a boleia de um grupo de GOEs que iria deslocar-se a Liquiçá com professores do Ministério da Educação português que ali tinham trabalhado e que iriam buscar as suas coisas. Os GOEs, da forma simpática e profissional a que nos têm habituado durante estes dias agitados, foram levar-me mesmo a casa da noiva, para conhecerem o caminho no caso de vir a surgir alguma situação perigosa na área que levasse a que tivessem que ir resgatar-me, o que implicou meterem os carros no leito da ribeira que dá acesso à casa dos meus sogros, num recanto meio escondido dos montes, e fez da minha chegada um sucesso, devido à escolta, dando-me a aparência de alguém importante no mundo dos malais (o que está bem distante da realidade...). Poucos conhecidos ou familiares meus ou da noiva residentes fora de Liquiçá puderam ir ao casamento, “devido à situação” (a minha família não poderia de qualquer forma porque é muito longe e muito caro vir de Portugal para aqui), mas mesmo assim pude contar com a presença de dois grandes amigos, a São e o Uka. Para mim foi uma festa bonita, porque com “situação” ou sem “situação” foi a comemoração do meu casamento com a Anoi (nome de estima da Fernanda entre os familiares).
A família da minha esposa é um pouco como que um símbolo dos dramas que têm ensombrado a vida dos timorenses. A mãe dela é chinesa timorense, filha biológica de um japonês aqui estacionado durante a Segunda Guerra Mundial. Casou com o pai da Fernanda, timorense de língua tocodede, e tiveram quatro filhos. Na altura da invasão indonésia foram para o mato, para as áreas controladas pela Fretilin. Os quatro filhos que tinham morreram todos. De doenças, de subnutrição, das precárias condições de vida durante aqueles agrestes anos de guerra. Depois de se renderem aos indonésios iniciaram de novo a vida, tiveram mais cinco filhos, a minha mulher é a segunda mais velha destes. A irmã mais nova dela é uma viúva com um filho bebé, porque o seu namorado morreu durante a gravidez, vítima de hepatite B, que a vacinação é um luxo de países ricos. Felizmente quer ela quer o filho de ambos estão saudáveis. E todos enfrentam a vida com um misto de esperança e resignação que faz espantar um observador exterior.
Eu e a minha mulher, por nosso lado, estamos agora no início de uma nova jornada nas nossas vidas, de olhos postos no horizonte, no sol que se vislumbra lá ao longe, para lá das nuvens escuras que ainda persistem no céu azul de Timor. E caminhamos com esperança.
Tocante esta descrição. E um sinal de que o sonho prevaleceu. Parabéns aos noivos.
Posted by R.O. 9:04 da tarde
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Posted by nadja 11:05 da manhã
Allô!!! descobri-te mesmo à mão de semear no blogue do publico!! PARABENS AOS NOIVOS!!! Fico contente por mais uma brava prestação dos latagões do GOE. Beijinhos e até breve!!!
Nádia, ex-colega FUP e admiradora incondicional do GOE....
Posted by nadja 11:08 da manhã