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sexta-feira, março 09, 2007 

O cinema é uma festa

Aos sábados costumo mostrar filmes aos meus alunos, como actividade extracurricular de frequência facultativa, na sala de projecção do Centro Cultural Português. No sábado passado foi a vez de “Gato Preto Gato Branco”. Um êxito, como sempre. A exuberante comédia de Emir Kusturica arranca todos os anos gargalhadas e comentários entusiasmados. É preciso esclarecer que o cinema aqui é interactivo, como no salão de plateia e balcão da minha infância ilhavense, os espectadores saltam das cadeiras, avaliam em voz alta os acontecimentos da história, dão sugestões às personagens e mimoseiam-nas com insultos quando se portam mal. Há uns sábados atrás exibi o poderoso libelo contra a violência doméstica “Once were warriors/A alma dos guerreiros” de Lee Tamahori. Vários dos alunos seguiam o enredo com ar ansioso revendo-se nos dramas da família maori retratada, como me disse uma estudante no final do filme. Enquanto Jake desancava todos à sua volta, alguns gritavam “asu!” (cão), “Ha’u odi ó!” (odeio-te) e outras coisas do mesmo teor.

Os comentários cumprem uma outra função importante que é ajudar quem está à volta a compreender o enredo. A grande maioria dos meus estudantes universitários não tem velocidade de leitura suficiente para ler as legendas dos filmes, sejam estas em português ou em indonésio. E nao sabem ingles. Os que lêem mais rapidamente vão informando os outros das suas descobertas. Alguns vêm de zonas do interior onde não há televisão nem filmes. Mesmo em Díli não há cinemas, o público que tem poder económico para isso compra DVDs piratas com legendas em indonésio para ver em casa.

Quando comecei, há vários anos, a fazer sessões de cinema, havia reacções deles nalgumas partes que me surpreendiam (agora já estou habituado). Por exemplo numa cena de grande intensidade dramática d”A alma dos guerreiros” entre Grace e o “Tio” Bully (brilhantemente interpretada pela jovem actriz Nita Kerrbell) alguns riam-se. Também o faziam n”A lista de Schindler”, no momento em que os prisioneiros judeus correm nus no meio do medo mais atroz para serem inspeccionados ou quando vão para o que pensam ser as câmaras de gás onde serão exterminados. Os jovens timorenses riem-se porque é novidade para eles assistirem à representação visual de coisas que constituem actualmente motivo de vergonha na sua sociedade, como a violação e a nudez. Para o público de outros países essa cena do filme de Spielberg evoca o horror do Holocausto, o sofrimento indescritível de um povo que o regime demente de Hitler tentou destruir, câmaras de gás, fornos crematórios... Para os meus pupilos, que da II Guerra Mundial (a “Guerra Japonesa”) tinham apenas uma noção muito vaga e que nada sabiam dos massacres de judeus, há apenas pessoas, gordas e magras, novas e velhas, homens e mulheres, que correm nuas. Há seis anos eu trabalhava para o Instituto Camões e tínhamos o Centro de Língua Portuguesa noutras instalações, no interior do colégio Paulo VI, uma escola secundária da Igreja Católica. O acervo de livros e filmes (principalmente coisas de Manoel de Oliveira, João César Monteiro e afins...) do Centro estava disponível para utilização pelos alunos, e espantava-me o sucesso do “Non ou A vã glória de mandar”, que tão pouco entusiasmo havia despertado na maioria do público português. Depois percebi. Os rapazes tinham que assistir à totalidade da cassete para não despertar as suspeitas da funcionária timorense, mas estavam interessados numa única cena, a da Ilha dos Amores, em que aparecem fugazmente algumas ninfas nuas no bosque, para deleite de Vasco da Gama, da sua heróica tripulação e dos curiosos adolescentes de Díli. Depois da censura colonial salazarenta veio a censura indonésia (aí os filmes continuam a ter que ir à tesoura apesar da democratização recente do país), e só nos últimos anos começou a abertura de Timor ao mundo.

Há uns meses atrás, enquanto estava ao rubro a violência baseada na discriminação entre gente de leste e de oeste, mostrei-lhes, um a seguir ao outro, o perturbante “Hotel Rwanda” de Terry George e o ainda mais eloquente “Sometimes in April” de Raoul Peck (da HBO). Houve gritos assustados nas cenas mais violentas, moças e moços que se levantaram das cadeiras como se para fugir quando os grupos de milícias juvenis interahamwe apareciam com as catanas a raspar na estrada. No fim agradeceram-me por lhes ter dado a oportunidade de assistir a estes filmes, cientes de que, se as pessoas boas não fizerem nada, Timor pode vir um dia a tornar-se um pesadelo semelhante.

Depois os confrontos de rua em Díli passaram a ser entre grupos de artes marciais e dei-lhes a ver o “Only the strong”, com Mark Dacascos, com um argumento bastante tosco, mas com a mensagem certa. É a história de um grupo de jovens delinquentes de uma escola secundária muito violenta, reabilitados através da aprendizagem da capoeira, a tal ponto que no final denunciam à polícia os familiares e vizinhos que são chefes do crime na área. Quando o protagonista bom batia no mau os meus estudantes premiavam-no com uma salva de palmas.

Numa altura em que andava a falar-lhes de variação social da língua, de gíria juvenil (chamam-lhe aqui “bahasa gaul”, termo indonésio) e de calão, exibi o “Balas e bolinhos – O regresso”. Riram à gargalhada com as aventuras e desventuras dos bandidos de meia tigela do Portugal nortenho. Quando a matéria eram as famílias linguísticas e o ramo românico que tem origem na língua latina foi a vez do “The passion of the Christ” de Mel Gibson, falado em latim e aramaico, uma longa reconstituição da tortura até à morte de Jesus, que os deixou bastante impressionados. “O nome da rosa” serviu-me de apoio às explicações sobre os monges copistas e escribas medievais, e às dificuldades de circulação do conhecimento antes da invenção da imprensa de caracteres móveis. Também deu azo a um debate sobre o crime recente de Maubara em que três mulheres foram queimadas acusadas de serem bruxas. “Os olhos azuis de Yonta” de Flora Gomes, é sempre visto com exclamações que chamam a atenção para as semelhanças entre as experiências deles e as das personagens numa Guiné-Bissau independente mas pobre, na qual os antigos combatentes sentem que não foi para isto que lutaram e as infra-estruturas falham constantemente. “Gadjo Dilo – O estrangeiro louco”, de Tony Gatlif, costuma ser um dos preferidos, retratando o processo de encontro e aculturação de um malai que vai viver com os ciganos da Roménia. “A vedação”, de Phillip Noyce, deixa-os perplexos, perguntam-me como é que os australianos que trataram tão mal os aborígenes se sentem com legitimidade moral para vir para aqui dar lições sobre a língua melhor para Timor. Enquanto cá o português convive pacificamente com o tétum e os outros idiomas locais, na terra deles não apenas muitas das línguas dos habitantes nativos do país desapareceram, mas os falantes foram exterminados com elas. Outros filmes que mostro habitualmente são “Billy Elliot”, “O clube dos poetas mortos”, “Bend it like Beckham”, “Malena”, “Balzac et la Petite Tailleuse Chinoise”, “Sete anos no Tibete”, “A vida é bela”, “Braveheart”...

O cinema é uma festa, e em Timor, em vez de nos preocuparmos muito com as imprecisões históricas feitas por Hollywood nas suas reconstituições, damos graças pelo apoio que este suporte visual pode dar para ajudar os nossos jovens universitários a conhecer um pouco mais do mundo e do percurso feito pela humanidade à procura de um futuro melhor. A visão provinciana, de mente fechada, intolerante, facciosa, do que está em redor é uma das causas da violência actual em Timor. No último fim-de-semana queimaram um armazém do Ministério da Educação cheio de livros. Numa conversa informal com estudantes alguns diziam-me que a culpa era do Governo e da ofensiva contra o militar renegado Alfredo Reinaldo, expliquei-lhes que os criminosos pirómanos que destroem livros escolares nem sequer estão a cometer um crime contra um ministro qualquer (que também seria crime e condenável) mas sim contra os seus próprios filhos, contra a possibilidade de os seus filhos terem acesso a uma educação minimamente decente que lhes abra um futuro melhor do que o presente deles. Alguns acabaram por concordar comigo, outros não ficaram muito convencidos. A educação é uma luta longa e árdua em condições desiguais, é “combater o bom combate”.

Caro João,

Belo texto o seu. Sou português, e tive a oportunidade de visitar Timor em Março de 2005. Vi o filme "5 noites 5 dias". A plateia não era muito emotiva, e penso que lhe escapou o objectivo do filme, o contexto histórico. Afinal, eram só dois homens pulando fragas por serranias, algo normal num país com a geografia de Timor.
Será talvez importante a contextualização do filme quando este não é autoexplicativo (poucos aliás o são), sem paternalismos, está claro.

Muito obrigado mais uma vez pelo prazer da leitura do seu texto.

Atenciosamente,

Francisco Farinha

Sugiro-te também a Costa dos Múrmurios e os Capitães de Abril ....estou emocionada pela forma como lutas por comunicar a paz em tempo de guerra com tão poucas referências comuns. Lembro há um ano quando aí estive que o 28 de Maio ainda era um feriado com boa memória... triste, mas também aqui no rectangulo elegemos Salazar o maior português de sempre... onde falhou a memória?? Continua com força a remar contra a incompreensão... beijinhos

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