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sábado, agosto 19, 2006 

Sortilégios da Mãe Natureza



Da janela da sala, olho o dia lá fora. É manhã cedo. O dia tem aquela luminosidade especial que o Sol lhe empresta quando ainda não subiu demasiado alto no céu.
E enquanto não oiço rádio, não tomo contacto com o Mundo real, mantenho-me em santa ignorância informativa e aproveito para divagar…
Descanso os olhos no verde das árvores do meu quintal. Detenho-me sobre uma papaieira em flor, das que vivem necessariamente ao lado das que dão papaias. A Natureza, na sua perfeição, tem alguns encantos curiosos. Por exemplo, há a papaieira-fêmea e a papaeira-macho que se completam e estão condenadas a viver juntas. De contrário, nem há ai-dilan funan(1) nem papaia madura.
A curiosidade é que no reino das papaieiras a fragilidade está com o macho. Papaieira florida é papaieira-macho. A flor é delicada, minúscula, de um tom verde-amarelado e é comestível.
Recuando uns largos anos, quando eu vivia em Lisboa, recordo a chegada do meu irmão João ao aeroporto da Portela numa delegação da Resistência timorense, com um belo ramo de flor-de-papaia a ser oferecido em gesto de delicadeza a uma mulher. E foram-na, sem dúvida. Logo nesse dia, as flores fizeram parte do meu almoço, depois de terem sido transformadas em modo-fila (2).
A fêmea, mais robusta, enche-se de papaias, umas redondas, outras mais alongadas, umas cor-de-laranja, outras mais cor-de-rosa. Africano que se preze como é o meu marido entende que há diferença entre as papaias. De acordo com a cor e o tamanho, umas são papaias, outras são mamões. Mas aqui em Timor a tudo se chama papaia, ai-dila, em tétum. E a propósito de ai-dila, alguém disse um dia que o nome da cidade de Díli, derivava precisamente da palavra ai-dila.
Da papaieira, tudo se aproveita, excepto o caule. A flor é óptima em modo-fila para o que também servem as folhas quando tenras. A papaia come-se verde ou madura. Quando verde e pequena, da ai-dila okir, faz-se igualmente modo-fila ou mistura-se com o milho, recheia-se com carne, come-se como se quiser.
O povo acredita nas virtudes medicinais da planta, que é um poderoso remédio contra a malária e que faz bem aos doentes diabéticos. E que também é um fortíssimo anti-oxidante. Assim, a água em que se cozem as flores, as ai-dila okir (3) e as folhas passa a chá medicinal.
O gosto… bem o gosto é muito particular. Há que gostar mesmo. Amargo, mas saboroso. Aliás, quem não aprecia o amargor coze a flor, a papaia e as folhas antes de as saltear para tornar o alimento mais leve, quero dizer, mais comestível…
E se à primeira experiência se torce o nariz, como tudo é uma questão de hábito, depressa se aprende a gostar. Refiro-me obviamente aos malais (4), de gosto ocidental. Porque os timorenses, de qualquer escalão social, desde que nasceram se habituaram ao prato de modo-fila de papaia, flor ou fruto, na sua mesa. E se dizem que não gostam, querem passar por malais ou estão muito halo-an(5), dirão os que reagem mal a essas tontices de gente sem memória nem identidade…
Há ainda a seiva, de um branco leitoso. Umas gotitas, mínimas, e a carne mais rija de um búfalo trisavô vira lombinho de vitela trineta!

(1) ai-dilan funan – flor de papaia
(2) modo-fila – legumes salteados em banha com alho esmagado com casca
(3) ai-dila okir – papaia tenra
(4) malais – estrangeiros
(5) halo-an – convencido, vaidoso


PS: Depois do texto pronto, fez-se luz! Estou sorridente: Já tenho INTERNET!!! Desde há dois minutos
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