« Página inicial | Há medos e medos » | Quem olha por Díli? » | Um conto e um ponto mais... » | Mais violência, mais insegurança » | Paz Podre » | Incertezas » | Quando a esmola é grande... » | Rumores, boatos, exageros » | Nostalgia de Timor » | Dias agitados » 

terça-feira, agosto 08, 2006 

A ignorância é muito atrevida

Não era assim no tempo da colonização portuguesa. Porém, durante os vinte e quatro anos de presença indonésia e com a saída do país de grande número de timorenses em 1975, introduziram-se novas práticas de vida entre as quais a ocupação e apropriação indevida de bens que se tornaram um hábito banal no país.
Durante esses anos, muitas casas foram ocupadas por cidadãos indonésios. Outros, que escolheram a então 27ª província para viver, foram adquirindo bens imóveis a verdadeiros donos ou a outros que como tal se consideravam. Bens que deixaram para trás quando regressaram em fuga ao seu país devido aos acontecimentos de 1999. Com esse êxodo, acrescido ao da saída de refugiados timorenses para o Timor indonésio, e com a vinda para a cidade de grande número de habitantes do interior de Timor, deu-se nova ocupação de casas.
Já é tempo da independência mas, antes sendo displicentemente ignorado, permanece sem resolução um grande número de situações umas complexas, outras nem tanto. Alguns proprietários conseguiram reaver os seus bens; não foi tarefa fácil nem mesmo com a intervenção da Justiça, uma vez que os novos ocupantes se negavam a prescindir do que já consideravam seu.
São inúmeros os casos conhecidos em que o verdadeiro dono de uma casa ou de um terreno tem de indemnizar o novo morador não só pelo uso da casa como também pelo plantio instantâneo de uma bananeira apenas para marcar terreno ou de uma horta que lhe deu proveito. Sobre qualquer coisa o novo morador entende dever receber algum ganho porque “tenki selu hau nian kole no servisu”*.
Por outro lado, nos vários bairros, os moradores de Loromonu e de Lorosae - mesmo que o não fossem desde sempre, eram-no há muito mais tempo - consideram como forasteiros quem chegou à cidade em 1999. E estes vieram quase todos do Leste, de Lorosae. Novos no meio, ignorando as regras e desconhecendo quem era ou não proprietário – talvez também pela interpretação errada do conceito independência -, foram ocupando casas no centro da cidade e nos arredores, fazendo hortas, criando raízes, por isso começando a ser mais tolerados e melhor aceites pela população mais antiga.
Os acontecimentos deste ano ditaram o retrocesso e os mais novos passaram a ser uma vez mais considerados forasteiros. Muitos voltaram para as suas terras de origem. Outros, em maior número, refugiaram-se nos vários campos de acolhimento. Aeroporto, Hospital e Porto de Díli são justamente os campos onde se nota maior ocorrência de incidentes entre refugiados e moradores das respectivas zonas.
Com a promessa de realojamento dos deslocados pelo Primeiro-Ministro e simultâneo pedido de regresso a suas casas, muitas delas ocupadas indevidamente disso havendo conhecimento e desleixo das autoridades.
Com a intransigência dos outros habitantes desses bairros. Com os incidentes que diariamente se registam no Bairro Pité, na área interior da Praia dos Coqueiros, em Tuana Laran, em Comoro,(de Fatu Hada até Taci Tolu passando por Manleuana, Ai Mutin, Delta, Bebonuk, Hudi Laran etc, etc.) em Bécora, em Bidau (Massau, Lecidere, Santana), em Taibesse…
Com a conclusão determinante do subsecretário de Estado norte-americano ao defender que "os deslocados têm de sair dentro de um mês ou dois, porque não podem ficar indefinidamente nos campos”, e porque, segundo o mesmo, cabe às autoridades timorenses trabalhar em primeiro lugar para criar um clima de segurança.
Quem pode garantir – particularmente depois do recrudescimento da violência nestes últimos dias – que em dois meses tudo voltará ao que era dantes, que as populações se aceitem e relevem as provocações, ataques e insultos mútuos? Quem e como se garante a reintegração de todos quantos têm de viver lado a lado?
Uma tomada de decisão no sentido de fazer regressar as populações deslocadas deverá sê-lo alicerçada na reposição de valores como o respeito, a tolerância e a educação.
Dois meses representam muito pouco tempo para uma solução em que o objectivo seja a criação e restabelecimento de paz. Se, pelo contrário, tudo se fizer apenas para cumprir calendário, mantendo todas as situações nunca resolvidas pelo governo anterior, a paz, se imposta institucionalmente, não interiorizada nem sentida pelas pessoas, continuará a ser podre.
Ampliada pela crise persistirá escondido mais um argumento para o renascer sem hora marcada da violência originada pela estúpida, gratuita e insensata questão criada em torno da divisão geográfica Lorosae, Loromonu. Uma questão exacerbada e posta em prática precisamente porque a Justiça, devidamente aplicada - e apesar de muitos discursos, muito debate e muita controvérsia -foi nestes anos considerada um bem excedentário. E, obviamente, quem nasceu sob o signo da violência, habituou-se a viver e a tudo fazer sem regras, impunemente, sob o olhar superior, distante da classe dirigente entediada com essas pequenas coisas do povo…
Satisfazemo-nos com os números, os fundos depositados, regozijamo-nos pelo facto de não termos dívidas. Entretanto e enquanto se negligencia a qualidade de vida de quem hoje é adolescente e adulto, se mantém descurada e adiada a educação cívica da actual população que deveria estar preparada para a transmitir aos mais novos, defende-se que os nossos netos terão outra qualidade de vida.
Mas, se a educação, o respeito e a tolerância não constam dos atributos da população actual, quem irá passar o testemunho aos netos? E que testemunho, que herança, serão transmitidos?

* Tenki selu hau nian kole no servisu – Deve pagar-me o meu esforço e trabalho