Crenças e crendices
A violência grassa pelas ruas da cidade, sobem de tom as provocações e os insultos, banalizam-se os apedrejamentos e os ataques com armas tradicionais.
E à grosseira manifestação da vontade de quem não tem mais nada que fazer se não passar o tempo postado na berma da via pública à espreita de um qualquer pretexto para intervir, os rapazes acrescentaram agora outra modalidade ao rol da sua extensa lista de malvadez com a escrita de palavras ofensivas na via pública em português vernáculo, como hoje vi junto da ponte de Comoro, adivinhando-se bem a quem se dirigem.
As histórias que se vão contando à boca pequena, de tão mal engendradas espantam qualquer pessoa. No entanto, elas passam de boca em boca e de tão repetidas passam a perigosas verdades e não há nada que convença os atentos ouvidores dessas histórias de que não devem ser tão crédulos.
A quem pode servir o arrastamento desta crise? Quem estará tão interessado que em Timor se aplique o dito de “quanto pior, melhor”?
Esta sensação de constante insegurança cansa e envergonha! Tanto cansa e envergonha que vou fazer uma pausa, nem vou falar do cansaço e da vergonha, antes vou contar uma outra história de quando em Timor-Leste tudo era esperança, tudo eram sonhos. Não foi assim há tanto tempo. O tempo era de convicções e nós estávamos no limiar da nossa independência.
Depois de alguns meses a viver em casa do meu irmão João, mudámo-nos para a casa acabada de construir da minha irmã mais nova. Ainda não havia jardim nem pomar. Nada. O quintal ainda era só de pedras e pedaços de madeira espalhados aqui e ali. Nos terrenos circundantes era mato.
A varanda da casa, com chão de azulejo branco, convidava ao descanso. Ali ficava horas a fio olhando a colina onde em tempos havia uma casa. A da minha mãe. E de que nada resta senão o chão em cimento cinzento e uma vista lindíssima sobre mar com o Ataúro, Alor ao fundo. E, obviamente, recordações e saudades de um outro tempo.
Caía a tarde e eu recolhera-me por momentos. Mal pus de novo o pé na varanda, vi uma cobra pra´i de metro e meio, preta, comprida, feia. A cobra escorregava no chão brilhante, não conseguindo sair do mesmo sítio. Gritei de medo, naturalmente! Tanto que dois empregados se aproximaram numa correria, pensando que um malfeitor se havia introduzido em casa. (Na altura por malfeitor entendia-se milícia…)
O Marcelino, sem medo, pegou na cobra. Fez de conta que me perguntava que fazer com o bicho mas foi ditando a sentença: vou largá-la no mato. Ela vai ter a casa dela.
O episódio fez história e alimentou a imaginação da gente das redondezas. O ano de 1999 estava tão perto que ainda ninguém esquecera o horror desses dias!
Olhando-me de soslaio, perguntou a Bety, mal me viu: a senhora matou a cobra? Respondi-lhe que não e ela retorquiu: Ainda bem, porque se o tivesse feito, a família dela, os pais e os filhos da cobra, vinham procurá-la. Respirei aliviada!
A Isa dizia-me que podia tratar-se da incarnação de uma das vítimas das milícias. Portanto, para sossegar a alma errante feita cobra, deveria pedir a um padre que benzesse a casa.
Outro mais velho, animista, foi-me avisando: isto pode ser inveja! Ele é o diabo! O melhor é fazer um lulik para salvar a senhora e a casa de qualquer mau-olhado!
Nestas coisas do outro mundo, eu não meto prego nem estopa. Sou uma ignorante e cumpro rigorosamente o que há para fazer. Nem discuto! Eles é que sabem!
Falei com o padre e em dia aprazado benzeu-se cada canto da casa e do quintal numa bela cerimónia em que todos participámos de vela acesa na mão acompanhando a reza e a bênção. No fim, à boa maneira timorense, reunimo-nos à mesa. Chegara o tempo de confortar o estômago.
O Filomeno meteu uma cunha a um especialista do burgo na arte de espantar maus-olhados; pela calada da noite próximo da madrugada, fez as suas rezas, espalhou as mezinhas pelos quatro cantos da casa e deu de comer aos bichinhos que encontrou: grilos, carochas, formigas. Manhã cedo soube que estava tudo resolvido. Estávamos salvos da cobra, homem feito animal, alma penada ou belzebu, sei lá!
O que sei é que quando nos mudámos para a nossa casa nova, também sem flores, sem árvores, com pedras e paus, nem fiquei à espera que a prima da cobra de há quatro anos aparecesse! Cumpri tudo à risca! Até hoje, deu certo!
E à grosseira manifestação da vontade de quem não tem mais nada que fazer se não passar o tempo postado na berma da via pública à espreita de um qualquer pretexto para intervir, os rapazes acrescentaram agora outra modalidade ao rol da sua extensa lista de malvadez com a escrita de palavras ofensivas na via pública em português vernáculo, como hoje vi junto da ponte de Comoro, adivinhando-se bem a quem se dirigem.
As histórias que se vão contando à boca pequena, de tão mal engendradas espantam qualquer pessoa. No entanto, elas passam de boca em boca e de tão repetidas passam a perigosas verdades e não há nada que convença os atentos ouvidores dessas histórias de que não devem ser tão crédulos.
A quem pode servir o arrastamento desta crise? Quem estará tão interessado que em Timor se aplique o dito de “quanto pior, melhor”?
Esta sensação de constante insegurança cansa e envergonha! Tanto cansa e envergonha que vou fazer uma pausa, nem vou falar do cansaço e da vergonha, antes vou contar uma outra história de quando em Timor-Leste tudo era esperança, tudo eram sonhos. Não foi assim há tanto tempo. O tempo era de convicções e nós estávamos no limiar da nossa independência.
Depois de alguns meses a viver em casa do meu irmão João, mudámo-nos para a casa acabada de construir da minha irmã mais nova. Ainda não havia jardim nem pomar. Nada. O quintal ainda era só de pedras e pedaços de madeira espalhados aqui e ali. Nos terrenos circundantes era mato.
A varanda da casa, com chão de azulejo branco, convidava ao descanso. Ali ficava horas a fio olhando a colina onde em tempos havia uma casa. A da minha mãe. E de que nada resta senão o chão em cimento cinzento e uma vista lindíssima sobre mar com o Ataúro, Alor ao fundo. E, obviamente, recordações e saudades de um outro tempo.
Caía a tarde e eu recolhera-me por momentos. Mal pus de novo o pé na varanda, vi uma cobra pra´i de metro e meio, preta, comprida, feia. A cobra escorregava no chão brilhante, não conseguindo sair do mesmo sítio. Gritei de medo, naturalmente! Tanto que dois empregados se aproximaram numa correria, pensando que um malfeitor se havia introduzido em casa. (Na altura por malfeitor entendia-se milícia…)
O Marcelino, sem medo, pegou na cobra. Fez de conta que me perguntava que fazer com o bicho mas foi ditando a sentença: vou largá-la no mato. Ela vai ter a casa dela.
O episódio fez história e alimentou a imaginação da gente das redondezas. O ano de 1999 estava tão perto que ainda ninguém esquecera o horror desses dias!
Olhando-me de soslaio, perguntou a Bety, mal me viu: a senhora matou a cobra? Respondi-lhe que não e ela retorquiu: Ainda bem, porque se o tivesse feito, a família dela, os pais e os filhos da cobra, vinham procurá-la. Respirei aliviada!
A Isa dizia-me que podia tratar-se da incarnação de uma das vítimas das milícias. Portanto, para sossegar a alma errante feita cobra, deveria pedir a um padre que benzesse a casa.
Outro mais velho, animista, foi-me avisando: isto pode ser inveja! Ele é o diabo! O melhor é fazer um lulik para salvar a senhora e a casa de qualquer mau-olhado!
Nestas coisas do outro mundo, eu não meto prego nem estopa. Sou uma ignorante e cumpro rigorosamente o que há para fazer. Nem discuto! Eles é que sabem!
Falei com o padre e em dia aprazado benzeu-se cada canto da casa e do quintal numa bela cerimónia em que todos participámos de vela acesa na mão acompanhando a reza e a bênção. No fim, à boa maneira timorense, reunimo-nos à mesa. Chegara o tempo de confortar o estômago.
O Filomeno meteu uma cunha a um especialista do burgo na arte de espantar maus-olhados; pela calada da noite próximo da madrugada, fez as suas rezas, espalhou as mezinhas pelos quatro cantos da casa e deu de comer aos bichinhos que encontrou: grilos, carochas, formigas. Manhã cedo soube que estava tudo resolvido. Estávamos salvos da cobra, homem feito animal, alma penada ou belzebu, sei lá!
O que sei é que quando nos mudámos para a nossa casa nova, também sem flores, sem árvores, com pedras e paus, nem fiquei à espera que a prima da cobra de há quatro anos aparecesse! Cumpri tudo à risca! Até hoje, deu certo!