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domingo, agosto 13, 2006 

Casamento em Timor

Duas questões de pormenor e a continuação de falta de acesso à INTERNET, porque ainda agora estão a abrir as valas para a colocação de cabos, fizeram com que por dois dias não tivesse oportunidade de postar.
Há mais de uma semana que tínhamos viagem marcada para Denpasar, Bali e desde logo ficámos em lista de espera. Na sexta-feira, dirigimo-nos três horas antes da chegada do avião esperando que, por um golpe de sorte, fôssemos chamados a embarcar. Mas foi em vão. Depois dessas três horas em pé à espera do tal golpe de sorte, voltámos para casa tão cansados como se tivéssemos feito uma viagem de oito horas até à praia de Tutuala.
Já lá foi o tempo em que havia sempre lugar. Mas, desde que a companhia indonésia descobriu que o número de passageiros descera dos 85 para 65 – logo, se tornara menos rentável -, reduziu a frequência diária dos voos para quatro dias por semana. Para além disso, porque a pista do aeroporto não é suficientemente comprida, em vez dos 120 passageiros que comporta o avião, apenas transporta 100 e tudo se torna ainda mais difícil.
Apesar de tudo, o avião da companhia indonésia tem um tamanho razoável e é confortável. O mesmo não acontece com o da companhia australiana Airnorth. O elevado preço do bilhete não corresponde às condições do avião que, de tão pequeno – não estou certa mas creio que transporta entre 10 a 15 pessoas - a ninguém é permitido levar mais do que 13 quilos na bagagem, muito embora tenha direito a 20 kg. E é bom rezar a todos os santos que nos poupem a uma contratempo fisiológico pois nem sequer há casa-de-banho!
É o que faz sermos tão dependentes…

Ontem, o dia foi diferente. Tinha convite para dois casamentos realizados quase à mesma hora. Mas, como não tenho o dom da ubiquidade, apenas pude ir a um, ao da filha do Nazário. Liliane, a noiva e Gerson, o noivo, vieram casar-se a Timor. Vivem no Reino Unido, destino que, a par da Irlanda, um vasto grupo de timorenses jovens escolheu para trabalhar já depois da independência. Da Austrália, vieram os padrinhos emigrados em Melbourne desde 1975, outro ano de má memória na História de Timor.
O tempo em que as festas duravam até às tantas, com música ininterrupta “até ao raiar do sol” faz parte do passado. Ainda que estejamos a falar de um passado bem recente de três meses, nunca mais as noites habitualmente silenciosas da cidade, cortadas pelo ruído dos grilos, morcegos ou toqués, foram interrompidas pelo som da música que abafava qualquer outro ruído nocturno...
Com a insegurança instalada, as festas de agora começam cedo e terminam antes do anoitecer. Mas, como dizia Anito Matos, o animador de serviço, devíamos aproveitar bem as poucas horas que tínhamos para conviver, divertir-nos, comer e dançar, até porque a segurança do recinto estava garantida.
Diga-se contudo que, já antes da crise, mais concretamente nos primeiros tempos da transição para a independência e mesmo depois dela, era preciso avisar a polícia e contratar seguranças para precaver e evitar os apedrejamentos de jovens em fúria que viam goradas as suas tentativas de participar nas festas utilizando o estilo “penetra”. Conta-se que irrompiam de imprevisto pelo salão sem cerimónia nenhuma. Se lhes apetecia, dançavam. Se a cólera que os atacava era superior à vontade de um pé de dança, dirigiam-se à cozinha e davam cabo de tudo, não sem levar consigo tachos e panelas cheios de comida, perante a incapacidade de reacção e a estupefacção dos presentes.
Um casamento timorense é sempre um espectáculo de luz, som, cor e fartura de comida e de convidados. A capacidade financeira da família não é determinante para o maior ou menor número de convidados e menos ainda para o fausto da cerimónia e dia de casamento é dia em que as diferenças sociais se esbatem e as dificuldades se tornam inexistentes… até ao dia seguinte.
Depois de concluídos e combinados os pormenores decididos nas longas reuniões de família, todos os parentes contribuem para que a festa seja um sucesso, o que acontece normalmente porque as várias pessoas encarregadas cada uma delas de uma tarefa precisa na complexa organização da festa se esforça para o esplendor e o brilho da cerimónia.
Hoje, nada faltou a não ser que diminuiu o número de convivas. Em vez dos mil a três mil habituais estavam 600 pessoas. E foi com pompa e circunstância que a cerimónia se iniciou em ambiente solene na Igreja de Motael, com missa acompanhada por um coro entoando a preceito canções adequadas ao momento.
Ninguém atropela ninguém, respeita-se o lugar na fila para a longa mesa cheia de pitéus de sabor timorense, português, chinês e indiano, tudo fazendo parte da gastronomia local e, em menos de nada, todos estão servidos. Depois, como também é usual e mandam as regras, a mesa do banquete, deve continuar bem apresentada, repleta.
Os convidados apresentam-se vestidos a rigor. Ressaltam as crianças nos seus fatos de tule ou chiffon branco, rosa ou azul e as jovens, elegantes, bonitas, pouco pintadas, bem penteadas, cabelos escuros apanhados na nuca ou soltos pelas costas, trajando vaporoso fato comprido condizendo com sapatos de salto de dez centímetros de altura, meneando-se em contínua passagem de modelos, dançando sucessivamente, sorrindo, seduzindo, deixando-se levar voluptuosamente nos braços dos rapazes igualmente elegantes, sedutores e bem vestidos, gel no cabelo onde por vezes e à moda pontuam nuances loiras, brinco na orelha…
A animação toma conta de todos e nem os katuas* escapam ao clima de festa. A pista enche-se e todos dançam ao ritmo de música tão diversa como “Suru Boek”, “La cumparsita”, “I can´t stop loving you”, “O bailinho da Madeira”, “Olha a marcha do Benfica”, “Cartas de Amor” ou “Encosta a tua cabecinha no meu ombro e chora”.
De tão natural é o recurso a canções em português do tempo antigo, o da colonização portuguesa, que ninguém repara que o cantor é jovem , nasceu no tempo da ocupação indonésia e mal fala português… Talvez também porque, como a feijoada, a caldeirada de cabrito, o pão-de-ló ou o pudim são já pratos típicos de Timor, se acredite que essas canções são da autoria de um timorense do mais recôndito, profundo e escondido canto de uma montanha perdida de Timor-Leste…


* katuas - velho