O país do referendo de 30 de Agosto de 1999
Ia recordar a beleza daquele dia em que éramos todos timorenses esperançados, unidos em torno de um sonho. Nesse dia, ninguém queria saber se eram puros, mestiços, se eram filhos, pais ou cônjuges de timorenses. Nesse dia ninguém ousaria sequer imaginar que poderia não ser no devir dos tempos considerado timorense. Não. Era bem o tempo dos sonhos e, por isso, éramos todos timorenses, sabíamo-lo!
Naquele dia, o Jardim Constantino em Lisboa encheu-se de uns dois ou três milhares de pessoas - muitas das quais não se viam há dezenas de anos, desde os bancos de escola - ligados pelo sonho de Timor independente. Sabíamos que todos os votos contavam para conseguir torná-lo realidade! Sentíamo-nos vencedores e estávamos impantes de orgulho da nossa condição timorense!
Passaram sete anos. O Timor de hoje traz muita dor. Dores provocadas por nós próprios, timorenses, cidadãos deste país que deixámos cair por terra todos os sonhos acumulados por longos anos de sofrimento e tornados autênticos, verdadeiros, naquele dia radioso de 30 de Agosto de 1999!
Sete anos depois, são cidadãos de Timor-Leste aqueles que têm a sorte de conseguir o passaporte de Timor-Leste à primeira sem os habituais problemas que surgem do nada, por nada e para nada que não seja complicar a vida de quem é e se sente timorense; Cidadãos timorenses são os que vencem pela persistência a luta da multiplicação ad eternum de requisitos exigidos de acordo com a simpatia ou a antipatia do funcionário pelo requerente da cidadania que, para conseguir o que lhe cabe por direito próprio, quase tem de pôr-se de joelhos para a “obter”, à cidadania avaramente concedida quando não sobra mais nenhuma desculpa para adiar a dádiva, presente do zeloso manga de alpaca vestido de deus de coisa nenhuma…
Sete anos que são passados, estamos assim na vida, sem orgulho, tristes, abatidos, displicentemente esperando que a calma se mantenha por mais uma hora. Entregues ao gozo do momento que se vive porque no segundo seguinte pode acontecer tudo.
Hoje, era dia de festa, relativa, discreta, mas mesmo assim, festa. O jardim do Palácio do Governo engalanou-se com faixas apelando à unidade, reiterando a certeza de um só Timor, um só povo…
Dia feriado, música ao vivo em perspectiva, sol radioso em céu azul sem nuvens, calma pelo menos aparente, mar azul sulcado por alguns barcos de bandeira desfraldada ao vento, o branco barco-hospital norte-americano ao largo, pássaros voando, crianças correndo na praia, os ramos dos gondoeiros gingando ao ritmo da brisa leve, enfim, um dia a convidar à contemplação, ao descanso, à distracção.
Deve ter sido tanta a distracção, a contemplação e o deleite da natureza timorense que os elementos da força neo-zelandesa que montavam guarda à prisão de Bécora deixaram os portões abertos, as celas libertas de olhares indiscretos e um mudo e cúmplice convite endereçado a 57 presos que se levantassem, se espreguiçassem e desentorpecessem as pernas vindo até ao ar livre para gozar merecidamente as delícias do feriado de 30 de Agosto!
Faz algum sentido, pois claro! É humano, pois claro! Revela sensibilidade, naturalmente!
E se não fosse dramático, daria até para rir. Se envolvesse apenas guardas timorenses não haveria de faltar quem concluísse num jeito superior de quem de nós tudo sabe que nós “timorenses, não fazemos nada de jeito”. E que, como também já ouvi, somos muito básicos! Mas não, há outros seres básicos que não fazem nada de jeito:para além da ausência dos guardas locais, os estrangeiros também não estavam presentes!
Numa mensagem curta fiquei a saber: Major Reinado fugiu há meia hora.
Refere uma notícia que o advogado de Reinado é o Dr. Paulo Remédios. Parei para pensar um bocado mas não há confusão. Paulo Remédios, o advogado timorense vindo de Macau, é também o advogado de Rogério Lobato. Outra pausa - talvez também eu estivesse a deixar-me levar pelo ambiente envolvente… – e concluo que as acusações que sobre ambos impendem são opostas. Ou não?
E antes que pense e conclua que este país não existe, ou que está tudo virado do avesso, que estamos todos loucos, que andamos todos enganados e a enganar-nos mutuamente, que nada faz sentido, que há quem queira o pior para este país, antes de tudo isso, vou terminar recordando o sonho feito realidade a 30 de Agosto de 1999.
Não consigo descartar alguma vergonha mesmo que com coisa nenhuma tenha, em consciência, contribuído para a situação actual; nem sequer me apetece disfarçar que adormeci por muito tempo o orgulho de ser cidadã deste país. Mas resta-me, apesar de tudo, um bom pedaço do sonho de que resultou o 30 de Agosto de 1999, o dia do Referendo, o dia da independência de Timor. É que acredito, quero e vou continuar a acreditar que a independência de Timor valerá sempre a pena. Apesar de tudo…