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sexta-feira, julho 07, 2006 

Cultura urbana?

A formação em Timor de uma sociedade urbana cosmopolita e moderna ainda está na infância. Díli não é uma verdadeira cidade, mas uma aldeia grande, ou um estreito canal de comunicação das aldeias timorenses para o mundo, e numa situação de crise, como esta que temos vivido, compreende-se imediatamente que não há uma identidade colectiva citadina minimamente resistente (o tipo de solidariedade que os urbanitas de Nova Iorque mostraram ao mundo pela forma como reagiram aos ataques de 11 de Setembro de 2001 é algo de impensável aqui). Em muitos países do mundo encontramos culturas urbanas e culturas rurais com grande vitalidade que ora se complementam ora se chocam dentro de um mesmo Estado; cá em Timor quase só a cultura rural tem realmente força, razão porque as famílias conservam as raízes bem ancoradas no knua de onde são originárias na montanha, prontas para recuarem para aí quando as coisas se complicam. Uma parte significativa dos habitantes de Díli está cá há poucas gerações, ou chegou na última década, e foram poucas as pessoas que encontrei nestes últimos dois meses que me disseram que não iriam fugir nem mandar parte dos seus para a montanha por não terem aí ligações. Para muitos jovens que crescem em Díli o resultado disto é que andam um bocado à deriva, já não integrados em pleno na cultura das uma-lulik (casa sagrada), dos makaer-lulik e lia-na’in (anciãos guardiães da tradição), e sem uma cultura urbana bem estabelecida à qual aderir.
Uma das grandes derrotadas nesta crise que assolou Timor-Leste é assim a cidade de Díli.
A fragilidade da incipiente cultura urbana timorense tem raízes históricas. Aqueles que não vêem uma única coisa positiva na experiência colonial deverão considerar a colonização de Timor Oriental pelos portugueses como exemplar, já que primou pela ausência e pela pouca interferência nas estruturas sociais e culturais timorenses. Assim, durante muito tempo as elites locais continuaram a ser apenas os membros da aristocracia tradicional, não se tendo formado o tipo de elite crioula que surgiu por exemplo em Angola no séc. XIX e é descrita em romances como “Nação Crioula” e “A Conjura” de José Eduardo Agualusa. Se olharmos para D. Boaventura, chefe da mais emblemática revolta contra o poder colonial português, e apontado por alguns como “pai” do nacionalismo leste-timorense, vemos fundamentalmente o líder de uma revolta nativa, sem uma classe urbana engajada a produzir textos nacionalistas ou doutrinários. Faltava provavelmente ainda na época um grupo significativo de filhos do Império com um nível de educação suficiente para teorizarem a revolta. Algo bem diferente do que aconteceu nas Filipinas, país do Sudeste Asiático socio-culturalmente muito mais próximo de Timor-Leste do que a Indonésia, no qual surgiram líderes nacionalistas da craveira de José Rizal (autor de romances de grande qualidade como Noli me Tangere (1887) e El Filibusterismo (1891) nos quais denunciou os excessos da Igreja católica e das autoridades coloniais espanholas). Mas as Filipinas são mais de 7000 ilhas, que constituíram uma parte importante das possessões coloniais de Espanha, enquanto Timor sempre foi um pequeno espaço na periferia do império. Uma situação também muito distinta da que permitiu o desenvolvimento de Singapura, local axial das rotas comerciais do império britânico e palco de actuação de uma dinâmica e numerosa classe comercial de etnia chinesa. Os que dizem por vezes que Timor pode tornar-se numa outra Singapura não conhecem a realidade timorense.
Mas agora que há em Timor cerca de duas dezenas de entidades que se auto-intitulam de instituições de ensino superior, vamos ver se Díli se transformará enfim numa verdadeira cidade…