« Página inicial | Brigada de limpeza na cidade » | Outros tempos, tempos novos! » | Somos de Lorosa´e! Silêncio! » | Campo de Refugiados no Hospital Nacional » | Quem tudo quer… tudo perde! » | Novo Primeiro-Ministro, novo estilo » | E, todavia, tudo voltou ao normal… » | Música e poesia nos campos de refugiados » | Cultura urbana? » | Domingos, vendedor de tangerinas » 

terça-feira, julho 18, 2006 

Almas de Klalerek Mutin

Todos os anos, por esta altura, para quem não vai de férias ao estrangeiro ou para aqueles que querem conhecer o Timor autêntico, é o momento de planear alguns passeios pelo país, de Lorosa´e a Loromonu, a Rai Klaran, de Taci Feto a Taci Mane.
A meio caminho de Lorosa´e, a paragem em Baucau é obrigatória. A pousada de Baucau, mais selecta, ou o restaurante Amália (quando estava aberto) e o Benfica, um destes pontos é pretexto para um café. Depois, é só escolher.
Ir a Lospalos, ver ao vivo as raras casas altas, rompendo o céu, elegantes, aprumadas, imagens de marca da região, ou embrenhar-se na mata de Loré, subir ao recôndito e belíssimo Iliomar, ir a Viqueque, a Ossu... conhecer as praias, atravessar ribeiras, reconstruir vias de comunicação …
Já há segurança, alguma, mas, por ora, alvitra-se que os passeios terão de ficar para mais tarde. Não quereria admitir sequer que serão para as calendas gregas. Isso soa-me a nunca mais…
Cada lugar tem uma história peculiar. Cada conto tem um encanto singular. E o mistério não mora ao lado, está sempre presente. O imaginário timorense transporta-nos à magia desta meia-ilha. Impõe-se preparar o espírito para “acreditar” nas histórias que serão inverosímeis noutra qualquer circunstância ou em outro qualquer lugar mas se transforma em insofismável verdade nas aldeias perdidas de Timor-Leste, onde o sagrado e o profano andam de mãos dadas.

A caminho de Klalerek Mutin, uma aldeia onde houve um massacre no tempo da ocupação, um dia, ainda Timor não era independente, houve uma procissão em que a imagem de Nossa Senhora de Fátima percorria as pequenas povoações levada aos ombros dos crentes em padiola colorida de flores vermelhas de acácias.
Na curva do caminho, do meio do mato, num lugar de ninguém - daqueles em que as sombras de árvores frondosas fazem de todo o dia de sol luminoso apenas uma pálida madrugada, porque até o sol se sente envergonhado por se dar ao despudor brilhando naquele mágico lugar - surgiu uma jovem. Um grito lancinante e o clamor ecoa no vazio: Vós que partistes em clima de dor, assomai, vinde prestar honras à Mãe de Deus!
Fez-se silêncio – o silêncio é sempre importante nestas ocasiões e sem ele não acontece milagre! - e ouve-se um zumbido distinto, mais ou menos sibilante, mais ou menos forte.
E, de repente, oh, céus!
Milhentas de moscas, mosquitos, formigas voadoras, cigarras, gafanhotos irrompem do mais escuro da mata e postam-se uns instantes, mudos e quedos no chão e aos pés de Nossa Senhora. Cumprida a vassalagem, consumada a adoração, tão depressa como apareceram, jovem e insectos, perderam-se nas lonjuras da mata.
Diz quem sabe que eram as almas errantes de quem morreu antes do seu tempo, em atroz sofrimento naquele terrível dia em que as tropas invasoras mataram indiscriminadamente depois de violar e infligir todo o género de sofrimento àquela gente de Klalerek Mutin.