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terça-feira, dezembro 19, 2006 

Os Costumes de Ramelau Hun - última parte

Faz-se de conta que tudo vai bem na terra do Sol nascente, aprendem-se umas quantas coisas e dá-se por terminada a versão do feto san umane na zona do Ramelau Hun…

O Mate Ulun

O tempo encarrega-se de reforçar e aprofundar os laços entre os feto san umane.
E na morte da mulher - elemento valioso, gerador de riqueza económica e humana pelo barlake e pelo nascimento dos novos elementos do clã - traz, como consequência a necessidade de reposição do seu valor humano e económico à sua família de origem. E de novo se sucedem os rituais.
Manuel, o feto san, envia um mensageiro a casa dos umane, os sogros, avisando do falecimento de Maria. Não o fará porém de mãos vazias, devendo fazer-se acompanhar de algo, normalmente dinheiro, como sendo o telegrama a dar do conhecimento da ocorrência.
O pai de Maria recebe a mensagem, reúne-se com a família, prepara tudo quanto é possível fazê-lo circunstancialmente e leva e leva à família reunida.
E logo se iniciam as negociações para nova entrega de bens, cuja reposição é fundamental. Porque o valor de Maria era inestimável e esse valor emprestado a Manuel em vida terá de voltar agora, na hora da morte, à uma lisan de onde ela saíra anos antes para o casamento.
Os pais e irmãos de Maria fazem a Manuel exigências sobre o que deverá ser-lhes entregue; Manuel e a respectiva família sabem de antemão que têm de cumprir os deveres a que estão obrigados: os ritos têm de ser cumpridos e eles dispõem de dois búfalos pujantes – um búfalo vivo que será entregue aos pais (umanes) de Maria e outro búfalo morto que será distribuído por todos os outros umanes, mediante o estabelecimento de regras.
Entretanto, chame-se a atenção para a importância simbólica da cabeça do búfalo transportado num cavalo que deve ser dado pelo genro, o Manuel :
De entre os familiares de Maria – os umane - há três componentes geracionais que são destinatários de três partes diferentes da cabeça do búfalo (cabeça, propriamente dita, orelhas e ossos).
O 1º grupo, formado pelos pais e irmãos de Maria, receberá búfalos, belak (um objecto fundamental nestas cerimónias) e dinheiro – são os que têm direito ao “ulun” representado pela cabeça do búfalo;
O 2º grupo, constituído pelos pais e irmãos da mãe da Maria, logo os seus avós e tios, terá direito a bens da mesma qualidade, embora recebam em menor quantidade – são os destinatários dos “tilun”, as orelhas da Maria, simbolizado por fatias de carne do búfalo;
O 3º grupo, constituído pelos pais e irmãos da avó de Maria ( seus bisavós e tios-bisavós), receberá também bens de igual qualidade, ainda que em menos quantidade que o 2º grupo – cabe-lhes os “ruin”, os ossos da Maria traduzido em fatia de carne de búfalo.
A negociação do que deve caber a cada um destes três grupos, cabe inteiramente ao 1º grupo, constituído pelos pais e irmãos de Maria, os “to´os nain”, ou seja, os donos da horta. São eles que determinam tudo, pertence-lhes a faculdade de decidir porque a lés cabe o entendimento de que os outros não devem receber tanto quanto eles próprios.
Os três grupos têm de retribuir o que receberam de acordo com o valor dos bens recebidos.
Maria vai a enterrar e a casa de seus pais possuirá depois mais uma relíquia: antes de se fechar definitivamente o ataúde com os restos mortais de Maria deve-se colocar em cima da urna, o belak que Manuel e sua família haviam deixado anos antes em casa dos pais de Maria aquando da atribuição do barlake. O belak de ouro simboliza o valor da mulher. O belak que passará de geração em geração é já uma preciosidade, faz parte do património familiar e será colocado na uma lulik, a casa sagrada.

Enterrada Maria, acrescente-se, a propósito que, se se pretender reforçar mais profundamente os laços entre Manuel e a família da defunta, poderá haver novo casamento com outra mulher da família de Maria. Mas, se isso não acontecer, os elos familiares não serão desfeitos assegurados que estão pela existência da descendência do casal Manuel/Maria.

O Toli Mate

Uns anos depois – o período varia de um a quarenta anos – realiza-se nova cerimónia. E, desta vez, será a Manuel que caberá organizar , o “toli mate”, a homenagem a ser prestada a Maria, sua mulher defunta e – se for de sua vontade fazê-lo - a todos os mortos da sua família.
Cada elemento umane traz o seu porco e tais, numa repetição do ritual estabelecido.
Efectua-se o “hakoi mate” ou “toli mate”, o enterro geral, no qual o lia nain, o dono da palavra, invoca os mortos. Deverá fazê-lo de forma convicta e concentrada até que a força da sua palavra derrube o búfalo que sucumbirá e cairá morto a seus pés.
Está cumprido mais um ritual e ter-se-ão com isso fortalecido, aprofundado e renovado os laços familiares.

Conclusões

Num país como Timor-Leste, frágil, pequeno e conservador, são as tradições, os hábitos culturais, os usos e os costumes que robustecem a identidade do país e funcionam como instrumentos necessários para o estabelecimento da ordem sócio-político-económico.
Mas isso já se sabia e já se praticava muito antes de Timor-Leste existir como país independente. Porque os usos e os costumes, fundamentais para que qualquer faceta do curso da vida se torne mais fácil, vêm de tempos muito recuados, dos tempos em que os nossos antepassados criaram formas de alicerçar os laços familiares passando para o enraizamento e a defesa de um grupo, de um povo, da nação Timor.
Há aspectos que se devem realçar:
- O reconhecimento da importância da mulher na sociedade timorense. É ela que determina a força de uma família. É dela que nascem os herdeiros. É sempre ela que está no centro das negociações entre clãs diferentes; são os seus ascendentes os destinatários dos bens, numa revelação de respeito que, numa sociedade de natureza marcadamente patriarcal , prevalecente na zona de Ramelau Hun, é devido à mulher.
- Com a constante renovação de atribuição de bens fica assegurado o bem-estar familiar e a sua estabilidade económica; qualquer um dos pontos acima descritos exemplifica como se contribui para a melhoria económica e social e para aumento substancial do património familiar.
- As cerimónias fúnebres podem ainda conduzir ao conhecimento de familiares circunstancialmente mais afastados ou desconhecidos que, por força da distribuição dos bens recebidos, se aproximarão da família com quem inevitavelmente iniciarão o estabelecimento de novos laços.
- A concessão de dote aquando do barlake, a reposição e distribuição de bens por ocasião da vida e da morte são uma prática continuada e exigem a obrigatoriedade do seu cumprimento. Todos obedecem, cientes de que darão hoje e receberão amanhã; pedirão agora mas serão depois recompensados.
- A concepção parental timorense de feto san umane alarga e enriquece o conceito de família. Casa a casa, a família alarga-se ao povoado, à região. Passo a passo, os interesses primeiros de uma só casa são agora, pela prática continuada de renovação de laços através do nascimento, do casamento e da morte, os interesses do povo, todo ele parente próximo ou distante da mesma família.
Como fruto de interesses e hábitos comuns repetidos e observados secularmente de forma organizada e ordenada temos o Costume; com a mesma língua, a mesma cultura, o mesmo passado, a mesma História, a mesma terra, os membros de uma/várias famílias unidos pela construção de um futuro melhor considere-se um só Povo, pertence-se a uma Pátria de uma Nação cuja alma está simbolizada em cada belak de ouro guardado religiosamente na casa sagrada, em cada relíquia de mulher, geradora de novo ser humano, do novo ser timorense do futuro.

Pois é amiga a família é a base de qualquer casa, de qualquer país, seja ele qual for. É pena que os homens se esqueçam disso.
Bjs

Estou curiosa de saber se estes "costumes" são ainda tão universais, ou se esta história representa o caso exemplar ou a "tradição" como contada mas não necessariamente seguida hoje em dia.

Parece-me que o valor simbólico da cabeça, o ulun, em Timor é bastante grande.

Conheço bastante bem a 'literatura antropologica' colonial e não tem o mesmo nível de pormenor quanto ao género e os ritos funerários.

(Comprei no fim de 2006 em Baucau o livro pelo Teachers College, e acho que representa outro passo significativo no sentido de etnografia timorense por timorenses. Deviam traduzir para tetum.)

Obrigada pelos pormenores etnográficos, acho muito interessante

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