A violência do presente e a do passado
Há já algum tempo tive uma conversa muito interessante com um grupo de cachopas timorenses. Tinha havido um primo de algumas delas que tinha saído de Timor para ser emigrante nas Ilhas Britânicas (o que é possível devido à facilidade que os timorenses têm em conseguir que lhes seja reconhecida uma nacionalidade da União Europeia, a portuguesa), e o moço tinha tido problemas com os serviços de imigração na passagem pelo aeroporto de Hong Kong, que, segundo parece, tinham questionado a autenticidade do passaporte dele. Depois de alguma angústia o rapaz tinha acabado por ser enviado de volta para Timor. Entretanto, aqui um grupo de jovens familiares e amigos organizou-se espontaneamente logo que estes souberam do ocorrido para ir tratar da vingança apanhando e espancando chineses-mandarim (os timorenses distinguem entre “china-timor”, que são os timorenses de etnia chinesa que cá estão há gerações e que na maioria falam hacá, e “china-mandarim”, que são imigrantes recém-chegados da China - como os que agora abrem lojas por todo o Portugal - e que falam mandarim ou outras línguas chinesas), e só não concretizaram a sua intenção porque foram convencidos por alguém que eles respeitavam que seria melhor resolver o assunto pelas vias oficiais com a embaixada da China. Ora, a tal conversa foi interessante porque as moças defendiam com toda a garra e emoção o “direito” dos seus parentes e amigos de irem bater nalguns pobres imigrantes que aqui trabalham no duro numa lojeca improvisada ou transportando um “mini-supermercado” ambulante em cima da bicicleta, e que não tinham absolutamente nada a ver com o assunto. O argumento delas era que tendo alguns chineses em Hong Kong criado problemas a um timorense, era de toda a “justiça” que os timorenses chegassem a roupa ao pelo a alguns chineses vindos da China. Esta atitude é uma das chaves para compreender a violência de rua que continua a existir em Díli neste momento.
A violência entre lorosa’e e loromonu é nova ou antiga?
Em todas as sociedades humanas existe a tendência de resolver problemas pela violência, mesmo nos países mais ricos e avançados encontramos ainda flagelos como a violência doméstica. É um fenómeno universal em todos os povos, principalmente quando ainda não existem instituições do Estado em que as comunidades possam confiar para garantir a segurança dos cidadãos e a justiça. Diz o povo português que “em casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão”, o que significa que problemas sociais como a pobreza, o desemprego e a falta de perspectivas para o futuro tendem a aumentar as probabilidades de as frustrações e inseguranças resultarem em porrada. Há por aí uns malais que pensam que isso é exclusivo dos timorenses, mas estão completamente enganados. Vejam os casos recentes da França e da Hungria, lá na Europa dita civilizada, e isto só em relação à violência juvenil (deixando de lado coisas como a guerra civil na ex-Jugoslávia).
Pouco tempo depois de eu ter chegado a Timor, em 2001, houve uma aldeia em que muitas casas recém-reconstruídas foram queimadas, se bem me recordo lá para a zona de Quelicai e Laissorolai, devido a um desentendimento qualquer entre vizinhos. Em Julho de 2004 houve em Díli violentos confrontos entre membros da PSHT e gente do grupo “Sete-Sete”. Em meados de Agosto do mesmo ano conflitos entre elementos do KORKA e do “Cinco-Cinco” em Soru-Kraik (Ainaro) tiveram como resultado 53 casas incendiadas. E tem havido muitos outros episódios semelhantes ao longo dos últimos anos. O que é novo em Timor nos dias que correm é a politização da violência e delinquência juvenil, e os novos contornos xenófobos de que se reveste – uma coisa com que as populações da Irlanda do Norte, p.ex., conviveram durante muitos anos. Isto significa que, ao contrário do que acontecia antigamente, o povo comum começou agora a distinguir os que se envolvem na violência de rua entre “os nossos” e “os deles", e deixou de falar deles como “esses vadios e bandidos”. E em vez de os delinquentes serem responsabilizados pelos seus crimes, são vistos pelas comunidades como participantes numa espécie de cruzada ou como heróis que defendem o bairro da invasão dos “deles”.
Antes do início da crise os antagonistas nas cenas de pancadaria eram grupos de pertença mais pequenos: uma família contra outra, os jovens de um bairro contra os de outro bairro, os praticantes de um estilo de artes marciais contra os de outro estilo, um grupo de polícias contra um grupo de militares, a claque dos solteiros contra a claque dos casados num jogo de futebol amigável. A crise recente começou quando alguns elementos das FDTL nascidos nas zonas ocidentais do país se queixaram de discriminação através de uma petição; há uma comissão que tem andado a investigar se havia razão para essa acusação ou não, mas o que foi significativo para o evoluir da situação durante os meses seguintes é que os irmãos, primos, amigos, vizinhos e conterrâneos dos peticionários consideraram que os seus eram vítimas de discriminação, e por outro lado, os irmãos, primos, amigos, vizinhos e conterrâneos dos elementos das forças armadas nascidos nas zonas orientais do país consideraram que os peticionários estavam a trair as FDTL. E a divisão agudizou-se também na polícia. Isto modificou radicalmente a percepção do povo em relação a dois grupos de pertença que até aí eram pouco relevantes no quotidiano das pessoas: os de loromonu (oeste) e os de lorosa’e (leste). Em Portugal muitas pessoas do Norte consideram a sua origem geográfica como um traço importante da sua identidade, como fazem também as do Alentejo, p.ex., mas nem um nortenho nem um alentejano pensa em bater num algarvio só por causa do lugar onde ele nasceu. Isso era o que acontecia aqui em Timor até há pouco tempo, os de loromonu e os de lorosa’e contavam anedotas uns sobre os outros, mandavam umas bocas sobre as características colectivas atribuídas pela imaginação do povo a cada um dos grupos, mas as pessoas não batiam em alguém por ter nascido no leste ou no ocidente. Há uns nove meses atrás era uma ideia completamente inconcebível que um timorense de Baucau tivesse medo de ir passear para Maliana ou Ermera, ou que alguém de Liquiçá receasse ir dar uma volta até Lospalos ou Laga, hoje este medo é a regra quase sem excepção.
Há por aí quem queira ver uma raiz histórica para o actual ódio entre naturais de lorosa’e e de loromonu nas divisões fomentadas pelos portugueses no seu esforço para dominar Timor. Isto é uma ficção, ligada a uma tendência de olhar para a História que deixou o nacionalismo salazarento caquético, que falava só sobre os feitos grandiosos dos portugueses, para ingressar num mea culpa pós-colonial que anseia por poder arcar com as culpas de todos os males da humanidade, principalmente os do terceiro mundo. Meu caro leitor, não leve a sério ninguém que lhe apareça a falar sobre os quatrocentos anos de domínio e opressão dos portugueses sobre países como Timor-Leste ou Guiné-Bissau, p.ex... O colonialismo português não foi igual em toda a parte e em muitos territórios dominava muito pouco até ao início do séc. XX. Na Guiné-Bissau durante uma parte significativa dos tais séculos de domínio os portugueses controlavam apenas pequenas zonas ribeirinhas como Cacheu, ou Bissau (de onde raramente podiam sair por terra sem levar porrada dos pepeis), e estava entretanto a acontecer uma colonização muito mais importante, a decorrente da expansão do império fula. Em Timor-Leste antes do séc. XX havia ainda muitas zonas do interior que rejeitavam a soberania portuguesa, mesmo que simbólica, e normalmente nas outras áreas o domínio de Portugal baseava-se num sistema de extorsão e “segurança” – pagas e eu protejo-te e deixo-te gerir a tua loja como quiseres, não pagas e eu venho cá partir a loja e bater-te. Mas voltando à questão de leste e ocidente, não há memória nem nos livros nem na tradição oral dos timorenses de uma guerra que fosse que tivesse aparecido como sendo de lorosa’e contra loromonu (e o relatório da Comissão Especial Independente da ONU fala da total ausência do assunto nos milhares de testemunhos recolhidos pela CAVR – Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação), as guerras antigas eram entre reinos vizinhos, ou entre coligações de reinos próximos, que procuravam aumentar o seu território ou roubar gado, mulheres, cabeças, áreas de cultivo, coqueirais, gente para escravizar...
Os portugueses fomentavam e faziam uso das rivalidades existentes entre reinos, sim, e muito, mas essas rivalidades não se baseavam numa divisão entre o leste e o oeste do então chamado Timor Português. Vejamos o que nos conta Teófilo Duarte, governador de Timor entre 1926 e 1928, em “Ocupação e Colonização Branca de Timor” (1944), p.62-63:
«Celestino [da Silva, governador 1894-1908] valia-se das rivalidades dos diferentes povos para os enfraquecer e dominar. Umas vezes não intervinha nas suas lutas senão por baixo de mão, como se depreende das seguintes notas enviadas aos comandantes militares de Aileu e Alas:
“Ao Sr. Comandante militar de Aileu se comunica para os devidos efeitos e por ordem se S. Exª o Governador que é muito provável que o reino de Alas ataque a jurisdição de Tutuluro [há um suco com esse nome na zona de Same, não sei se será o mesmo...] pertencente a esse comando: em tal caso deverá V. conservar-se inteiramente estranho, porque ao govêrno convém que Tutuluro seja derrotado, e a todos os que lhe falarem em tal assunto responderá que o govêrno nada tem com tal guerra, que são questões entre povos que êles resolverão como entenderem e puderem, mas ao mesmo tempo proïbirá, publicando os bandos do costume, que em tôda a área do seu comando se venda pólvora e mais munições de guerra, e ensinará aos maiorais da sua jurisdição que lhes é inteiramente vedado o interferirem na guerra que se der entre Alas e Tutuluro...” “Ao sr. Comandante militar de Alas se comunica para os devidos efeitos por ordem de S. Exª o Governador e em resposta à sua nota nº 57 de 26 do corrente, que pode permitir ao sr. Régulo de Alas que junte os seus arraiais e castigue a jurisdição de Tutuluro pelos latrocínios e crimes a que se refere; mas faça-lhe saber que a guerra não pode prolongar-se além de 20 de Agôsto próximo, pois que os arraiais do seu reino deverão estar já reünidos e à disposição do govêrno depois de tal dia; far-lhe-á também saber que a guerra não pode ser feita como é costume fazê-las em Timor [poderá talvez estar a referir-se ao tradicional corte de cabeças dos inimigos...], e que é indispensável que êle coloque a gente de Tutuluro na impossibilidade de inquietar o reino de Alas, durante alguns anos. Êsse levantamento de arraiais por parte do reino de Alas pode favorecer e encobrir os projectos do govêrno relativamente a Manufai, Raimea e Suai. Nesta data se previne o comandante de Aileu para que fique impassível perante a guerra que Alas vai fazer a Tutuluro e que evite que mais gente da sua jurisdição se junte a tal reino, mas V. não tomará parte alguma ostensiva em tal guerra para que se não diga que é feita pelo Govêrno, e limitar-se-á particularmente a aconselhar o D. Januário e o D. Félix sôbre a maneira de a fazerem, deixando-lhes ver que o Govêrno não terá dúvida em lhes emprestar a pólvora que necessitem, responsabilizando-se êles pelo pagamento dela, para os ajudar; nesta data se dá ordem ao Comandante de Alas para proïbir desde já a venda de pólvora na área de tôda a sua circunscrição, a que também pertence Tutuluro.” »
A revolta liderada por D. Boaventura de Manufahi, a mais importante para o imaginário colectivo dos timorenses, “necessitou, para ser esmagada, de uma força de 28 europeus e de mais de 12.000 outros soldados”, como nos diz Geoffrey C. Gunn, em “Timor Loro Sae – 500 anos”, p. 195. E de onde vinham os homens que esmagaram a revolta de Manufahi? Das regiões pertencentes aos actuais 3 distritos considerados de lorosa’e? Não, a maior parte vinha de outros reinos das regiões pertencentes aos actuais 10 distritos considerados de loromonu, de lugares como o Suro (Ainaro), Lacló, Manatuto... Diz ainda Geoffrey C. Gunn, p. 203: “E embora haja o sentimento de que a rebelião de 1911-1912 constituiu o apogeu da oposição aos Portugueses, ela foi, ao mesmo tempo, geograficamente muito restrita e esteve mesmo rodeada por reinos neutrais ou colaboracionistas”.
Sobre a II Guerra Mundial conta-nos também Geoffrey Gunn, p. 249: “Segundo um soldado australiano, Bernard Callinan, este conflicto teve outra dimensão, a de uma verdadeira guerra dentro de outra guerra. Esta é uma alusão à revolta dos Maubesse [sic] contra os Portugueses, em Agosto de 1942, e ao papel desempenhado pelos Portugueses, mobilizando os povos cristãos de Ainaro e Same, «que não eram nada amistosos para com os Maubesse não-cristãos», para esmagar impiedosamente esta manifestação de independência. Pélissier observa que o levantamento dos Maubesse [sic] não foi propriamente motivado pelo seu amor aos Japoneses, mas sim pelas memórias, velhas de décadas, das guerras de Manufaí [sic] e, especialmente, pela vontade, por parte deste povo dissidente de exercer uma vingança contra o reino rival de Suro (Aileu [Ainaro?!]) e os seus lealistas, nomeadamente D. Aleixo Corte Real, liurai de Suro, sobrinho de Nai-Cau, o liurai «traidor» da revolta de 1912, que alinhou ao lado dos Portugueses. D. Aleixo (que receberia a homenagem póstuma do Estado português), os seus filhos e os seus seguidores, empenharam-se numa resistência heróica, mas de antemão condenada, contra as forças japonesas, nas montanhas de Timor, em Maio de 1943.”
A violência entre lorosa’e e loromonu é nova ou antiga?
Em todas as sociedades humanas existe a tendência de resolver problemas pela violência, mesmo nos países mais ricos e avançados encontramos ainda flagelos como a violência doméstica. É um fenómeno universal em todos os povos, principalmente quando ainda não existem instituições do Estado em que as comunidades possam confiar para garantir a segurança dos cidadãos e a justiça. Diz o povo português que “em casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão”, o que significa que problemas sociais como a pobreza, o desemprego e a falta de perspectivas para o futuro tendem a aumentar as probabilidades de as frustrações e inseguranças resultarem em porrada. Há por aí uns malais que pensam que isso é exclusivo dos timorenses, mas estão completamente enganados. Vejam os casos recentes da França e da Hungria, lá na Europa dita civilizada, e isto só em relação à violência juvenil (deixando de lado coisas como a guerra civil na ex-Jugoslávia).
Pouco tempo depois de eu ter chegado a Timor, em 2001, houve uma aldeia em que muitas casas recém-reconstruídas foram queimadas, se bem me recordo lá para a zona de Quelicai e Laissorolai, devido a um desentendimento qualquer entre vizinhos. Em Julho de 2004 houve em Díli violentos confrontos entre membros da PSHT e gente do grupo “Sete-Sete”. Em meados de Agosto do mesmo ano conflitos entre elementos do KORKA e do “Cinco-Cinco” em Soru-Kraik (Ainaro) tiveram como resultado 53 casas incendiadas. E tem havido muitos outros episódios semelhantes ao longo dos últimos anos. O que é novo em Timor nos dias que correm é a politização da violência e delinquência juvenil, e os novos contornos xenófobos de que se reveste – uma coisa com que as populações da Irlanda do Norte, p.ex., conviveram durante muitos anos. Isto significa que, ao contrário do que acontecia antigamente, o povo comum começou agora a distinguir os que se envolvem na violência de rua entre “os nossos” e “os deles", e deixou de falar deles como “esses vadios e bandidos”. E em vez de os delinquentes serem responsabilizados pelos seus crimes, são vistos pelas comunidades como participantes numa espécie de cruzada ou como heróis que defendem o bairro da invasão dos “deles”.
Antes do início da crise os antagonistas nas cenas de pancadaria eram grupos de pertença mais pequenos: uma família contra outra, os jovens de um bairro contra os de outro bairro, os praticantes de um estilo de artes marciais contra os de outro estilo, um grupo de polícias contra um grupo de militares, a claque dos solteiros contra a claque dos casados num jogo de futebol amigável. A crise recente começou quando alguns elementos das FDTL nascidos nas zonas ocidentais do país se queixaram de discriminação através de uma petição; há uma comissão que tem andado a investigar se havia razão para essa acusação ou não, mas o que foi significativo para o evoluir da situação durante os meses seguintes é que os irmãos, primos, amigos, vizinhos e conterrâneos dos peticionários consideraram que os seus eram vítimas de discriminação, e por outro lado, os irmãos, primos, amigos, vizinhos e conterrâneos dos elementos das forças armadas nascidos nas zonas orientais do país consideraram que os peticionários estavam a trair as FDTL. E a divisão agudizou-se também na polícia. Isto modificou radicalmente a percepção do povo em relação a dois grupos de pertença que até aí eram pouco relevantes no quotidiano das pessoas: os de loromonu (oeste) e os de lorosa’e (leste). Em Portugal muitas pessoas do Norte consideram a sua origem geográfica como um traço importante da sua identidade, como fazem também as do Alentejo, p.ex., mas nem um nortenho nem um alentejano pensa em bater num algarvio só por causa do lugar onde ele nasceu. Isso era o que acontecia aqui em Timor até há pouco tempo, os de loromonu e os de lorosa’e contavam anedotas uns sobre os outros, mandavam umas bocas sobre as características colectivas atribuídas pela imaginação do povo a cada um dos grupos, mas as pessoas não batiam em alguém por ter nascido no leste ou no ocidente. Há uns nove meses atrás era uma ideia completamente inconcebível que um timorense de Baucau tivesse medo de ir passear para Maliana ou Ermera, ou que alguém de Liquiçá receasse ir dar uma volta até Lospalos ou Laga, hoje este medo é a regra quase sem excepção.
Há por aí quem queira ver uma raiz histórica para o actual ódio entre naturais de lorosa’e e de loromonu nas divisões fomentadas pelos portugueses no seu esforço para dominar Timor. Isto é uma ficção, ligada a uma tendência de olhar para a História que deixou o nacionalismo salazarento caquético, que falava só sobre os feitos grandiosos dos portugueses, para ingressar num mea culpa pós-colonial que anseia por poder arcar com as culpas de todos os males da humanidade, principalmente os do terceiro mundo. Meu caro leitor, não leve a sério ninguém que lhe apareça a falar sobre os quatrocentos anos de domínio e opressão dos portugueses sobre países como Timor-Leste ou Guiné-Bissau, p.ex... O colonialismo português não foi igual em toda a parte e em muitos territórios dominava muito pouco até ao início do séc. XX. Na Guiné-Bissau durante uma parte significativa dos tais séculos de domínio os portugueses controlavam apenas pequenas zonas ribeirinhas como Cacheu, ou Bissau (de onde raramente podiam sair por terra sem levar porrada dos pepeis), e estava entretanto a acontecer uma colonização muito mais importante, a decorrente da expansão do império fula. Em Timor-Leste antes do séc. XX havia ainda muitas zonas do interior que rejeitavam a soberania portuguesa, mesmo que simbólica, e normalmente nas outras áreas o domínio de Portugal baseava-se num sistema de extorsão e “segurança” – pagas e eu protejo-te e deixo-te gerir a tua loja como quiseres, não pagas e eu venho cá partir a loja e bater-te. Mas voltando à questão de leste e ocidente, não há memória nem nos livros nem na tradição oral dos timorenses de uma guerra que fosse que tivesse aparecido como sendo de lorosa’e contra loromonu (e o relatório da Comissão Especial Independente da ONU fala da total ausência do assunto nos milhares de testemunhos recolhidos pela CAVR – Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação), as guerras antigas eram entre reinos vizinhos, ou entre coligações de reinos próximos, que procuravam aumentar o seu território ou roubar gado, mulheres, cabeças, áreas de cultivo, coqueirais, gente para escravizar...
Os portugueses fomentavam e faziam uso das rivalidades existentes entre reinos, sim, e muito, mas essas rivalidades não se baseavam numa divisão entre o leste e o oeste do então chamado Timor Português. Vejamos o que nos conta Teófilo Duarte, governador de Timor entre 1926 e 1928, em “Ocupação e Colonização Branca de Timor” (1944), p.62-63:
«Celestino [da Silva, governador 1894-1908] valia-se das rivalidades dos diferentes povos para os enfraquecer e dominar. Umas vezes não intervinha nas suas lutas senão por baixo de mão, como se depreende das seguintes notas enviadas aos comandantes militares de Aileu e Alas:
“Ao Sr. Comandante militar de Aileu se comunica para os devidos efeitos e por ordem se S. Exª o Governador que é muito provável que o reino de Alas ataque a jurisdição de Tutuluro [há um suco com esse nome na zona de Same, não sei se será o mesmo...] pertencente a esse comando: em tal caso deverá V. conservar-se inteiramente estranho, porque ao govêrno convém que Tutuluro seja derrotado, e a todos os que lhe falarem em tal assunto responderá que o govêrno nada tem com tal guerra, que são questões entre povos que êles resolverão como entenderem e puderem, mas ao mesmo tempo proïbirá, publicando os bandos do costume, que em tôda a área do seu comando se venda pólvora e mais munições de guerra, e ensinará aos maiorais da sua jurisdição que lhes é inteiramente vedado o interferirem na guerra que se der entre Alas e Tutuluro...” “Ao sr. Comandante militar de Alas se comunica para os devidos efeitos por ordem de S. Exª o Governador e em resposta à sua nota nº 57 de 26 do corrente, que pode permitir ao sr. Régulo de Alas que junte os seus arraiais e castigue a jurisdição de Tutuluro pelos latrocínios e crimes a que se refere; mas faça-lhe saber que a guerra não pode prolongar-se além de 20 de Agôsto próximo, pois que os arraiais do seu reino deverão estar já reünidos e à disposição do govêrno depois de tal dia; far-lhe-á também saber que a guerra não pode ser feita como é costume fazê-las em Timor [poderá talvez estar a referir-se ao tradicional corte de cabeças dos inimigos...], e que é indispensável que êle coloque a gente de Tutuluro na impossibilidade de inquietar o reino de Alas, durante alguns anos. Êsse levantamento de arraiais por parte do reino de Alas pode favorecer e encobrir os projectos do govêrno relativamente a Manufai, Raimea e Suai. Nesta data se previne o comandante de Aileu para que fique impassível perante a guerra que Alas vai fazer a Tutuluro e que evite que mais gente da sua jurisdição se junte a tal reino, mas V. não tomará parte alguma ostensiva em tal guerra para que se não diga que é feita pelo Govêrno, e limitar-se-á particularmente a aconselhar o D. Januário e o D. Félix sôbre a maneira de a fazerem, deixando-lhes ver que o Govêrno não terá dúvida em lhes emprestar a pólvora que necessitem, responsabilizando-se êles pelo pagamento dela, para os ajudar; nesta data se dá ordem ao Comandante de Alas para proïbir desde já a venda de pólvora na área de tôda a sua circunscrição, a que também pertence Tutuluro.” »
A revolta liderada por D. Boaventura de Manufahi, a mais importante para o imaginário colectivo dos timorenses, “necessitou, para ser esmagada, de uma força de 28 europeus e de mais de 12.000 outros soldados”, como nos diz Geoffrey C. Gunn, em “Timor Loro Sae – 500 anos”, p. 195. E de onde vinham os homens que esmagaram a revolta de Manufahi? Das regiões pertencentes aos actuais 3 distritos considerados de lorosa’e? Não, a maior parte vinha de outros reinos das regiões pertencentes aos actuais 10 distritos considerados de loromonu, de lugares como o Suro (Ainaro), Lacló, Manatuto... Diz ainda Geoffrey C. Gunn, p. 203: “E embora haja o sentimento de que a rebelião de 1911-1912 constituiu o apogeu da oposição aos Portugueses, ela foi, ao mesmo tempo, geograficamente muito restrita e esteve mesmo rodeada por reinos neutrais ou colaboracionistas”.
Sobre a II Guerra Mundial conta-nos também Geoffrey Gunn, p. 249: “Segundo um soldado australiano, Bernard Callinan, este conflicto teve outra dimensão, a de uma verdadeira guerra dentro de outra guerra. Esta é uma alusão à revolta dos Maubesse [sic] contra os Portugueses, em Agosto de 1942, e ao papel desempenhado pelos Portugueses, mobilizando os povos cristãos de Ainaro e Same, «que não eram nada amistosos para com os Maubesse não-cristãos», para esmagar impiedosamente esta manifestação de independência. Pélissier observa que o levantamento dos Maubesse [sic] não foi propriamente motivado pelo seu amor aos Japoneses, mas sim pelas memórias, velhas de décadas, das guerras de Manufaí [sic] e, especialmente, pela vontade, por parte deste povo dissidente de exercer uma vingança contra o reino rival de Suro (Aileu [Ainaro?!]) e os seus lealistas, nomeadamente D. Aleixo Corte Real, liurai de Suro, sobrinho de Nai-Cau, o liurai «traidor» da revolta de 1912, que alinhou ao lado dos Portugueses. D. Aleixo (que receberia a homenagem póstuma do Estado português), os seus filhos e os seus seguidores, empenharam-se numa resistência heróica, mas de antemão condenada, contra as forças japonesas, nas montanhas de Timor, em Maio de 1943.”
Se fossemos procurar na literatura encontraríamos muitas guerras entre povos vizinhos por todo o Timor, mas também há registos de pactos, alianças e juramentos de sangue, por vezes celebrados entre a aristocracia de reinos bem distantes (ou mesmo de outras ilhas próximas). Armando Pinto Corrêa, no livro “Gentio de Timor” (1935), p. 41, conta por exemplo sobre um pacto sagrado de amizade entre a gente de Uani-Uma (Baucau) e a de Maubara, pertencente à então circunscrição de Liquiçá. Esta aliança, feita há muitas gerações atrás, em Lifau, entre os chefes destes dois lugares, proibia que houvesse conflictos entre os seus habitantes. É pena que, a julgar pela situação actual, pareça ter caducado...
Permita que esclareça que os chineses em Hong Kong não podem ser classificados de "chinas-mandarim" porque em Hong Kong a origem de 99,5% da população é de Cantão e em Hong Kong fala-se o cantonense e não o mandarim. A existir revanchismo em Timor, o que estaria sempre mal, devia ser a chineses de Cantão que falassem cantonense e nunca aos oriundos de Pequim e de outras províncias onde se fala a língua oficial mandarim.
Por outro lado, dizer que muitos dos acontecimentos sangrentos citados na postagem, que tiveram lugar recentemente, se devem a um facto que pouca gente tomou em conta e que ninguém refere. A dada altura das reivindicações levadas a cabo pelos peticionários esteve em Timor-Leste uma criatura sinistra, desde 1975, chamada Abílio Araújo. Este fulano sobejamente conheciodo dos timorenses por todo o mal que fez à paz no nosso país - chegando a ser expulso da Fretilin quando se detectou que ele tinha sido o obreiro da iniciativa para uma guerra civil para que a Indonésia entrasse em Timor -, visitou Díli e outras localidades onde andou a distribuir dinheiro a certos fulanos para defenderem e propagandearem a sua teoria de que os portugueses foram os causadores da divisão loromonu/lorosae, de que os portugueses é que instigaram o ódio em populações contra populações naquela de dividir para reinar, etc., etc. Tudo isto ficou patente numa enorme entrevista que deu a um jornal de Díli e que na altura criou grande celeuma e que obrigou Abílio Araújo a apanhar o avião rapidamente antes que alguém o linchasse. Essa entrevista e o comportamento desse crápula veio desenvolver muito a posterior a sede de vingança de certos grupos que passaram a ser financiados pelos homens de Araújo, que como sabem trabalha para os serviços secretos indonésios, homens esses que igualmente estão ligados a chefes de milícias residentes em Atambua, Kupang e Bali.
Posted by joãoeduardoseverino 4:11 da tarde
Permita que esclareça que os chineses em Hong Kong não podem ser classificados de "chinas-mandarim" porque em Hong Kong a origem de 99,5% da população é de Cantão e em Hong Kong fala-se o cantonense e não o mandarim. A existir revanchismo em Timor, o que estaria sempre mal, devia ser a chineses de Cantão que falassem cantonense e nunca aos oriundos de Pequim e de outras províncias onde se fala a língua oficial mandarim.
Por outro lado, dizer que muitos dos acontecimentos sangrentos citados na postagem, que tiveram lugar recentemente, se devem a um facto que pouca gente tomou em conta e que ninguém refere. A dada altura das reivindicações levadas a cabo pelos peticionários esteve em Timor-Leste uma criatura sinistra, desde 1975, chamada Abílio Araújo. Este fulano sobejamente conheciodo dos timorenses por todo o mal que fez à paz no nosso país - chegando a ser expulso da Fretilin quando se detectou que ele tinha sido o obreiro da iniciativa para uma guerra civil para que a Indonésia entrasse em Timor -, visitou Díli e outras localidades onde andou a distribuir dinheiro a certos fulanos para defenderem e propagandearem a sua teoria de que os portugueses foram os causadores da divisão loromonu/lorosae, de que os portugueses é que instigaram o ódio em populações contra populações naquela de dividir para reinar, etc., etc. Tudo isto ficou patente numa enorme entrevista que deu a um jornal de Díli e que na altura criou grande celeuma e que obrigou Abílio Araújo a apanhar o avião rapidamente antes que alguém o linchasse. Essa entrevista e o comportamento desse crápula veio desenvolver muito a posterior a sede de vingança de certos grupos que passaram a ser financiados pelos homens de Araújo, que como sabem trabalha para os serviços secretos indonésios, homens esses que igualmente estão ligados a chefes de milícias residentes em Atambua, Kupang e Bali.
Posted by joãoeduardoseverino 4:14 da tarde
Sei naturalmente que em Hong Kong, e Macau, a maior parte da populacao fala cantonense, mas a maior parte dos timorenses nao sabe disso, e a distincao entre "China-Timor" e "China-Mandarim" eh aqui feita inclusivamente pelos chineses timorenses.
As batatas tambem sao provenientes da America, mas os timorenses nao sabem disso e chamam-lhes "fehuk-(eu)ropa" porque foram trazidas pelos portugueses.
Os timorenses de etnia chinesa sao na grande maioria de lingua hakka, apesar de haver alguns descententes de chineses de Macau (deportados pelos portugueses na maior parte dos casos). As duas comunidades - de sino-timorenses e imigrantes recentes - nao se misturam e ja me aconteceu assistir a uma situacao de impossibilidade de comunicacao entre membros de cada uma delas no templo chines de Dili, enquanto estava a participar ali numa cerimonia. Nem sequer ha a possibilidade de usarem a escrita para se entenderem, recurso usado habitalmente por falantes de diferentes linguas chinesas, porque a maior parte dos timorenses chineses sao analfabetos em chines. Ha tambem actualmente uma tendencia de "dessinificacao" na comunidade "China-Timor", com alguns pontos comuns com a situacao de peranakans e tokoh na Indonesia de ha muitas decadas.
Esses espirito de vinganca contra "os deles" porque um "deles" prejudicou "um dos nossos" eh infelizmente uma atitude extremamente comum em Timor, e nao eh precedida de analises racionais sobre historia ou socio-linguistica - precisamente por isso eh que os jovens de lorosa'e e de loromonu continuam a andar a porrada.
Posted by João Paulo Esperança 3:47 da manhã
Sei naturalmente que em Hong Kong, e Macau, a maior parte da populacao fala cantonense, mas a maior parte dos timorenses nao sabe disso, e a distincao entre "China-Timor" e "China-Mandarim" eh aqui feita inclusivamente pelos chineses timorenses.
As batatas tambem sao provenientes da America, mas os timorenses nao sabem disso e chamam-lhes "fehuk-(eu)ropa" porque foram trazidas pelos portugueses.
Os timorenses de etnia chinesa sao na grande maioria de lingua hakka, apesar de haver alguns descententes de chineses de Macau (deportados pelos portugueses na maior parte dos casos). As duas comunidades - de sino-timorenses e imigrantes recentes - nao se misturam e ja me aconteceu assistir a uma situacao de impossibilidade de comunicacao entre membros de cada uma delas no templo chines de Dili, enquanto estava a participar ali numa cerimonia. Nem sequer ha a possibilidade de usarem a escrita para se entenderem, recurso usado habitalmente por falantes de diferentes linguas chinesas, porque a maior parte dos timorenses chineses sao analfabetos em chines. Ha tambem actualmente uma tendencia de "dessinificacao" na comunidade "China-Timor", com alguns pontos comuns com a situacao de peranakans e totok na Indonesia de ha muitas decadas.
Esses espirito de vinganca contra "os deles" porque um "deles" prejudicou "um dos nossos" eh infelizmente uma atitude extremamente comum em Timor, e nao eh precedida de analises racionais sobre historia ou socio-linguistica - precisamente por isso eh que os jovens de lorosa'e e de loromonu continuam a andar a porrada.
Posted by João Paulo Esperança 6:40 da manhã