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segunda-feira, janeiro 29, 2007 

Vira o disco e toca o mesmo





Os jovens continuam à porrada e a matar-se uns aos outros. A Fátima, uma amiga minha malai que por cá anda há muito tempo, e que tal como eu ama esta terra, dizia-me há uns tempos que já se estava a habituar à violência e que isso a fazia triste. Eu contrapus com exemplos de outros países onde a violência faz parte da rotina quotidiana e nos quais as pessoas continuam a levar a sua vida para a frente na mesma, mas a verdade é que não estava muito convencido com os meus próprios argumentos. As pessoas aqui tinham voltado a ter esperança, muitas tinham reconstruído a casa queimada pelos indonésios em 1999, tinham juntado dinheiro e adquirido alguns móveis, uma televisão... No período de alguns meses que se seguiu à manifestação dos peticionários de Abril de 2006 muita gente voltou a perder tudo. E, ainda que a chamada “crise política-militar” tenha acabado há já algum tempo (já não há tropas e polícias aos tiros uns aos outros), a população continua a viver no medo. Agora os confrontos entre jovens de ocidente e de oriente estão a diminuir, mas irrompeu uma “guerra fria” entre alguns grupos de artes marciais e similares.



No meu bairro, no qual a maior parte das famílias é de ocidente, e onde também houve pancadaria nos últimos dias, uma vizinha explicava-nos assim os acontecimentos: “Primeiro os jovens andaram acolá a partir e a roubar aquelas casas que eram de pessoas do leste. Depois juntavam-se todos para ir arranjar confusão com os jovens daquele bairro lá, agora decidiram começar a andar à porrada uns com os outros do próprio bairro”. Algumas pessoas de leste que tinham fugido já voltaram entretanto para o bairro, e não foram molestadas. O que parece é que estes jovens gostam de andar à porrada, independentemente de quem seja o inimigo disponível em cada circunstância. Quando não andam a arranjar sarilhos, passam os dias sentados em grupo a ver quem passa ou a beber tua-sabu (aguardente local que sabe a diluente) ou, quando o dinheiro chega, “General Roland”, uma marca de uísque indonésio barato (US$2,25/garrafa) e chunga. Andar à porrada permite-lhes sentir que há uma dimensão heróica na sua vida, que estão a defender os do seu grupo contra os “outros”, “os maus”.



Na blogosfera os adeptos de teorias da conspiração consideram que há uns cérebros criminosos na sombra, uma espécie de Doutores Moriarty, que organizam os jovens para se matarem uns aos outros. Eu acho que é racista considerar que os jovens timorenses não podem ser bestas quadradas por iniciativa própria. Na França, jovens delinquentes incendiaram milhares de carros nos últimos anos, e chegaram a pôr fogo a autocarros com gente lá dentro. Nos Estados Unidos, as gangues de jovens infestam muitas das principais cidades do país, e usam armas automáticas nos seus confrontos de rua (em vez de catanas, flechas, pedras e canos de ferro, como os grupos daqui). Não vejo esses bloguistas a inventarem conspiradores que tenham por objectivo organizar a bestialidade dos moços criminosos franceses, ou dos americanos. Para serem coerentes, talvez devessem defender que quem dirige as actividades criminosas das gangues nos E.U.A. são os canadianos, ou os Democratas, ou os Republicanos, ou o próprio Bush, ou quem sabe alguma igreja baptista daquelas que cantam muito... O que chateia esses comentadores tão intelectuais e bem informados é que possa haver timorenses a não caber nos perfis em que esses “especialistas” gostam de os pôr: os “nativos tão amorosos”, os “guerrilheiros tão dignos e imaculados”, as “vítimas tão sofredoras”... Timor-Leste é um país muito mais colorido do que pensam esses peritos que vêem tudo a preto e branco, e, como no resto do mundo, há aqui pessoas de todos os géneros, incluindo alguns que deviam estar na prisão.


Muitos “analistas” instantâneos desses da Internet confundem os filmes que estão a ver. Quando dois grupos de jovens andam à porrada isso na maior parte das vezes é um mero caso de polícia e não tem nada a ver com a embrulhada d“As aventuras de Alfredo – Parte 5”. Fiquei surpreendido por ninguém ter arranjado uma teoria para explicar o crime de Maubara (quando três mulheres foram assassinadas acusadas de serem bruxas) pondo a culpa nos australianos, ou na oposição ou no Governo. Por vezes os comentadores bem-intencionados pecam por desculpabilizar os criminosos (arranjam sempre um “culpado” que está por trás de tudo o que acontece de mal), e o resultado é um discurso comum na opinião pública em que ninguém assume a responsabilidade pelos seus actos. Uma pessoa anda num bairro onde a UNPOL esteja a levar a cabo uma operação de captura de criminosos dos que andam à porrada com catanas e arcos e flechas, e ouve muita gente, mesmo adultos, a resmungar por os polícias malais prenderem os seus filhos, que na sua opinião são umas vítimas inocentes, os “boot sira” [os líderes do país] é que são culpados de tudo, dizem eles. E já ouvi pessoas do povo (devem ser os “mauberes” do Prof. Mattoso) a defenderem ‘o direito’ dos seus filhos a queimarem casas de famílias onde haja algum moço que é membro desta ou daquela organização de artes marciais. Às vezes a situação aqui faz lembrar o cenário dos livros de Mario Puzzo na Sicília das vendetas e da “omerta”.



Em relação às artes marciais é justo lembrar que há em Timor muitas que, nestes quase seis anos de residência em Díli, nunca ouvi mencionar como estando ligadas à violência de rua. Falo, por exemplo, do caraté, do taekwondo, e, dentro do pencak silat, do Perisai Diri, do Merpatih Putih, do Pajajaran, e do THS/THM, apesar de um membro desta última organização ter sido assassinado há dias (mas a família enlutada e os colegas da sua organização vieram à televisão dizer que não queriam vinganças). Há por outro lado estilos cujos praticantes aparecem regularmente envolvidos em conflitos desde há muitos anos: PSHT, KORK, Kera Sakti,... Isto também não significa que toda a gente dessas estruturas seja delinquente, conheço pacatos e sensatos chefes de família que militam nessas organizações para aprender autodefesa ou exercitar o corpo e o espírito e que nunca se metem em sarilhos. Há uns tempos houve declarações públicas de líderes de algumas estruturas que anunciavam o estabelecimento de uma espécie de coligação do que eles chamavam “artes marciais rain-na’in” [nativas]. Estas organizações ‘autóctones’ incluiam os “sete-sete”, os KORK (Kmanek Oan Rai Klaran), os Kolimau 2000, e pareciam eleger como adversário comum os SH (Setia Hati), um estilo fundado há quase um século na Indonésia. Não sei no entanto até que ponto é exacto falar dos Kolimau 2000 como sendo um grupo de artes marciais, só se começou a chamar-lhes isso há poucos meses, não faço ideia se realmente treinam algum estilo tradicional de combate ou não. Algumas pessoas na blogosfera tentam explicar os conflitos recentes recorrendo a conspiradores escondidos, uns acham que é tudo promovido pelos australianos, outros põem a culpa nos diversos actores políticos no país (e mencionam que há um partido, a Fretilin, que tem uma organização de artes marciais própria). Eu pessoalmente acho que estão errados, e que os líderes destes grupos não conseguem controlar os seus membros. Recentemente apareceram todos na televisão numa reunião de diálogo com cumprimentos e abraços, após a qual cada um deles interpelou directamente os elementos da sua organização, olhando para a câmara, proibindo mais actos de violência. No diário de grande tiragem “Timor Post” de 19 de Dezembro último, pág. 11, aparece um dos líderes da PSHT numa entrevista extensa na qual defende que «quem viola a lei tem que sofrer as consequências legais [dos seus actos]» e que «o Governo tem que tomar medidas como numa semi-ditadura. Quem violar a lei e a ordem de qualquer forma deve ser capturado e punido ou por exemplo “tiru tohar tiha nia ain atu bele kria kondisaun ou estabilidade ba rain ne’e” [dispare-se para lhe partir as pernas para poder criar condições ou estabilidade nesta terra]». Apesar dos apelos dos dirigentes, muitos jovens exaltados continuam a procurar confrontações letais. Nos jornais “STL” e “Timor Post” de 24 de Janeiro os líderes da PSHT e dos “sete-sete”, respectivamente Jaime Xavier e Estevão, explicam que estão sitiados, que têm medo de sair das suas casas, por causa dos bloqueios nas estradas feitos por elementos de organizações rivais. E cada um deles diz que a sua gente é vítima, que os outros é que são os agressores.


Mudando de assunto, vira o disco e toca o mesmo sobre outro “bicho papão”. Em Timor-Leste ainda há muito quem pense que os comunistas comem criancinhas, e agora anda – mais uma vez! – uma polémica na comunicação social sobre o ‘perigo’ que Timor corre com o envio de centenas de jovens para estudar medicina em Cuba, de onde supostamente virão todos transformados em terríveis revolucionários marxistas-leninistas especialistas em guerra subversiva. Estes debates só não são cómicos porque há pessoas que ficam verdadeiramente angustiadas com estas acusações. Há uma moça da família da minha mulher que está lá a estudar para médica e que nos manda regularmente por correio electrónico fotografias do padre da paróquia e das suas idas à missa, junto com cartas compungentes para entregarmos à sua mãe onde explica que ainda acredita em Deus e vai à missa e que não se transformou numa pérfida comunista. Acho estranho como ninguém se importa com as centenas de jovens timorenses que estão a estudar na Indonésia e que têm cadeiras sobre o Pancasila onde aprendem a ser bons cidadãos indonésios. De resto, no tempo da Orde Baru também havia manipulação ideológica dos estudantes nas escolas e faculdades e a mocidade de Timor soube pensar pela sua própria cabeça e fundar estruturas como a Renetil, em vez de aceitar simplesmente tudo aquilo que lhe diziam. Aliás, na Indonésia agora também já voltou a haver comunistas, ainda que sejam mais ou menos discretos. Em Portugal também os há, e lá talvez o comunismo seja até mais apelativo porque é uma utopia bonita (fim da exploração do homem pelo homem) que não é confrontada com a realidade dura e crua como em Cuba (além de que os jovens da JCP ou do Bloco de Esquerda são normalmente gente mais interessante do que os betinhos de pulôver pendurado nas costas da JSD ou das Gerações Populares). Não houve clamor público com a ida de trezentos bolseiros, ou coisa parecida, para Portugal há uns anos. E há uma diferença enorme, em termos de desenvolvimento de Timor-Leste, entre os bolseiros que foram para Portugal e os que vão para Cuba. Os primeiros conseguiram a nacionalidade portuguesa por filiação e quase todos abandonaram os cursos e emigraram para trabalhar como mão-de-obra não qualificada na Irlanda e Inglaterra, os que estão em Cuba ou estudam e voltam para cá médicos, ou não estudam e voltam para cá na mesma sem curso, mas de Cuba não podem emigrar para lado nenhum. Se isso fosse fácil, muitos cubanos iriam precedê-los, já que os bolseiros não vão conviver apenas com gente que acha que Fidel lhes deu o paraíso mas também com cidadãos descontentes ou fartos do regime. Conheço timorenses que moravam em Portugal e foram a Cuba a um encontro internacional de juventude onde naturalmente o Governo apostava fortemente na propaganda, mas durante o breve período que lá passaram ouviram pessoas comuns a queixarem-se do comunismo, imagine-se o que ouvirão os estudantes timorenses durante sete anos. E depois, pensemos lá... Com a violência e a pobreza que grassa em Timor os pais ficam aliviados quando conseguem mandar os filhos para Cuba! De vez em quando aparecem aqui algumas bolsas de estudo para os Estados Unidos da América, um país onde a lei permite aos civis, cidadãos comuns, comprarem armas automáticas (como M16, p.ex.) em lojas. Que tal denunciar nos jornais o perigo que Timor corre enviando bolseiros para lá? Imagine-se que eles vêm de lá a querer espalhar armas nas mãos de civis?!?


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Não querendo tomar partido em teorias comunistas, deixo isso para quem professa e acredita em ideologias, acho digno que se atribua a Timor, e aos timorenses, os problemas de segurança, sem andar a culpar a Indonésia, a ONU ou outras entidades. A violência gratuita mostra que muitos grupos não sabem o que é desenvolvimento humano. Mostram também os calcanhares de aquíles de Timor. Aceitar que são responsáveis por esses problemas é um primeiro passo para tentar enfrentar a questão.

Para o senhor ai de cima, o que nao gosta de mim...
Meu caro senhor, eh livre de gostar de quem quiser. Sou anti-comunista e tambem sou anti-fascista, nao acredito em ditaduras, nao acredito em totalitarismos (mesmo que apregoem que querem salvar o povo). O que me aborrece em Timor nao eh que que as pessoas reneguem o comunismo, mas sim que o facam por considerarem que eh uma especie de pratica satanica, em vez de o fazerem por ser um sistema politico e de organizacao socio-economica que falhou de todas as vezes que foi posto em pratica ai pelos varios cantos de globo. Nao me acho um anticomunista primario, no sentido em que reconheco que as teorias comunistas tiveram uma importancia grande no desenvolvimento da percepcao de que o povo eh um sujeito da Historia, e ajudaram a que as classes trabalhadoras ao longo do sec XX tivessem adquirido consciencia dos seus direitos e tivessem forcado muitas mudancas sociais, politicas, economicas e culturais. E sei que os comunistas nao comem criancinhas, os que nao estao no poder (os que nao se tornaram num aparelho de um regime) sao frequentemente gente generosa, cheia de sonhos de fazer do mundo um lugar melhor.
Muito timorenses ficam muito surpreendidos quando lhe digo que em Portugal ha um partido comunista no parlamento, e que eles fazem falta la, que o seu desaparecimento deixaria um buraco, um vazio, no espectro politico portugues. Aqui acham que os comunistas sao uma especie de lobisomens ateus...

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