O Parlamento Nacional está muito preocupado com o futuro.
Não, não fui suficientemente clara e vou refazer a frase: O Parlamento Nacional está muito preocupado com o futuro deles, dos deputados e de outros titulares de cargos políticos.
Nas suas mentes devem bailar alternadamente os ditos sobre que “o futuro a Deus pertence” mas ““homem prevenido vale por dois”.
E porque não há nada como cada qual precaver-se, o Parlamento Nacional - que resultou da transformação instântanea de Assembleia Constituinte em Parlamento Nacional -, consciente de que ainda não tem mão no porvir, tão preocupado que está com os dias que aí vêm podendo ensombrar os dias sempre luminosos da classe política, deitou mãos ao trabalho!
Os deputados têm suado as estopinhas, têm-se esforçado dia e noite para poderem descansar quando acabar esta legislatura! Trabalhar cansa, pois claro...
Por outro lado, todos sabem o sacríficio que representa ter de estar no Poder – que enfado, as luzes da ribalta, o nome nos jornais! Que canseira! - não ignorando ninguém que a coisa pública/política exige muito trabalho, muito esforço, algumas sestas não dormidas e outras tantas sextas-feiras a trabalhar até ao fim da tarde!
Eles pensam que merecem o melhor. E se merecem porque não trabalhar seriamente e muito profundamente sobre uma lei que cuide do seu futuro, dos seus privilégios?
O povo deve compreender que os deputados se têm desdobrado para resolver os seus problemas.
O povo sabe que eles são os seu representantes, a sua voz. Por isso, com certeza comprenderá que, deputados e órgãos de soberania, resultando de um conceito muito específico de Povo, são especiais, são diferentes do resto do povo timorense... essa sofrida mole imensa, gente indistinta que, contudo, tem o dever de compreender o porquê das coisas.
O povo tem obrigação de saber qual a razão pela qual o Parlamento trabalhou tanto, gastou tanta energia eléctrica para manter o hemiciclo fresco com os aparelhos de ar condicionado enquanto eles, os do povo, vendiam cordas de mangas, ananases e legumes na rua ou o homem do cancu passa dias inteiros com água atè à cintura tratando da horta pantanosa para ganhar um ou dois dólares por dia...
Claro que faltava energia horas a fio em bairros inteiros tal como é claro que era preciso aos senhores deputados ter as melhores condições para poderem produzir a melhor lei em defesa dos seus próprios interesses!
O povo sabe que eles já foram a Portugal, ao Brasil, à China, à Indonésia, aos EUA, a muitos países da União Europeia, ao Japão e alguns até a Cuba, a Taiwan, etc, etc, para aprender, sofrendo com o jet lag, com os fusos horários que lhes deram cabo de muitas horas de sono para além da hora da sesta! Tudo em nome do povo! Coitados dos deputados...
O povo também sabe que os deputados podem importar um veículo sem pagar os impostos que paga o resto do povo que os elegeu. É um privilégio pequeno, pois é...
E sempre em nome do povo, eles, os titulares de cargos públicos e políticos, irão prestar-se para ser as “cobaias” do doloroso “projecto piloto” que está agora em debate na Universidade Nacional. A ver se as pessoas se esclarecem, se entendem e se sensibilizam com a necessidade inadiável e a urgência da lei que tem de ser aprovada já, porque eles, os deputados e outros titulares de cargos públicos e políticos estão esgotados e merecem ter um resto de vida muito descansado!
Daqui a um 20, 30 anos, depois dos senhores deputados e outros titulares de cargos públicos e políticos terem interiorizado as mordomias, os privilégios, então será altura de pensar no resto do povo timorense. Agora, não!
Agora, a atribuição de reforma vitalícia é só para eles, os insignes deputados e outros titulares de cargos públicos e políticos. É para isso que os timorenses – os 10 por cento que trabalham – descontam mensalmente se ganharem mais de 100 USD. Os outros 90 por cento, de todos os escalões etários, os que não trabalham, esperem que haja emprego! Até porque Timor é o país mais pobre da Ásia e não faz sentido pensar agora em atribuir qualquer tipo de benefício ao povo...
E estamos em crise. Ou não estamos?
Agora, quem precisa são eles, os deputados e os outros titulares de cargos públicos/políticos. Que também precisam de ter carro, casa, telemóvel. Porque “trabalharam” para o povo, pelo povo e devem ser recompensados.
O resto do povo sofre? Que importa! Eles ficarão bem!
O resto do povo não tem emprego? Que importa! Eles têm a sobrevivência garantida!
O povo não sabe bem o que é a segurança social? Ainda bem para não exigir nada...
Quem trabalha também quer ter direito a reforma ? Um dia mais tarde, muito mais tarde, lá para as calendas... agora, não, que é altura de, sacrificadamente, “ajudar a reconstruir a Nação”.
Dizem os jornais que esta lei serve para engordar os deputados enquanto o povo sofre, os refugiados apodrecem nos campos e correm o risco de ficar sem ajuda do Governo. Dizem os jornais que é uma lei imoral. Contrariamente, pensam os deputados que se julgam merecedores de recompensa!
Por muito que pareça ficção, estou a falar de Timor-Leste e da legislação que prevê a atribuição de reforma vitalícia aos deputados e a outros titulares de cargos públicos/políticos, a quem não deve faltar casa, carro e telemóvel.
Os deputados, estes deputados, foram eleitos pelo povo para a Assembleia Constituinte o que não deixa de ser bizarro porque escreveram uma Constituição tão profusamente rica em “povo” mas esqueceram-se dele muito depressa!
A pobreza é extrema, o povo vive na miséria, a mortalidade infantil é altíssima, as crianças trabalham, as crianças viraram pedintes e dormem na rua, as pessoas passam fome e muitos não têm casa, os idosos dependem inteiramente dos familiares, não há emprego, os jovens não têm objectivos num país em crise: crise de valores, crise económica, crise social, crise política, crise militar...
Mas os deputados e outros detentores de cargos públicos e políticos vão ficar bem, muito bem! Cuidaram muito bem deles e atribuem-se direitos e privilégios com que outros timorenses nem se atrevem a sonhar!
Apetece-me perguntar: senhores deputados e outros senhores titulares de cargos públicos e políticos, os senhores não têm vergonha?
Pois, ao menos podiam ter feito qualquer coisa para tapar a boca do povo, mas pelos vistos nem isso fizeram. E é assim que um país que podia ser o modelo aí por essas bandas está nas ruas da amargura. Pobre Timor, quando será que vai ter paz e sossego?
Posted by AnadoCastelo 11:18 da tarde