Sofia, uma Senhora muito Ferik
Em Timor-Leste, a mortalidade infantil, tal como a materna, é elevadíssima. A esperança de vida dos timorenses queda-se abaixo dos sessenta anos. Mas há algumas raras excepções. Sofia é uma delas. Sofia é efectivamente uma senhora muito velha. Conta muitas histórias de Díli, do tempo do “Governador Celestino”, (que foi Governador de Timor entre 1894 e 1908) quando ela era ainda uma rapariguinha e vivia na cidade até que um dia, se apaixonou pelo Mau Loi e se mudou para a montanha, aí tendo feito toda a sua vida.
Sofia é uma sobrevivente da Segunda Guerra Mundial, dos desmandos de 1975 e de 1999. Faz muito tempo que Mau Loi e o único filho do casal, Eugénio, morreram. Mau Loi morreu de velhice. O Eugénio pereceu jovem. Porque teve a ousadia de “defrontar e de desrespeitar os deuses, as forças vivas da Natureza”. A Sofia sobreviveu à dor da perda dos seus entes mais queridos. É que, sendo Sofia natural da zona central de Timor, os seus outros parentes esfumaram-se na névoa dos tempos.
De vez em quando chegam notícias de que está muito doente. Quando assim sucede, há uns pseudo-pragmáticos olhados de esguelha pelos outros locais que arriscam dizer que “ela já viveu o seu tempo”. Sofia nega-se a vir tratar-se a Díli, preferindo permanecer na sua casita, ali para os lados de Lau Krabit, no distrito de Liquiçá, onde se sente em segurança e é tratada com imenso carinho pelos seus inúmeros afilhados e por aqueles a quem Sofia ajudou a ver a luz do Sol, quando, na montanha, ajudava as mães no parto.
Sofia já não tem capacidade física para tratar do café, do chá nem da horta. Mas, continua lúcida e há algum tempo, quando soube que os velhos iam ter direito a pensão de sobrevivência, Sofia fez-se a caminho e dirigiu-se ao suco mais próximo para se registar a fim de poder habilitar-se à pensão.
A sua generosidade é reconhecida. Ainda não há muito tempo, um dos afilhados morreu. E Sofia participou nos gastos da cerimónia como manda a tradição timorense, oferecendo o porco – o único - que engordava no curral na esperança de o vender um dia e de assim melhorar os seus parquíssimos proventos.
A ideia que tenho de Sofia é o de ter sido sempre uma velha senhora alegre, que gostava de andar com os seus kambatik floridos com cabaias de renda ou seda a condizer, de óculos escuros a defender-se da luz solar, de carrapito de negro cabelo preso por ulsuku de prata e brilhante de óleo de coco, contando inúmeras histórias do tempo do Governador Celestino, soltando sonoras gargalhadas, rindo-se até dos seus males. Em dias de festa, Sofia não dispensava o seu copinho de vinho e um cigarro. E, claro, também não dispensava o seu café. Menos ainda mascar o bétel, a areca e a cal. Cuidadosa com a sua saúde, Sofia não abusava do açúcar porque tinha imenso cuidado com os dentes. Hoje, quando se ri, ainda se vê uma fiada de dentes aguçados, pequenos. Dizem os montanheses mais velhos que já teve três dentições.
Tendo em conta que estamos em 2009 e que o Governador de Timor Celestino da Silva deixou de o ser em 1908, Sofia, que era na altura uma rapariga, tem, certamente, mais de cem anos.
Sofia não é eterna. Por isso, antes que o tempo a leve, talvez alguém com poder de intervenção social e político, vencendo os caminhos de cabras ou as estradas destruídas pela força das chuvas e por anos de descuido, tente chegar a Sofia. Talvez que alguém se lembre de fazer um levantamento sobre o número de anciãos por esse Timor profundo, onde, certamente, haverá muitas mais Sofias a precisar de carinho e de apoio social.