Lixo, excedente, bem necessário...
Há uns anos, na década de 80-90, um dos dossiers temáticos da minha área de trabalho como documentalista, tinha a ver com a recolha de informação sobre os “excedentes” de países da então denominada CEE, Comunidade Económica Europeia, enviados para alguns dos países do Terceiro Mundo, designadamente para alguns dos PALOP. Se me não falha a memória, um das notícias que então li tinha a ver com o prazo de validade do excedente de um bem alimentar específico, a manteiga.
O que se pensava ser uma ajuda, não passava da necessidade de despachar depressa e para bem longe o que não servia para a Europa. Mais claramente, o lixo de uns pode ser, transforma-se , é um bem necessário para outrem…
Quando se anda pelas ruas de Díli e das sedes dos distritos, nos mercados, em boutiques improvisadas que não têm nada a ver com a “boutique de alcofa” das feiras de Carcavelos ou de Cascais, vê-se dependurado todo o tipo de roupa para homem, mulher, criança.
Questionei-me muitas vezes sobre a origem daquela roupa, lembrando-me que, logo a seguir a 1999, quando Timor-Leste estava na moda e comovia até os corações mais empedernidos, a ajuda do exterior era muito grande; entre os bens doados, havia muita coisa boa, necessária e útil como também havia outras tantas coisas inúteis para além de muito lixo.
Lembro-me ainda que – a propósito de um comentário sobre a roupa de Inverno exposta em cabides ao lado de outra mais ligeira para venda nos mercados das ruas de Díli e de outros distritos - alguém alvitrou tratar-se de donativos enviados por simpatizantes da causa e condoídos com o sofrimento timorense.
Hoje, as coisas modificaram-se um bocado. Não só porque há mais mercados, mais postos de venda e já pouco chega como ajuda humanitária, como há menos simpatizantes generosos e também porque, ficando tempos infindos na Alfândega seguindo a lista das preferências estipulada pela simpatia ou antipatia institucional pela entidade destinatária da ajuda, os bens incluídos no pacote humanitário deterioram-se e quem ainda ajuda deixa de ter vontade de o fazer e de acreditar que em Timor-Leste há necessitados…
Hoje, nas ruas-mercados–armazéns, numa versão miserável dos supermercados “macro” de um qualquer país desenvolvido, vendem-se uns grandes sacos de roupa revendidos depois nas tais boutiques de rua.
Os produtos “obral” (que em indonésio quer dizer saldos) contidos naqueles sacos enormes são vestuário para pessoas de todas as idades de ambos os sexos, cortinados, lençóis, sapatos, toalhas.
Umas coisas são novas e de boa qualidade e talvez façam parte do material excedente ou sem certificado de qualidade de alguma fábrica, outras esburacadas e bolorentas não passam de verdadeiro lixo.
Com um vencimento bem magro que não chega aos $100 USD mensais – quando o há, obviamente – ninguém pode dar-se ao luxo de comprar roupa senão muito de vez em quando e só quando sobram ou se poupam um ou dois dólares e se compra uma peça de roupa nessas boutiques de rua para ser usada até ficar coçada, descorada do sol, e do uso repetido dia sim, dia sim, até ficar impregnado de odor corporal próprio de quem se banha em água da torneira quando a há e sem sabonete que o dinheiro também não dá para esses luxos.
Mas ainda - felizmente! -há pessoas generosas que querem ajudar o próximo. Ainda há quem faça o bem sem olhar a quem.
Há um grupo de pessoas que, de há algum tempo a esta parte, se junta para comprar uns quantos sacos de roupa que depois distribui em Díli e no interior.
Ontem, tive oportunidade de assistir a uma dessas distribuições.
A varanda encheu-se de homens e mulheres, escolhendo, remexendo, rindo nervosamente, olhos bem abertos, brilhantes!
E tudo foi aproveitado! Para os irmãos e sobrinhos mais pequenos, filhinhos recém-nascidos, meninas em idade de primeira comunhão, jovens adolescentes, saias azuis e blusas brancas que vêm a calhar - apesar de já estarmos a mais de meio ano escolar – para a farda de uma jovem estudante, calças, calções, camisas para os homens da casa, roupa interior, tudo tinha destinatário. Até o lixo!
Um, dizia, “agora, durante um ano ou dois, não vamos precisar de comprar mais nada!”, acrescentando outra “amanhã, levo esta blusa à missa!”. De um jovem da montanha trabalhador na cidade, fiquei a saber que tinha dez irmãos mais novos…
Queria alguém um vestidinho para a sua menina de ano e meio. Inutilmente, porque um jovem pai mais lesto guardara dois para a sua princesinha e deles não abria mão.
O rapaz calça o nº 38 e os sapatos sobram-lhe nos pés? Que importa, faz sempre jeito… guarde-se o par de sapatos!
Quando terminou a partilha, já a noite caía; o escuro tomou conta do povoado a par da angústia que assaltou todos quantos assistiram à alegria de gente timorense tão miserável, tão pobre, tão sem nada, que com muito pouco se contenta!
E, não obstante, nada ou quase nada lhes foi dado nestes cinco anos de independência, em que a generosidade andou tão arredia de quem tem na mão os destinos deste país porque o assoberbado governante com outras questões no seu entender mais importantes que as que se prendem com o bem estar das pessoas governadas, se esqueceu do seu país habitado por pessoas e que o Poder só vale a pena quando as pessoas são tratadas como seres humanos…
Mais um texto impregnado de isento sentimento de amor pelo país que continua à procura do rumo certo.
Sou um admirador do meus país de nascimento e de tudo o que gira à sua volta. Por isso não prescindo da leitura assídua deste e do blogue do maracujá maduro. Têm ambos aquele travo doce que me hipnotiza.
Posted by J 10:41 da manhã