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sexta-feira, junho 02, 2006 

Paredes meias com o caos


Há pouco deitaram fogo a um descampado que fica aqui ao lado. Vi passar uns jovens, agachados a correr. Desconfio que tenham sido os autores da proeza.
Apesar da brisa, o fogo extinguiu-se, para o que deve ter contribuído o facto de o mato ser rasteiro e não estar completamente seco.
Mais ao fundo, situa-se um conjunto de casitas que foram abandonadas pelos seus habitantes mal surgiu o conflito.
Na sua fuga, deixaram tudo. Incluindo animais. Ontem, dois ou três homens, passaram com um porco inteiro, mas já devidamente arranjado. Depois, foi a vez de uma família (pai, mãe e duas crianças) transportar alguns tarecos das mesmas casas para o bairro onde moram, um bocado mais afastado. Um pobre a roubar outro pobre…
Com uma dimensão diferente, aconteceu esta tarde o assalto aos armazéns do Fomento.
Ontem, à tarde, da encosta da montanha contígua a Taci Tolu, vi descerem, em correria, um grupo de vinte jovens que se esconderam noutras casas igualmente já abandonadas.
Díli está a saque. É uma cidade entregue às mãos dos gangs. No noticiário da RTP, ouvi o testemunho de um deles, em bahasa indonésio. Estranho!
Tudo isto me faz recordar alguns rituais dos timorenses.
Havia umas quantas aldeias com fronteiras comuns. O roubo a cada uma delas estava a intensificar-se e a tornar-se preocupante. Começaram, inclusive, a surgir acusações mútuas.
Timor era independente. Estávamos em 2004.
Era necessário acabar com os roubos. Estabeleceram-se os devidos contactos entre os vários chefes locais que concluíram ser urgente firmar um acordo baseado numa tradição bem antiga, - e abandonada no tempo da ocupação indonésia - de respeito pela pessoa humana, pela propriedade e pelos bens alheios.
O representante de uma determinada localidade ofereceu-se para anfitrião do encontro final, da festa que iria marcar o acordo do tara bando*.
Os chefes de suco e de aldeia fizeram-se acompanhar dos lia nain* e de muito povo. Foram dois dias de festa, com muito tebedai*, muita comida, tuaka*.
No terreiro, dispuseram-se alguns bens da terra. Um cabrito, um cacho de bananas, uns ananases, jaca, uma galinha, uns ovos.
Mascou-se betel, areca e cal.
Ajuramentou-se.
E o Lia Nain falou. Dissertou sobre o respeito pela vida humana, pela propriedade alheia, pela tradição, pelo bem comum. Pela História. E pela paz que do respeito nasceria.
As sanções - simbólicas - para os prevaricadores seriam estabelecidas pela vítima, depois de apresentada queixa ao chefe de suco ou de aldeia.
Do cabrito morto a preceito, retiraram-se os cornos. Grelharam-se as vísceras, coração e fígado, que se distribuíram por todos. E a todos coube um golo de tuaka.
Partiram-se os bens da terra em pedaços. Um conjunto para cada canto da fronteira para onde uma representação das aldeias se encarregou de os levar. Os despojos dependurados numa estaca tornaram-se sinal de proibição de roubo.
Que me conste, apenas uma vez houve quebra de compromisso. A “multa” foi paga e a paz reposta.
A propósito da situação difícil que vivemos e na busca de uma solução, ouvi o Bispo de Baucau, D. Basílio do Nascimento, sugerindo numa entrevista a uma rádio local que se ouvissem os mais velhos, os anciãos, os chefes das aldeias.
Timor tem tradições. Tem história. Tem cultura. Se falham os caminhos mais pragmáticos, mais ocidentais, mas igualmente também menos interiorizados, porque não tentamos, porque não procuramos aproveitar o que temos de bom em prol da paz do país?

*Tara bando – Em sentido literal quer dizer dependurar a proibição
*Lia nain* - mensageiro, donos da palavra
*Tebedai – dança típica
*Tuaka – bebida alcoólica da palmeira

Bonito texto Ângela Carrascalão, os meus parabéns. É preciso que vocês timorenses se abram mais e se consigam explicar melhor, porque há uma riqueza infindável nos vossos corações, mas que é inacessível à maior parte dos malais. E, ao contrário de outras, essa ninguém vos pode roubar!

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