terça-feira, janeiro 27, 2009 

A banalização do desrespeito e do desprezo




O culto dos mortos é, em Timor-Leste, um caso sério. E quase me atrevo a dizer que se respeita mais a memória de um morto do que se respeita um ser humano vivo. Por outro lado, se há sítio onde todos, depois de morrerem, passam a ser bons, é aqui em Timor-Leste. Culto, cerimoniais da morte, choros de transido sofrimento...
Tudo parecia ser assim tão linear, tão certo, tão sentimento...
Pena é que o sofrimento, a dor, o respeito e a educação sejam permeáveis a algumas modas. Que o culto se consuma perante a cobiça de alguns vivos que não olham a meios para alcançar os seus fins. Se não há espaço para sepultamento de novo inquilino do cemitério de Santa Cruz há que o arranjar. O que se faz com a profanação descarada de campas para reutilização.
Há desrespeito, desprezo pelos restos mortais daqueles que, tendo partido há muito tempo, não têm familiares que defendam o direito dos mortos ao descanso em paz.
O Cemitério de Santa Cruz está cheio como um ovo e, nem mesmo existindo mais cemitérios / com excepção do cemitério de Santana - , as pessoas desistem de ali enterrar os seus entes queridos. É verdade que em Santa Cruz se descansa, só que não eternamente...
Quando morre alguém, é uma dor de cabeça para os que transportam o caixão e para os acompanhantes. Acompanhar o morto à sua “última” morada, significa, sem pudor, pisar, saltar por cima das sepulturas existentes. Como já não há espaços vazios, enterra-se o morto na campa de um familiar. E quando não as há de familiares, então vá de profanar os restos mortais de outrem. Os mortos não falam e não podem resistir aos negociantes da morte...
Um dia destes, entrei no cemitério e, num gesto habitual, olhei para o lado esquerdo de quem entra pela porta principal, de frente para a capela, onde havia a sepultura de um velho e solitário senhor a quem valeu na hora da morte – há umas dezenas de anos - um grupo de amigos a prestar-lhe devida homenagem enterrando-o em campa rasa evitando assim que o colocassem numa vala comum. Em lugar da campa rasa em cimento, cor de cinza, há, agora, uma nova, alta, colorida, como aliás é hábito aqui no país. Estranhei. Recordei as palavras de alguém que me afiançara que havia quem fizesse negócio com as campas.
Lembro-me que noutros tempos havia um coveiro que tratava cuidadosamente do cemitério, recordo que havia um ossário. Não sei se continua a existir um lugar onde sejam condignamente colocados os restos dos que perdem o lugar. Ignoro mesmo se haverá hoje alguém a quem nos possamos dirigir para dizer de nossa justiça.
Parece-me urgente que corajosamente se tomem medidas e se encerre o cemitério de Santa Cruz proibindo novos enterros. Se, mesmo por omissão, aceitamos e assistimos impávidos ao acto ultrajante da profanação do cadáver de outro ser humano, estamos também a aceitar que as lágrimas que deitamos pelos que partem não são mais que lágrimas de crocodilo. Pior, aceitamos bem que, um dia mais tarde, e na cíclica renovação de desrespeito, haverá quem faça o mesmo aos nossos mortos, a nós próprios...
E porque já não se sabe onde começa e termina o respeito seja pelo próximo vivo seja pelo morto e a tradição já não é o que era dantes, não haverá flor colocada na “Cruz Bo´ot” que chegue para ajudar no perdão dos nossos pecados...

terça-feira, janeiro 20, 2009 

Sofia, uma Senhora muito Ferik

Em Timor-Leste, a mortalidade infantil, tal como a materna, é elevadíssima. A esperança de vida dos timorenses queda-se abaixo dos sessenta anos. Mas há algumas raras excepções. Sofia é uma delas. Sofia é efectivamente uma senhora muito velha. Conta muitas histórias de Díli, do tempo do “Governador Celestino”, (que foi Governador de Timor entre 1894 e 1908) quando ela era ainda uma rapariguinha e vivia na cidade até que um dia, se apaixonou pelo Mau Loi e se mudou para a montanha, aí tendo feito toda a sua vida.
Sofia é uma sobrevivente da Segunda Guerra Mundial, dos desmandos de 1975 e de 1999. Faz muito tempo que Mau Loi e o único filho do casal, Eugénio, morreram. Mau Loi morreu de velhice. O Eugénio pereceu jovem. Porque teve a ousadia de “defrontar e de desrespeitar os deuses, as forças vivas da Natureza”. A Sofia sobreviveu à dor da perda dos seus entes mais queridos. É que, sendo Sofia natural da zona central de Timor, os seus outros parentes esfumaram-se na névoa dos tempos.
De vez em quando chegam notícias de que está muito doente. Quando assim sucede, há uns pseudo-pragmáticos olhados de esguelha pelos outros locais que arriscam dizer que “ela já viveu o seu tempo”. Sofia nega-se a vir tratar-se a Díli, preferindo permanecer na sua casita, ali para os lados de Lau Krabit, no distrito de Liquiçá, onde se sente em segurança e é tratada com imenso carinho pelos seus inúmeros afilhados e por aqueles a quem Sofia ajudou a ver a luz do Sol, quando, na montanha, ajudava as mães no parto.
Sofia já não tem capacidade física para tratar do café, do chá nem da horta. Mas, continua lúcida e há algum tempo, quando soube que os velhos iam ter direito a pensão de sobrevivência, Sofia fez-se a caminho e dirigiu-se ao suco mais próximo para se registar a fim de poder habilitar-se à pensão.
A sua generosidade é reconhecida. Ainda não há muito tempo, um dos afilhados morreu. E Sofia participou nos gastos da cerimónia como manda a tradição timorense, oferecendo o porco – o único - que engordava no curral na esperança de o vender um dia e de assim melhorar os seus parquíssimos proventos.
A ideia que tenho de Sofia é o de ter sido sempre uma velha senhora alegre, que gostava de andar com os seus kambatik floridos com cabaias de renda ou seda a condizer, de óculos escuros a defender-se da luz solar, de carrapito de negro cabelo preso por ulsuku de prata e brilhante de óleo de coco, contando inúmeras histórias do tempo do Governador Celestino, soltando sonoras gargalhadas, rindo-se até dos seus males. Em dias de festa, Sofia não dispensava o seu copinho de vinho e um cigarro. E, claro, também não dispensava o seu café. Menos ainda mascar o bétel, a areca e a cal. Cuidadosa com a sua saúde, Sofia não abusava do açúcar porque tinha imenso cuidado com os dentes. Hoje, quando se ri, ainda se vê uma fiada de dentes aguçados, pequenos. Dizem os montanheses mais velhos que já teve três dentições.
Tendo em conta que estamos em 2009 e que o Governador de Timor Celestino da Silva deixou de o ser em 1908, Sofia, que era na altura uma rapariga, tem, certamente, mais de cem anos.
Sofia não é eterna. Por isso, antes que o tempo a leve, talvez alguém com poder de intervenção social e político, vencendo os caminhos de cabras ou as estradas destruídas pela força das chuvas e por anos de descuido, tente chegar a Sofia. Talvez que alguém se lembre de fazer um levantamento sobre o número de anciãos por esse Timor profundo, onde, certamente, haverá muitas mais Sofias a precisar de carinho e de apoio social.

segunda-feira, janeiro 19, 2009 

Ainda a tempo...


Há dias, mais concretamente a 9 de Janeiro, tive oportunidade de acompanhar a emissão do “Timor Contacto” através da RTP Internacional. Pensava eu que o Timor Contacto servia para difundir as actividades dos portugueses neste país ou até mesmo a cultura timorense e que deixasse a política para os políticos. Mas, a par da apresentação de algumas imagens de danças timorenses, o “Timor Contacto “ aproveitou – pelo menos nessa emissão - para fazer algumas incursões pela política timorense. E foi assim que ouvi o Sávio – com pronúncia portuguesa de Timor - falando a despropósito da “falta de identidade” timorense. Não sei em que país Sávio terá vivido. E quase apetece perguntar-lhe se terá crescido em Timor e que terá animado a Resistência Timorense na sua longa luta contra a ocupação indonésia? Não terá sido justamente pela vincada identidade timorense tão distinta, por exemplo, da do outro lado da ilha de Timor que ascendemos à independência? Para além de que as danças apresentadas são uma manifestação da identidade cultural timorense. Ou não? Já no fim da emissão, a locutora Soraia – com pronúncia portuguesa de Portugal - refere que Timor-Leste ainda está muito colado à liderança de 1975. E Soraia justifica o seu argumento das reminiscências “ditatoriais” em Timor-Leste acompanhando o discurso com as fotografias do Presidente Ramos Horta, do Primeiro-Ministro Xanana Gusmão e do ex-Primeiro-Ministro Mari Alkatiri. A que propósito, com que interesse e por encomenda de quem?