quarta-feira, julho 16, 2008 

Doentes e doentes....

Railós está doente. Salsinha doente está. Precisam de tratamento para as suas doenças. Lá fora, no estrangeiro “banati tuir” ou a exemplo de Rogério Lobato, uma vez que cá dentro, no Hospital Nacional Guido Valadares, não há hipótese de os tratar. É o que, de há uns dias a esta parte, se tem lido nos jornais que nos dão igualmente conta de que já está a tratar-se dos passaportes de ambos.
Uma destas noites, no noticiário da RTTL, dizia o responsável da prisão que sim, Railós tem uma doença de pele, está inchado, embora os jornais digam que se trata de problemas de tensão (não percebi se hiper se hipo); quanto a Salsinha, acrescentou o responsável, está doente, sim, mas são essas coisas normais da época, está com “mear” que é o mesmo que tosse e “inus metin” que significa “nariz tapado”, constipado...
Parece ainda que um ou outro, não me lembro qual, está tuberculoso.
Portanto, adianta o jornal, Railós está para sair agora, Salsinha, depois...
Pois é verdade que os há imensos outros timorenses doentes com problemas de tensão hiper e hipo, coração, tuberculose, SIDA, epilepsia, lepra...
E também é verdade que há mais de um mês anda para aí um vírus à solta que traz meio mundo doente, com tosse, constipação, resfriados, alguns até com “issin manas” ou febre. Há pra´í muita gente de “tissu” sempre pronto a entrar em acção e a inalar “tigger balm”, na esperança de que a inalação da quase milagrosa pomada chinesa desentupa as vias nasais. Há ainda os que se tratam com chá de ai lia, versus gengibre. Há outros que, mais abonados, vão à farmácia, a “apotek” de seu nome indonésio, munir-se de comprimidos. Outros tantos residentes estrangeiros recorrem aos serviços médicos disponibilizados pelos seus países.
E também os há menos afortunados de conhecimentos ou de sorte que ficam pacientemente à espera de que a doença passe com o tempo... que nem sempre é o melhor remédio.
Antes de todos os direitos, diz-nos a Constituição que a vida humana é inviolável e que o Estado reconhece e garante o direito à vida. Claro, há a defesa dos direitos humanos que abrangem, naturalmente, os prisioneiros. Tal como existe o direito à saúde que, embora consignado na Constituição, não chega a todos.
Não consta – pelo menos não dei por isso - que haja algum movimento a favor da ida do enorme número de timorenses gravemente doentes para tratamento no estrangeiro. Irrealista? Ok, aceitemos. O país é pobre!
Não havendo, pois, tratamento igual para todos os timorenses, sempre deveremos aproveitar a estadia do navio hospital norte-americano que, durante duas semanas, estará ao largo de Díli e se deslocará a outros distritos, tratando, medicando, operando os timorenses...
Já é alguma coisa!

terça-feira, julho 08, 2008 

Vira o disco e toca o mesmo


Lado A

Na anterior legislatura os deputados da maioria eram outros. Os deputados, representantes do povo sendo seres especiais, de outra classe, tinham direito a benesses super especiais; Eles, os especiais, atribuíram-se direitos especiais; o vulgar timorense não tinha sequer direito de pensar que esses direitos podiam um dia, mesmo muito, muito remoto, fazer parte dos seus sonhos.
Se mais de 90 % dos timorenses não tinha sequer trabalho, não tinha ordenado, como poderia pensar em pensão de reforma vitalícia e outras mordomias passados quatro ou cinco anos de penosa labuta?
Não tarda nada vai surgir um dos mentores da lei da pensão vitalícia argumentar que se eles não trabalham– eles são o povo timorense, entenda-se! -, não se cansam, logo não têm direito ao profundíssimo e justíssimo agradecimento do Estado! Continuem a lutar por um emprego!
Será que temos de aceitar como verdade que eles, os especiais, eram outra classe de timorenses e tinham direito a essas benesses super especiais? Ah!, sim! Eles eram os representantes do povo e foi o povo que os elegeu, claro!


Lado B

Hoje a maioria é outra. E os deputados, representantes do povo continuam sendo seres especiais, de outra classe e continuam a ter direito a benesses super especiais.
Por isso, eles, os especiais, se atribuem naturalmente direitos e outras mordomias especiais; o vulgar timorense não tem sequer direito de pensar que esses direitos podem fazer parte, um dia, mesmo muito, muito remoto, dos seus sonhos.
Se mais de 90 % não tem sequer trabalho, como pode pensar em ter carro – mesmo não sendo viatura de topo de gama - passados quatro ou cinco anos de penosa labuta?
Não tarda nada vai surgir um dos mentores da atribuição de viaturas de topo de gama argumentar que, pois se eles – eles são o povo timorense, entenda-se! - não trabalham, não se cansam, não têm direito ao profundíssimo e justíssimo agradecimento do Estado! E andem a pé que caminhar faz bem à saúde!
Será que temos de aceitar como verdade que eles, os especiais, são outra classe de timorenses e têm direito a essas benesses super especiais? Ah!, sim! Eles são os representantes do povo e foi o povo que os elegeu, claro!

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É boa! Parei para reler - porque, não sendo especial preciso sempre de ver como escrevi -, ia continuar a escrever e reparei que só mudei o tempo dos verbos. Tudo o mais – direitos, benesses de uns e de outros – tudo é igual.
Quer-se dizer, há nuances: ali, eram as pensões vitalícias; aqui, são carros topos de gama. Ali, continuem a lutar por um emprego! Aqui, andem a pé que caminhar faz bem à saúde!
Não há nuances a não ser no tempo do verbo: ali, eram deputados especiais; aqui, são deputados especiais. Ali e aqui, o povo é o mesmo, é o timorense!
E agora, que sobra dizer? Nada? Que vai mudar? Ainda nada?

... Ai que me pareceu ouvir alguém referir-se a vozes do povo como não sendo vozes de Deus... antes sendo “vozes de burro que não chegam ao céu!”.

sábado, julho 05, 2008 

Atrevida ignorância!


O jovem desceu à cidade. Num golpe de sorte dos deuses, logo arranjou emprego. Estava a fazer-se um bom empregado. Educado, diligente, responsável, discreto, cumpridor. Gui andava satisfeito.
Um dia, seguido de outros tantos dias iguais, caiu redondo no chão.
A coisa complicou-se e dela diziam os amigos mais chegados: Aqui há coisa má! Isto é resultado do mau olhado!
Levou-se Gui ao médico. Pois, nada de especial. A cura aconteceria com o tempo (pois não é o tempo que tudo cura?) Bom, vá lá, uns comprimidos para ajudar a cura… Não ajudaram; Gui fartou-se da medicina dita civilizada e pediu autorização para ir à sua aldeia. Ali é que havia cura!
A tia, conhecida curandeira do sítio, em prece enladainhanda a vários deuses, socorria-se de diversos poderes. Avé Maria, Padre Nosso, rai nain, matan dok, raízes, chás, cascas diversas… Gui quase a cair ao chão, leve palmada na testa e Gui retornava à vida normal, definhando, definhando...
-Já se sabe o que tem Gui?
- É esquisito, porque quando parece que ele está bem, fixa o olhar no nada e, zás! Cai no chão sem mais nem quê!
- Mas...
Entredentes: Qual mas! Não há mas nenhum!E mais alto: Aquilo foi mau olhado originado pela inveja da sorte do rapaz! Bem, a verdade é que a irmã também já foi atacada do mesmo!
O tempo foi passando e o estado de saúde de Gui cada vez pior.
Meses mais tarde, os familiares da cidade sugeriram a um dos tios de Gui trazê-lo de novo à cidade.
De bigodaça farta, olhar vivo, desconfiado de modernices, o tio ficou-se pelo talvez... mas só depois de alguns tratamentos à base de umas raízes ainda não experimentadas.
Ao mesmo tempo, a família da montanha já descrente da cura de Gui andava a colectar alguns fundos entre familiares e amigos; sim, porque se Gui perecesse, era preciso ter tudo combinado e todos deveriam contribuir para as despesas.
Um dia, finalmente Gui regressou a Díli. Mais parecia um velhinho, trémulo, amarelo, magríssimo.
Análises, radiografias, comprimidos para o fígado e estômago e nada! Claro, os maus-olhados não deixam pista...
E todas as manhãs, à pergunta sacramental “como está Gui?”, a resposta sempre igual “Avó, a coisa má atacou-o três, quatro, cinco vezes. De noite, de madrugada, enquanto comia foi atacado e caiu para o lado. Até partiu um prato!”; “Avó, a coisa má atacou tão forte, e nós, com medo, deixámo-lo no chão, fugimos!”
Até que muitos desmaios e quedas depois, venham cá ver, Gui foi outra vez atacado pela coisa má!
Estirado no chão, olho revirado, som gutural, saliva ao canto da boca...
Parece que estava descoberta a coisa má que perseguia Gui há mais de um ano!
Decidiram avisados os amigos da cidade: à cautela, nem vamos pronunciar o nome da doença “maldita”, antes que fujam dele e o deixem sozinho. Assim foi feito.
Gui foi levado por um tio à Associação dos Doentes de Epilepsia situada em Pantai Kelapa onde lhe diagnosticaram a “bibi mate”*, tendo entretanto iniciado o tratamento.
Tenho esperança que Gui melhore. Tal como também tenho esperança de que os doentes epilépticos – apesar de não se ter em conta a “prioridade” da doença - passem a ter outro apoio – o do Estado - para além do que lhes é dado por uma ONG; espero que deixem de ser marginalizados e vistos pelos que deles fogem como o diabo foge da cruz receosos da coisa má como se fossem malditos.
E, já agora, que tal apostar na informação?

*Bibi mate significa, literalmente, cabrito morto; em sentido figurado, é o equivalente ao português “olhos de carneiro mal-morto”.