sexta-feira, julho 28, 2006 

Rumores, boatos, exageros

Dizem muitos que Timor é o país dos rumores e dos boatos. Dos exageros. Defendem outros que quando eles surgem, já se sabe que algo de grave está para acontecer. Ouve-se em murmúrio “ a situação é muito grave…”
No país que para alguns é dos rumores, o conceito de paz é impreciso; a paz é efémera, superficial, volúvel, incerta. Certo, apenas o conflito, a controvérsia
, a guerra. Tudo alimentado com a intriga, a ambição e a prepotência, nutrientes adequados, argumentos perfeitos com que se justifica a demanda incessante da paz; se alcançada, ei-la que surge sempre imperfeita e abre novo caminho para a liça, para nova controvérsia… Novo ciclo de desvario. A desculpa é sempre a mesma. Vale tudo e vamos lutando eternamente em busca da paz!

 

Nostalgia de Timor

A vida em Timor torna-se por vezes fastidiosa pela rotina dos seus dias. Pelo menos, era disso que se queixavam muitos dos que aqui viviam por algum período.
Repetiam-se dia após dia, anos a fio, os hábitos simples dos timorenses, esse povo andarilho que gostava de andar de um lado para o outro, sem destino, sem objectivo definido, apenas só pelo prazer de calcorrear atalhos, atravessar ribeiros, transpor colinas, montanhas inóspitas, quase sempre acompanhado do galo transportado cuidadosamente ao colo; gente que vai agora ao mercado vender uns legumes que trouxe da montanha e que lhe vai proporcionar, com sorte, uma refeição quente de supermim, aquela massa instantânea, saborosa, atribuída também como alcunha aos licenciados no tempo da Indonésia –os sarjana surpemim - pelo anterior PM. Gente da montanha que fazia música com uma garrafa na qual o tilintar de um garfo adquiria os acordes melódicos de valsa, tangos ou marchas - conforme a imaginação de cada um - e fazia as delícias dos populares que dançavam ao ritmo da garrafa depois até do último canto do galo. Gente que conversava à sombra do tamarindeiro, mascando, cuspindo vermelho, arrumando a bola de bétel, cal e areca num canto da boca para mais tarde saborear; pessoas que iam ao cemitério em saudosa romagem sem se esquecer de levar um pedaço de tabaco colocado cuidadosamente num canto resguardado para satisfazer os desejos de quem partira!
O tempo tinha outra dimensão. Os dias eram de ramerrão, num repetitivo nasce o sol, põe o sol, chove, não chove, semeia, colhe, anda, pára… De vez em quando um core-metan, um estilo, um casamento, traziam alguma novidade aos dias sempre iguais de Timor.
A novidade para o homem que havia chegado do interior podia ser o mar imenso que se estendia perante os seus olhos cheios de verde escuro-claro da sua montanha… homem perdido em deliciada contemplação do mar azul que via pela primeira vez …
Hoje, tudo está diferente. Estamos confinados às zonas de segurança. Não sei se ainda haverá quem acredite na existência de um pedaço de terra segura neste Timor-Leste onde se dão, se escondem e se entregam armas de uma forma tão banal, como se fosse um acto de rotina e de normalidade possuir armas para o que infelizmente já é considerado um desígnio comum e interiorizado, o de matar. Estou a falar de matar o outro, o próximo, o ser humano.
A angústia toma o lugar da nostalgia. Antes, porém, sobra-me ainda uma réstia de tempo para vos dizer que preferia os dias sempre iguais de antigamente!

quinta-feira, julho 27, 2006 

Dias agitados


Parecia que o ambiente pesado dos dias de conflito e de crise estavam a ceder algum espaço à calma, ainda que todos estivessem conscientes de que se tratava de uma calma passageira, para não se dizer que todos sabiam ser uma falsa calma. Mas, o mais recente episódio sobre posse ilegal de armamento veio aumentar o clima de tensão no país.
O prazo para a entrega voluntária de material de guerra mal terminara quando em Díli, a GNR encontrou uma grande quantidade de armas e munições numa casa situada em frente ao quartel-general das forças militares australianas e ocupada pelo major Alfredo Reinado que assevera que a mesma lhe foi atribuída pelo Presidente da República, Xanana Gusmão.
No noticiário das sete horas da noite, a RTTL anunciou outra entrega de armas, pelo grupo de Labadain (Teia de Aranha) que declarou tê-las recebido das mãos do ex-ministro do Interior Rogério Lobato, a mando do Governo. Para Labadain, de Rai Laco, é uma novidade a natureza ilegal do armamento em sua posse, uma vez que esse lhe foi entregue – bem como a outros elementos que então nomeou - por membros do Governo. E Labadain não está interessado que fujam dele “como o diabo foge da cruz”, conforme deixou escapar. Exige, por isso, que “quem manda” vá a Gleno esclarecer a situação.
Na primeira página do jornal STL, as declarações feitas pelo presidente da FRETILIN sobre a falsidade de militância de Rai Los nesse partido, merecem do visado uma reacção irritada. Rejeitando as afirmações, ao mesmo tempo que assegura ter sido delegado ao congresso de Maio, Vicente da Conceição Rai Los vai dizendo que Lu Olo “olha mas não vê ou talvez veja mal”.
Acredita-se que o armamento desviado ou distribuído está disperso por todo o país e sabe-se lá em que mãos! Já ninguém acredita no discurso oficial de que a situação tende a normalizar-se.
Tudo isto incomoda e é muito preocupante.
A acrescentar à insegurança pela situação de crise que teima em não se despegar do país, é muito, muito inquietante a banalidade que transparece das relações entre alguma classe dirigente do país e os apelidados rebeldes e elementos de esquadrões da morte a quem também há quem chame de “Grupo secreto do secretário-geral da FRETILIN”.
No mínimo perturbantes são os sinais de tanta balbúrdia que denuncia alguma promiscuidade e revela demasiada ligeireza no tratamento de questões que deveriam ter sido motivo de uma conduta bem mais atenta, cuidada e discreta.

terça-feira, julho 25, 2006 

Momentos de bonança

Por um bom par de horas, sobressaiu a sensação de que se havia retrocedido no tempo. Por um tempo, ficou esquecido o ambiente na cidade. Naquelas duas horas, uma serenidade real ocupou o lugar da calma aparente, dos problemas dissimulados nos campos de refugiados cujo futuro todos adivinham problemático, da violência nos bairros mais recônditos da cidade onde todos os dias se acrescentam mais uns pontos na história de ódio e de vingança deste povo.
Ouviu-se música ao vivo, cantou-se em tétum, em português, em castelhano e um grupo de jovens esbeltos e trajados a rigor deu a conhecer algumas danças típicas timorenses no jantar em honra de um grupo de visitantes de Macau, liderado pelo vice-presidente do Conselho Olímpico da Ásia, Manuel Silvério – e também vice-presidente do Comité Olímpico da Região Administrativa Autónoma de Macau -que veio a Díli inaugurar a sede do Comité Olímpico Nacional de Timor-Leste.
Mas, lá diz o ditado que “não há bem que não acabe”… mal cheguei ao bairro, ainda mais escuro e despovoado que noutros dias, deparei com a realidade, a verdadeira, a legítima, aquela realidade que vivemos nesta cidade de Díli: não havia energia eléctrica. A falha durou 18 horas.
O clima de quietude que havia começado a tomar conta de mim, desapareceu num ápice. Pensando melhor, devo ter arrumado a ilusão de uma noite serena à porta do hotel onde decorreu o jantar. E como a uma ideia derrotista se segue outra e mais outra, fui-me lembrando das coisas desagradáveis dos últimos tempos.
Lembrei-me de imediato das seis longas horas em que ficámos privados de comunicação móvel num qualquer dia da semana passada quando também soube de dois jovens esfaqueados em Metinaro, dos mortos, da distribuição de armas, dos apedrejamentos diários, dos incêndios, das ameaças, dos roubos, da insegurança, da ambição do poder, da fome, da pobreza, da corrupção, dos boatos, dos rumores, da intriga.
Lembrei-me até que desde Abril passado nunca mais se ouviu música pela noite adentro tocada por conjuntos que animavam as festas de casamento onde as centenas e muitas vezes os mais de mil convidados dançavam até às seis da manhã, até ao “raiar do sol”, como rezavam os convites nos meus tempos de menina e moça …
Num momento, recordei a atitude tranquila e segura dos visitantes de Macau, numa manifestação natural de quem vive num ambiente calmo de uma cidade próspera, com boa qualidade de vida.
Lembrei-me de que, certamente - embora fosse real a calma na sala onde se realizou o jantar - tal como eu, todos os timorenses presentes se terão questionado, intimamente e com alguma angústia, sobre o porquê da nossa incapacidade para fazermos do nosso país um lugar aprazível, que seja para qualquer timorense um porto de abrigo. Ou de transformamos um momento de bonança numa vida com paz.


segunda-feira, julho 24, 2006 

Notas soltas


Em Díli, mais propriamente na zona de Comoro, o tal bairro complicado da cidade, todos os dias se verificam apedrejamentos entre dois grupos distintos.
Do lado de baixo da rua, no sentido do mar, e próximo do Mercado, o bairro pertence à aldeia da Praia dos Coqueiros que começa justo na praia; os mais novos que nasceram no tempo indonésio ainda se lhe referem como o “Pantai Kelapa”, onde a maioria da população é de Lorosa´e. Do lado de cima da rua, do lado das montanhas onde vivem os de Loromonu começa o bairro de “Ai Mutin”, o das árvores brancas.
São visíveis as pedras que jazem no meio e na berma da via recolhidas e atiradas por jovens que parece que andam numa contínua demarcação de território. As tropas fazem a sua aparição e impõem respeito momentaneamente mas, daí a pouco, recomeça a batalha.
A alternativa para quem vai ao centro da cidade é ir pela marginal. Se bem que, junto à Praia dos Coqueiros, logo na curva da Pertamina, no início da Avenida de Portugal, haja agora mais movimento com o aparecimento de um mercado. Precisamente onde mora o administrador da cidade, todos os dias aumenta o tamanho do bazar com o acrescento de bancas e limpeza do terreno circundante por quem chega todos os dias e já transformou a zona em dormitório. Aí comem e dormem. As condições são precárias e a degradação consequente do ambiente e a falta de higiene é uma evidência gritante. Falam quase todos makassae, um dos dialectos de leste.
Comenta quem vê que aí pode estar outro viveiro de problemas…

E por falar de viveiro de problemas, a acrescentar a estes que o conflito ampliou, um forasteiro fez a sua aparição triunfal na capital e vai criar problemas sérios na fauna e na flora. Veio para ficar. Dá-se menos por ele, mas sabe-se da sua perigosidade. Há anos que andava pelas montanhas e o seu veneno mata qualquer animal quando se sente atacado. É estrangeiro e foi introduzido em Timor, vindo agarrado ao fundo dos tanques militares em 1999. É feio, tem pele grossa, escamada, de um castanho-esverdeado. Coaxa como as rãs normais. Mas é um sapo nojento e já anda descaradamente pelos tanques domésticos como se tudo lhe pertencesse!
Em inglês, chamam cane toad ao bicho que foi importado da América Latina para a Austrália com o objectivo de acabar com a doença da cana-de-açúcar provocado por outra qualquer bicheza. Como se esqueceram de importar o predador, o tal cane toad multiplicou-se e tomou conta de grande área australiana, onde também constitui um sério problema ambiental. Em Timor, chamam-lhe Interfet.
Mas aqui na minha rua, apesar dos Interfet, reina a calmaria. Percebe-se isso não só pelo movimento de passeantes para a igreja, de alguns postos de venda de legumes mas especialmente por uma cena apenas possível quando há tranquilidade.
Sentada sobre um tijolo a fazer de banco, uma senhora de costas voltadas para a rua, de cabeça baixa, olhos no chão, em pose de descontracção total deixava que o seu farto cabelo fosse criteriosamente manuseado por outra mulher mais jovem que catava, catava, catava…
Os piolhos deviam ser às centenas, a avaliar pelo tempo que demorou a operação.
Bendita Paz, santo Deus!

sábado, julho 22, 2006 

Maldita Crise!




Diz a Lusa que “o primeiro-ministro, José Ramos Horta, ordenou a realização de uma auditoria à administração pública para investigar eventuais casos de desfalque e roubo durante a crise político-militar no país, desencadeada em finais de Abril” e que a auditoria incidirá sobre a utilização indevida de bens do Estado e atrasos no pagamento, ou ausência dele, a funcionários contratados pelo Estado, além do absentismo nos locais de trabalho, a chegada tardia aos locais de trabalho e a baixa produtividade dos funcionários públicos.
Citando a Lusa, diz o Primeiro-ministro que "Se pretendemos servir os pobres deste país e desenvolver a economia da nossa nação, temos de ter uma administração pública que seja capaz de responder às necessidades, eficiente, produtiva e honesta” devendo os casos em que se verifique "comportamento criminoso" ser reportados ao Procurador-Geral.
É também a Lusa que diz que vários departamentos do Estado, incluindo gabinetes ministeriais, tribunais, Ministério Público e armazéns do Estado, foram pilhados, o que resultou no roubo de documentos e bens materiais que nunca até agora foram contabilizados na totalidade.
Esperemos, pois, pelos resultados da auditoria!
Quando se vive num país em vias de desenvolvimento, como é o caso de Timor-Leste, há que estar preparado para todas as contingências originadas por um qualquer agente que surge a destempo, quando menos se espera e, num instante, deita por terra o trabalho realizado. E como ainda vivemos sob o signo do improviso, é certo e sabido que no trabalho realizado não está contido qualquer plano nem programação adequados às situações de emergência ou que se sobreponham à ditadura do improviso.
Nessas alturas, vale mais apelar para toda a paciência do Mundo a que deveremos aliar a fundamental atitude do “deixa andar que tudo se vai resolver pela graça de Deus, procurando cumprir o melhor que pudermos e soubermos o ditame “tudo ao molho e fé em Deus”.
Poupemos o homem, vamos esquecer as falhas humanas, porque disso tratará a tal auditoria! Debrucemo-nos, apontemos o dedo ao medo e a insegurança provocados por uns, sentidos por outros, no período de crise, de instabilidade e de desvario que assolou o país.
Vamos pensar que tudo aconteceu em resultado da crise que transformou numa gigantesca bola de neve os percalços que, efectivamente, sempre foram parte da rotina.
Como parece que os agentes servidores se esfumaram com a crise, a culpa do homem/agente cabe num pequeno parêntesis; diga-se pois que, em situação normal, tudo faz parte do status quo dos dias sempre iguais a fazer jus ao la palissiano “ a um dia segue-se outro”, que abrange a boa vontade e a simpatia dos funcionários, bem entendido, numa perfeita aliança e num total alinhamento do agente servidor ao agente servido. Do desalinhamento dos agentes intervenientes, emergem, obviamente, razões mais do que suficientes, todas elas válidas que explicam as falhas do sistema e o desalento do agente não-servido castigado pelo seu desalinho com o status quo.
Sim, a culpa foi do status quo!
Mas, agora, modificou-se o status quo. O agente da culpa de tudo e uma vez que não há culpa humana – lembremo-nos, os homens esfumaram-se - é da maldita crise.
Sobreveio a crise mas ninguém se lembra que antes dela a qualidade de vida de 99% dos timorenses onde se incluem os refugiados roçava a pobreza extrema.
Se não fosse a crise, haveria mais segurança e o amigo do alheio só se apropriaria do que estivesse visível ou se, por falta de chuva a tempo do plantio, não houvesse alimento na horta.
Se não fosse a crise, haveria batata importada nos supermercados pelo menos nos dois dias seguintes ao da sua chegada antes ainda dos intermediários a comprarem e a revenderem como produto de Maubisse nos mercados locais.
Se não fosse a crise, as escolas estariam todas abertas e os estudantes apresentar-se-iam vestidos e penteados a rigor.
Se não fosse a crise, não faltaria o pão, das padarias aos quiosques dos bairros limítrofes da cidade.
Se não fosse a crise, não teríamos retornado à energia eléctrica racionada nos bairros onde não mora gente ilustre por tempo que varia de uma a quatro horas em diferentes períodos do dia.
Se não fosse a crise, em vez da falta de combustível porque o barco não chega, a energia eléctrica faltaria por causa do mau estado dos geradores ou da falta de manutenção.
Se não fosse a crise, em vez da culpa do barco que não chega a horas de colmatar a falha, estaríamos sujeitos à teia burocrática dos serviços públicos que se dissipa ou se complica em sintonia com o tal alinhamento.
Se não fosse a crise, eu não estaria a escrever contra o tempo porque a bateria do meu portátil não é eterna e eu não devo, agora, quando o sol já brilha lá fora, ligar o gerador e despender gasóleo que tem de ser estimado e querido com um parente ainda mais querido.
Se não fosse a crise, em vez de racionar o gasóleo, esperava-se pelo dia em que o gerador se tornaria objecto de museu, como aliás preconizou o ex-primeiro-ministro.
Se não fosse a crise, o departamento de terras e propriedades não estaria deserto nem teria as portas fechadas por terem desaparecido os computadores dos serviços, nem os documentos entregues depois do fim anunciado da dita crise noutros departamentos iriam desaparecer da secretária dos seus responsáveis.
E se não fosse a crise nunca ninguém iria perceber que os armazéns estavam cheios de equipamentos para um dia mais tarde se recordar como eram bonitos, modernos e… fora de moda.
Por causa da crise, ganham-se novas forças para não se entrar em stress; em tempo de crise, tudo é relativo, tudo é excedentário e apenas a vida conta!
Finalmente, por causa da crise, quando a defesa da vida se sobrepõe necessária e logicamente a tudo, ninguém se sente à vontade sequer para defender as banalidades que fazem parte do quotidiano de um habitante de um país em não-estado-de-crise.
Porque se ainda há quem possa estabelecer as mesmo poucas prioridades para a sua vida, outros há, a maioria, que deixou há muito de saber que tem direito à vida!
Crise, Crise, Crise! Maldita Crise!



quinta-feira, julho 20, 2006 

A cabeça do crocodilo


Ali na ponta de Lorosa´e, bem na curva da ilha de Timor, fica Tutuala, um lugar lindíssimo a convidar ao sonho, à contemplação, à reflexão…
Perdida que por enquanto está a hipótese contemplativa da Natureza, sobra decididamente tempo para a premente interiorização de uma vida em paz. Só com paz poderemos gozar prazeres tão grandes quanto o de saborear as praias de Tutuala e do Jaco.
O caminho é péssimo. A cada momento, dá vontade de desistir, de voltar para trás. Só mesmo a certeza de que temos o paraíso à nossa espera nos leva teimosamente a seguir o trilho pedregoso e estreito.
Tutuala, onde estão as famosas pinturas rupestres, como qualquer canto de Timor que se preze, tem magia… Ali, faz todo o sentido falar-se de magia especial. Está-se no princípio da ilha, na cabeça do crocodilo…
No percurso para Tutuala, aqui e além, - com destaque para Mehara, que tanto tem em comum com o comandante guerrilheiro Konis Santana - vamos marcando encontro com as parcas casas de Lospalos que escaparam à sanha destruidora do ocupante. Mal conservadas, mantêm-se altaneiras em direcção ao céu, numa teimosa demonstração de particular identidade das gentes de Oriente.
Antes ainda de Tutuala, passa-se por Iralalara. De tempos a tempos, gradualmente, a pequena laguna, pouco mais que um charco, enche-se, espalha-se e transforma-se num mar imenso que se espraia no alto do planalto. Ali se anda então de barco, se pesca e, de acordo com a imaginação popular, se vêem crocodilos.
E, depois, por um estranho sortilégio da mãe natureza, devagar, devagarinho, as águas vão desaparecendo por entre as pedras porosas que, dizem os entendidos, forram o fundo da lagoa. E recomeça novo ciclo, nova vida…
Sem querer meter a foice em seara alheia – até porque tendo bem consciência da minha total ignorância no campo, prefiro falar da beleza bucólica do sítio – parece que é por isso, pelo ciclo rotativo do enche-vaza-enche, que se estuda a hipótese de se aproveitar as águas de Iralalara para uma grande barragem que geraria energia suficiente e alimentaria Timor e as ilhas vizinhas.
Quando a Ponta Leste parecia ainda mais fim-do-mundo, se Tutuala já era terra famosa, o ilhéu do Jaco foi sempre um verdadeiro santuário.
Naqueles tempos para que os visitantes pudessem pisar aquela terra sagrada sem provocar a ira dos deuses, obedecia-se a requisitos rigorosos. Falava-se com o velho chefe da aldeia que podia ser o lia na´in que tinha acesso espiritual ao Rai Nain. Mas, nunca, nunca se deveria retirar nenhuma matéria viva do local! Lembro-me bem que uma senhora apreciadora de conchas e pedras, passou uma manhã a recolher belos exemplares mas devolveu tudo à praia, por solicitação e ao som de prece do lia na´in do sítio…
Os tempos mudaram. A modernidade e a civilização impõem-se naturalmente, e não há quem ligue a crenças de gente simples. Já ninguém pede autorização ao velho chefe de aldeia que conferenciará espiritualmente com o Rai Nain que nos deixará visitar a ilhota…
Ao tornar-se destino privilegiado de forasteiros para um fim-de-semana de sonho, Tutuala e Jaco perderam muito da sua tranquilidade até que, um dia, o governo de Timor-Leste entendeu por bem limitar as idas ao ilhéu permitindo passeios mas proibindo dormidas no local sagrado.
E foi assim que procurou fazer-se de Tutuala e Jaco paisagem protegida.
Éramos muitos, um grupo de gente divertida, constituída por portugueses e por timorenses “de dentro e de fora”, de dupla e tripla nacionalidade, desejosa de sair de Díli. Fizemo-nos ao caminho munidos de tendas, de caixas frigoríficas bem atestadas de comida e de bebida e de garrafas-termos bem cheias de café que ajudavam a aguentar as oito horas de viagem cortada aqui e além por paragem retemperadora.
Mal se vislumbra a praia de Tutuala, esquecem-se repentinamente as dores no corpo. Do outro lado do canal, situa-se o ilhéu do Jaco.
Rezam as lendas que o Jaco já fez parte da ilha de Timor. Dela se apartou quando um dia a terra tremeu. E para asseverar a verdade desta versão, há quem chame a atenção para uma particularidade. No Jaco, como em Tutuala, existe um nome comum para dois lugares diferentes: Pitilete.
É impensável imaginar-se que alguém permaneça indiferente à beleza daquele local. Fica-se literalmente boquiaberto! É um paraíso! A orla da praia está debruada de arbustos do tipo de palmeiras; a montanha que desce íngreme até ao mar é de mata cerrada, fechada sobre si mesma, misteriosíssima. Mais além, umas grutas onde parece ter-se encaixado em tempos idos o ilhéu.
Depois dos usuais “é bonito, não é?, que belo!, que lindo!, fantástico!”, acampámos, cozinhámos e contratámos uns pescadores para nos grelharem os peixes da sua pescaria.
Noite enluarada e bem dormida, com o marulhar das ondas mesmo ao nosso lado, amanhecer límpido, dia luminoso, a convidar ao banho e ao passeio… com destino ao santuário, pois claro…
Confiantes, distribuímo-nos por três beiros superlotados e fizemo-nos ao mar levados na viagem de circum-Jaco por pescadores que não se fizeram rogados!
Em cada beiro, cantava-se e ria-se alto. Com tanta algazarra, tenho para mim que assustámos os pássaros, as cobras, os tubarões, os peixinhos multicores, se calhar também as pedrinhas da praia…
Enquanto o diabo esfregou um olho, ali onde se casam as ondas do Índico e do Pacífico, o mar que até parecia calmo, ficou tumultuoso, agitado, com ondas enormes, altas, a bater-nos violentamente no corpo. Os beiros baloiçavam como casquinhas de noz.
Reparámos que um dos dois pescadores procurava em vão retirar a água que teimava em alagar o nosso beiro. Sem perceber fataluko apenas percebemos pelo tom de voz que algo não estava bem… Seguimos o olhar. Um beiro estava a naufragar. Ninguém estava à espera disso; os passageiros do terceiro beiro julgaram tratar-se de brincadeira os gestos e os pedidos de “socorro, estamos a afundar-nos!”,ao que responderam com gestos mais largos e mais alarido. Em menos de um ai, este beiro também se afundou…
O mar onde alguém vira uma barbatana branca de tubarão cortando a água era de um azul bem escuro. Felizmente a terra estava bem próxima; não havia areal daquele lado, apenas penhascos e rochas…. Mas todos conseguiram pôr o pé em terra firme e, sem honra nem glória, silenciosos, cabisbaixos, foram rodeando o ilhéu até ao ponto onde o Jaco era de novo terra benquista!
E nós, no nosso beiro, perdemos o pio. Reflectindo naturalmente na nossa insensatez e pedindo a Deus que nos levasse a bom porto.
E o mar, inesperadamente, voltou a ficar bonançoso… Prosseguimos o resto da viagem em absoluto mutismo. Já tínhamos perdido a vontade de rir. Deixámos de saber cantar!

quarta-feira, julho 19, 2006 

O ressurgir dos meios de comunicação social

Não reapareceram todos, é certo, mas a maior parte dos jornais e rádios já aí está e cada um noticia à sua maneira o que acontece no país, sempre com muito pormenor, sempre com a ideia principal repetida três e quatro parágrafos seguidos. Mas fazem falta porque nos dão conta do ambiente em Díli e nos outros distritos.
Na rádio Timor Kmanek (1) de inspiração católica, o tempo de intervenção inflamada contra o governo anterior passou, tal como o preenchimento do tempo com longas horas de música com muito sotaque brasileiro sobre Jesus.
Agora, o tempo é outro. Noticiário a horas certas - entendem uns contra a falta de rigor nas horas ou sem horas, no entendimento de outros - para além de programas em que se dá a voz ao ouvinte nos quais se sucedem os apelos à paz, à concórdia, à reconciliação, ao perdão, havendo também espaço para um conto… e até sobra tempo para as “músicas pedidas”, em que se destacam a amizade, a lembrança dos refugiados dos vários campos de acolhimento ou de alguém longínquo, aí a três ou quatro bairros de distância…
E o amor, claro, bem destacado, no topo! E é assim que a qualquer momento do dia, numa arrebatada declaração de amor, lá surge o assédio à “secretária” de um cantor brasileiro muito na moda aqui no país.
Nos dois diários mais lidos e que reapareceram há algum tempo, o Suara Timor Lorosa´e, mais à direita, e o Timor Post, mais à esquerda, abordam-se temas diversos, sem grandes preocupações de agradar ou desagradar quem quer que seja, em tétum mas também e infelizmente em bahasa indonésio.
Na semana passada ressurgiu o situacionista Diário onde se vislumbra alguma, ainda que ténue, mudança. É justamente no Diário que leio sobre os insultos, ontem, em plena sessão parlamentar, entre dois deputados, do Partido Democrático e da FRETILIN. O jornalista chama a atenção para a falta de respeito e explica as razões dos insultos. Falta de tempo para discussão de um tema assuntado – segundo a versão do homem do partido da “minoria” - mas não agendado, de acordo com o ponto de vista do deputado da “maioria”.
Por sua vez, o STL relata o aparecimento em Baucau de uma Comissão Nacional de Refugiados e Vítimas que defende e abrange as vítimas dos acontecimentos violentos de Abril e Maio e exige a criação de um tribunal que julgue os criminosos. Sempre e sempre a Justiça …
E, se a comunicação social estrangeira nos dá conta da verdadeira parada de estrelas que, de Portugal, Moçambique, Malásia, Austrália, Indonésia e Macau, vêm integrados na equipa de defesa de Mari Alkatiri e Rogério Lobato, não deixa de ser curioso o destaque dado pelo Timor Post à disponibilidade de um advogado timorense ligado aos Direitos Humanos – Adérito de Jesus, da FRETILIN-Mudança - para defender o grupo de Rai Los. O que, na actual circunstância, convenhamos, é um gesto de coragem!

(1) Kmanek - Bem, praticar o bem, bom, bonito, belo (Dicionário tétum-português do Prof. Luís Costa)

terça-feira, julho 18, 2006 

Almas de Klalerek Mutin

Todos os anos, por esta altura, para quem não vai de férias ao estrangeiro ou para aqueles que querem conhecer o Timor autêntico, é o momento de planear alguns passeios pelo país, de Lorosa´e a Loromonu, a Rai Klaran, de Taci Feto a Taci Mane.
A meio caminho de Lorosa´e, a paragem em Baucau é obrigatória. A pousada de Baucau, mais selecta, ou o restaurante Amália (quando estava aberto) e o Benfica, um destes pontos é pretexto para um café. Depois, é só escolher.
Ir a Lospalos, ver ao vivo as raras casas altas, rompendo o céu, elegantes, aprumadas, imagens de marca da região, ou embrenhar-se na mata de Loré, subir ao recôndito e belíssimo Iliomar, ir a Viqueque, a Ossu... conhecer as praias, atravessar ribeiras, reconstruir vias de comunicação …
Já há segurança, alguma, mas, por ora, alvitra-se que os passeios terão de ficar para mais tarde. Não quereria admitir sequer que serão para as calendas gregas. Isso soa-me a nunca mais…
Cada lugar tem uma história peculiar. Cada conto tem um encanto singular. E o mistério não mora ao lado, está sempre presente. O imaginário timorense transporta-nos à magia desta meia-ilha. Impõe-se preparar o espírito para “acreditar” nas histórias que serão inverosímeis noutra qualquer circunstância ou em outro qualquer lugar mas se transforma em insofismável verdade nas aldeias perdidas de Timor-Leste, onde o sagrado e o profano andam de mãos dadas.

A caminho de Klalerek Mutin, uma aldeia onde houve um massacre no tempo da ocupação, um dia, ainda Timor não era independente, houve uma procissão em que a imagem de Nossa Senhora de Fátima percorria as pequenas povoações levada aos ombros dos crentes em padiola colorida de flores vermelhas de acácias.
Na curva do caminho, do meio do mato, num lugar de ninguém - daqueles em que as sombras de árvores frondosas fazem de todo o dia de sol luminoso apenas uma pálida madrugada, porque até o sol se sente envergonhado por se dar ao despudor brilhando naquele mágico lugar - surgiu uma jovem. Um grito lancinante e o clamor ecoa no vazio: Vós que partistes em clima de dor, assomai, vinde prestar honras à Mãe de Deus!
Fez-se silêncio – o silêncio é sempre importante nestas ocasiões e sem ele não acontece milagre! - e ouve-se um zumbido distinto, mais ou menos sibilante, mais ou menos forte.
E, de repente, oh, céus!
Milhentas de moscas, mosquitos, formigas voadoras, cigarras, gafanhotos irrompem do mais escuro da mata e postam-se uns instantes, mudos e quedos no chão e aos pés de Nossa Senhora. Cumprida a vassalagem, consumada a adoração, tão depressa como apareceram, jovem e insectos, perderam-se nas lonjuras da mata.
Diz quem sabe que eram as almas errantes de quem morreu antes do seu tempo, em atroz sofrimento naquele terrível dia em que as tropas invasoras mataram indiscriminadamente depois de violar e infligir todo o género de sofrimento àquela gente de Klalerek Mutin.

segunda-feira, julho 17, 2006 

Brigada de limpeza na cidade

Quem se lembra de Díli do tempo da colonização portuguesa, a seguir à Segunda Guerra Mundial – quando tudo como agora foi destruído - , recorda-a como uma cidade pequena, limpa arrumada.
Com casas pintadas de branco, arborizada, ruas largas, cheia de acácias e gondoeiros, Díli encantava os seus habitantes que até se esqueciam de que as ruas não eram asfaltadas! Aliás, só no início da década de sessenta, as autoridades do governo local decidiram alcatroar três quilómetros de estradas… na cidade, bem entendido!
A década de sessenta, quando se construiu o novo porto, foi, se bem me lembro, o da modernização. Díli era uma cidade de casas de palapa. Aliás, as casas comerciais eram todas assim construídas porque este tipo de construção era bem mais acessível e os comerciantes, de etnia chinesa, não estavam dispostos a despender dinheiro em Timor. Até que o governador Filipe Themudo Barata decidiu impor a obrigatoriedade de edificação de casas em alvenaria. Os comerciantes argumentaram que não tinham dinheiro, mas o governador não se comoveu e eles, mesmo esperneando muito, tiveram de abrir os cordões à bolsa…
Contrariamente, Kupang, a capital de Nusa Tenggara Timur (Timor Ocidental) que era então bem mais populosa que Díli, tinha as ruas estreitas, sujas , mal cheirosas, desarrumada e com as casas encavalitadas umas nas outras. Em Kupang, não havia acesso público para as praias porque as casas dos particulares e respectivos muros estendiam-se até à beira mar.
Tão gritante era a diferença entre Díli e Kupang, que El Tari, o governador indonésio do lado de lá de Timor, dava a cidade timorense como exemplo a seguir pelos responsáveis pela administração local da província indonésia.
Díli guarda ainda umas reminiscências desse tempo de que são alguns exemplos o bairro do Farol, o Palácio do Governo e a zona envolvente, o Liceu Dr. Francisco Machado, a embaixada de Portugal, toda a zona ribeirinha que vai até Lecidere, ou a via que vai até Lahane, à residência do governador e ao Hospital Dr. Carvalho e que passa pelo antigo Mercado Municipal.
É verdade que os actuais cerca de 150 mil habitantes de Díli vivem numa cidade planeada para 20 mil… E também é verdade que se nota bem a diferença entre a cidade delineada pelos portugueses e a que surgiu no tempo da ocupação indonésia, sem qualquer respeito pelo plano de urbanização. Tal como Kupang, com as casas encavalitadas umas nas outras, sem esgotos e com ruas tão estreitas que apenas possibilitam que quem lá entre de carro saia de marcha-atrás, não havendo sequer espaço para outro carro em sentido contrário…
Perderam-se, cortaram-se as acácias vermelhas e os gondoeiros centenários, construiu-se muito e de forma deficiente, os casinhotos mal traçados - alguns deles com paredes de zinco - substituíram as casas típicas de palapa… Díli ganhou outra aparência, ficou diferente… Mais feia, mais suja, mais desarrumada…
Já no tempo da independência, com a descida dos habitantes da montanha para a cidade, as coisas complicaram-se ainda mais. À desarrumação existente, juntou-se a proliferação de mercados de rua numa total barafunda e em bem aceite convivência com porcos, cabritos, vacas…
Depois destes três meses de quase total paralisação dos serviços de administração pública, se as coisas já não andavam bem, pioraram ainda mais…
Mas hoje, verificou-se um movimento desusado, com brigadas de limpeza dispersas pela cidade limpando, varrendo, recolhendo e queimando o lixo e, claro, levantando poeira, imensa poeira!
Ali, no terreno mais nobre do centro da cidade, cedido pelo Governo de Timor-Leste ao governo português, logo ao lado do Palácio do Governo e onde há-de ser um dia a Embaixada de Portugal, – não sei quando, mas um dia terá de ser! – já se notava a diferença!
No jardim onde se vê o monumento aos Descobrimentos, se bem que as buganvílias emprestem ao ambiente um aspecto de jardim, a relva transformou-se em erva, bem alta!
Tive de passar pelas arcadas do Palácio do Governo que deveria ser um excelente cartão de visita de Timor-Leste. Bem, por ali, ainda não passou nenhuma brigada de limpeza. No local, tão vulgar como a presença de tropa internacional é o aspecto negligente do edifício.
Fez-me pena, o abandono a que está votado o palácio onde ainda continuam bem visíveis as provas da violência da manifestação de 28 de Abril, com os vidros das janelas todos partidos, as portas fechadas, e muitas teias de aranha a encher os tectos altos das varandas do Palácio…
Ai, Timor Lorosa´e!

domingo, julho 16, 2006 

Outros tempos, tempos novos!

Outros tempos, tempos novos! Pois é. Parece. Mas será que nada ou tudo parece o que é ou que quer parecer ser? "Parece” é verbo ouvido, dito, repetido à exaustão nestes dias em que a “situação” ou a “crise” pertencem a outros dias, vivendo nós, como estamos, em estado de graça…ainda que relativa.
A situação parece que tende a normalizar-se; a crise parece que foi um sonho mau, um pesadelo que parece que já passou.
Verdadeiramente certa, é só a injustiça contra uns bons praticada por uns outros dos que não parecem maus, antes se tem a certeza de que são bandidos. Aliás, um bandido é sempre o herói da facção contrária.
A população parece também ter acalmado e quase passa despercebido - já nem foi notícia! - o passeio nocturno de ninjas, mascarados e trajados de preto, que se entretêm assustando e apedrejando a população. Também nada li nem ouvi sobre um tipo de bomba, ainda que artesanal, encontrado em Tíbar que deu origem a uma intervenção demorada e cuidada dos militares australianos.
Menos ainda se falou de um história especial sobre a descida à cidade, em noite de música e diversão, de Alfredo Reinado e mais algumas dezenas de amigos. Finda a distracção, regressaram em paz, também parece, à sua Maubisse.
Parece que tudo isto são agora questões de somenos importância que fazem apenas parte da ementa de impressões que populares trocam diariamente; impressões verdadeiras, fantasiosas, mais ou menos romanceadas de quem aumenta um ponto quando conta um conto, conforme a personalidade de cada um, em mais um “parece” …
E porque em Timor-Leste se gastam todas as energias na criação e contínua acumulação de razões de divisionismo e de incompatibilidades, o que nos desune passa muitas vezes a ter mais importância do aquilo que nos une.
E, também porque parece que o tempo é outro, ontem o STL (Suara Timor Lorosae), um dos dois diários mais lidos no país, falava, pela primeira vez desde que somos independentes sobre uma questão velha mas não ultrapassada.
O STL trazia o ponto de vista de Alexandre Corte-Real sobre a utilização dos termos Maubere, Buibere que talvez divida mais a sociedade timorense do que a terminologia Lorosa´e, Loromonu. Só que é politicamente incorrecto abordar-se o assunto…
Alexandre, que é de uma família conhecida de Ainaro, na zona Rai Klaran de Timor-Leste, alerta para a relevância e tendenciosidade do termo. Passando pelas motivações que encorajaram a criação deste termo para ilustrar o povo timorense numa determinada e conturbada época da nossa História não tão antiga quanto isso, Alexandre esclarece que Maubere e Buibere, nomes próprios e termos vulgares na zona mambai são desconhecidos em outras zonas como a dos fataluko, makassae e bunak, entre outros.
Recorrendo à multiplicidade étnica, cultural e partidária para reforçar o seu ponto de vista, diz Alexandre que este é um conceito que está ultrapassado e não apenas no tempo: não abrange a totalidade dos timorenses. E isto porque, sendo a sociedade timorense fortemente hierarquizada, na uma fukun (1), nas suas uma lisan (2), se Maubere, Buibere nomes próprios ou conceitos que se aplicam ao proletariado, há que considerar ainda, para além deste, o Naibere, Usibere que dizem respeito aos nobres e liurais.
Aludindo à carga partidária deste termo, se as palavras Maubere e Buibere servem ou agradam aos simpatizantes de uma determinada força partidária, para além da confusão entre cultura, tradição e ideologia já criadas, Alexandre questiona onde ficam os que não se revêem neste conceito nem nessa ideologia. Acrescenta então que Maubere e Buibere não têm nada a ver com a cultura original, são acrescentos que desunem, apartam e esquecem. A título de exemplo, aponta de entre os excluídos os uaima, naueti, makassae, kemak ou bunak.
E finaliza sugerindo que se descubra um termo nacional, que abranja o país na sua totalidade e não discrimine quem não é da zona mambai.
Já que estamos a viver outros tempos, novos tempos, este parece um bom pretexto para debate e solidificação da unidade que todos dizem advogar para Timor-Leste.

(1)uma fukun – casa ancestral
(2(uma lisan -Cerimónias, tradições, usos e costumes

sexta-feira, julho 14, 2006 

Somos de Lorosa´e! Silêncio!

As ruas da cidade estão mais coloridas. Da avenida do Aeroporto indo pela marginal até Lecidere, sucedem-se os cartazes de cores vivas com símbolos que fazem parte da alma timorense, como o kaibauk* ou o crocodilo.
Os cartazes expostos podem sugerir um esforço menor na busca de soluções para esta crise. Talvez também sugiram algum folclore. Talvez tudo pareça muito provinciano, básico, primário, primitivo, suburbano; mas os timorenses apreciam estas coisas. Porque para interiorizar uma verdade, há que vê-la, sentindo-a também pela alacridade das cores, por uma mensagem que lhes toque o coração. E porque identidade também é isto. Não vale a pena disfarçar.
Em tétum, apela-se à paz, à serenidade e à unidade; lê-se que é tempo de aprofundar a amizade, de nos reconciliarmos porque somos todos timorenses, somos um só país, de “Taci Feto a Taci Mane. Por isso, é urgente parar com a violência e deixar de incendiar, até porque todos juntos vamos ganhar a luta pelo desenvolvimento e, porque, obviamente, um país não se constrói com sangue mas sim com inteligência.
Admito que me tenha escapado, mas não vi nada referente a Lorosa´e e a Loromonu. Não compreendo porque se faz disso tabu. Parece-me importante e urgente relativizar atribuindo a estas expressões apenas a importância que têm enquanto divisão geográfica. Apenas isso.

A Benigna é uma jovem de Waitalibu, uma aldeia de Venilale, no distrito de Baucau e vive em Díli, na zona de Fatu Meta, onde o conflito pode surgir do nada, sem razão nem hora marcada. Perguntei-lhe como estava o clima no bairro. Respondeu-me num tom de voz sereno.
- Ontem, apedrejaram-nos a casa. Um grupo de rapazes muito jovens provocavam-nos e gritavam, queriam que lhes disséssemos de onde éramos. Queriam um pretexto para nos incendiarem a casa. Mas nós não lhes demos esse pretexto. Mantivemo-nos em silêncio. Desistiram. Porque não nos ouviram falar.
De repente, despertei para o sotaque da Benigna que fala de uma forma cantada, como só fazem os habitantes de Leste. Uma conversa cantada que me trouxe à memória o sotaque da minha mãe, também ela de Waitalibu, ali em Venilale.
A minha mãe era uma mulher discreta, contida. Tal como a Benigna, também ela falava, entoando a palavra num canto sereno, tranquilo… mas não me lembro nada de que a discrição, a contenção, a sobrevivência, a vida da minha mãe tenha ficado alguma vez sujeita ao silêncio!

quinta-feira, julho 13, 2006 

Campo de Refugiados no Hospital Nacional


Os jardins do Hospital Nacional Guido Valadares, logo no início da era da independência, eram um vasto campo de erva altíssima. Um perfeito viveiro de mosquitos.
No início, os vidros estavam partidos, as camas eram quase inexistentes, os lençóis rareavam, as casas de banho eram cubículos imundos e o chão não era limpo. As consultas externas faziam-se sem ordem. E os doentes preferiam curar-se ou morrer em casa…
Inevitavelmente, comparo este Hospital Nacional com o de Bucareste, que visitei em 1995. Recordo que aí me fez muita impressão olhar para as batas sujas de sangue usadas pelos médicos e para as encardidas e imundas que as enfermeiras envergavam. Isto, sem falar da sujidade impregnada nas paredes, nos tectos, no chão… Não, apesar de tudo, o de Díli estava uns pontos mais acima daquele!
Passou algum tempo. E com o tempo, antes da crise, os jardins de erva ruim transformaram-se em espaços verdes de bem cuidada e aparada relva.
A reconhecida dedicação e envolvimento dos profissionais de saúde, de que se realçam os enfermeiros formados no tempo português, e o aumento gradual de médicos internacionais vindos de vários cantos do Mundo – com especial destaque para as mais de uma centena de médicos cubanos – provocaram, obviamente, uma mudança qualitativa. Tudo melhorou e, se não tínhamos uma unidade de primeira classe, também é verdade que não se podia considerar o hospital nacional uma espelunca. Pelo menos, não nos envergonhava!
Agora, o panorama é completamente diferente.. O cheiro a éter, a desinfectante, desapareceu e deu lugar a um cheiro desagradável que nos entra pelas narinas, fruto das más condições sanitárias em que vivem os deslocados no imenso campo de acolhimento em que se transformou o hospital. Mistura-se com o cheiro do fumo das largas dezenas fogueiras espalhadas por todo o espaço deixado vago pelos novos moradores.
As tendas brancas enchem todos os espaços relvados disponíveis entre os diversos pavilhões térreos que acomodam os muitos departamentos do hospital.
Mas não só tendas: as varandas estão pejadas de colchões, de mosquiteiros, de gente. De imensa gente. Homens e mulheres de todas as idades; e crianças, muitas crianças!
Vêem-se muitos médicos, poucos enfermeiros, pouco pessoal auxiliar, poucos profissionais de limpeza. A ala das consultas externas está às moscas.
Não se destrinçam doentes e refugiados.
Os corredores são percorridos por uma mole de gente de mãos vazias ou carregada de sacos de plástico, de legumes trazidos do mercado da rua em frente e que num vaivém incessante dificulta o trabalho dos profissionais de saúde.
Uma dona de casa diligente cozinha a refeição da família num espaço exíguo do pedaço do chão que lhe coube em sorte para cozinha. A lenha amontoa-se noutro cantinho e a panela está colocada sobre três pedras que fazem as vezes de fogão. As crianças brincam por ali perto e remexem despreocupadamente nos caixotes de lixo do hospital. A roupa estende-se sobre os arbustos.
Há vários mini-muito-mini quiosques, melhor dizendo, há muitas caixas de papelão colocadas em cima de uma mesa de plástico a fazer de balcão de loja. Aí se vende, entre outras coisas, água, fruta, cigarros, supermin (massa chinesa instantânea que deu origem ao epíteto sarjana supermin utilizado pelo ex-Primeiro-Ministro para ilustrar os licenciados no tempo da Indonésia).
Enquanto estava na fila para me aviarem uma receita médica, vi a tal dona de casa diligente vender três cigarros a um segurança. Recebida e colocada a moeda de valor superior numa lata vazia de leite em pó, é o momento da troca com a saída de outra moeda inferior entregue carinhosamente ao mais velho e menos esquelético dos dois filhinhos que brincavam, saltando sobre o colchão estendido na varanda. Alegre, rindo-se, o garoto correu em direcção ao papelão seguinte com rebuçados, tangerinas e chocolates. Ali estava outra diligente dona de casa sentada de cócoras enquanto metia na panela alguns legumes para o almoço. Braço esticado, recebida a moeda, mini-chocolate entregue ao rapazito que retorna e divide a guloseima com o irmão.
Por todo o lado, se vêem mulheres lavando os utensílios da cozinha e a roupa em qualquer canto onde há água que também é recolhida em garrafões de plástico depois levados para aárea interna dos seus abrigos.
Cá fora, a confusão não é menor. De um lado, estão as tendas de campanha dos militares australianos. Do outro, estão os tanques de guerra.
As duas entradas e saídas do hospital ficaram confinadas a um só portão onde apertada segurança pede a identificação a todos quantos entram no hospital. É estreita a via e daí resulta o caos no trânsito a que se acrescentam as apitadelas dos impacientes. Na rua, em bancas improvisadas, espalha-se o mercado. Os táxis e as microletes param onde lhes dá mais jeito. E as pessoas andam no meio da via. Como em 1999.
Perguntei a um profissional de saúde como é que eles podiam trabalhar no meio daquela balbúrdia. Sorriu e não proferiu nenhuma palavra; preferiu antes soltar um longo suspiro!
Reparo, então: laboriosamente, num canto ainda desocupado, um jardineiro continua a aparar a relva…
Ai, Timor Lorosa´e!

quarta-feira, julho 12, 2006 

Quem tudo quer… tudo perde!


Em algumas das encostas montanhosas de Timor-leste, mais propriamente nas que se situam próximo do leito de ribeiras, existem algumas grutas que são, muitas delas, verdadeiras obras de arte de estalactites e estalagmites.
No tempo da ocupação, porém, muitas dessas grutas foram vandalizadas porque os indonésios acreditavam no poder curativo e, dizem, afrodisíaco das estalactites e estalagmites e quase as destruíram. Reduziam-nas a pó que depois ingeriam. Desconhece-se se a magia das “pedras” transmitiram um pedaço que fosse de delicadeza e de ternura àqueles seres de espírito tortuoso e agressivo!
Essas grutas, húmidas, fascinam os curiosos que adivinham mistérios em volta daquelas “pedras” estilizadas pelo tempo. Para lá delas, acredita-se, há caminhos secretos que transportam os iluminados pela sorte até ao centro da Terra. E os enchem de ouro e pedrarias! De sabedoria!
O centro da Terra ou morada dos deuses é inacessível ao comum dos mortais. E o lado mais fundo da sua antecâmara, a gruta, está igualmente vedado aos seres comuns. Apenas se pode permanecer na sua parte frontal, do que está escancarado ao olhar de todos! Mas, ai de quem tenha a veleidade de passar a fronteira! Desafortunado de quem vislumbrar a morada, mesmo que ao acaso, sem a aprovação dos deuses que ali moram!
Em Timor-Leste, os deuses, a quem também há quem chame Rai Nain, ou seja, os donos da Terra, tomam as formas mais variadas. Manifestam-se sob natureza diversa, da árvore, à água, à pedra… Podem ser homem, mulher, cobra, crocodilo…
Ora numa gruta quase no sopé de uma zona montanhosa, de vegetação luxuriante, com cheiro a café e a canela, de bambus a menearem-se suavemente pelo sopro do vento, bem próximo de uma ribeira afluente da Lóis, viviam os deuses ou Rai Nain que aí tomam a forma de cobra. Não são grandes, asseveram os habitantes da zona, mas possuem um “corpo” volumoso num tronco relativamente curto. Sabe-se que são deuses, diferentes das demais jibóias que por ali pululam, porque têm um sinal a diferençá-las das suas súbditas cobras.
O macho, o Bere-Heto, ostenta acima dos olhos um sol de oiro. A fêmea, a D. Maria, é ligeiramente menos rica, uma vez que apenas ostenta uma lua, igualmente em ouro. Ambas são majestosas, veneradas naquela zona próximo da qual até as vozes viram murmúrio, os risos perdem a intensidade, as cabeças se curvam em sinal de respeito!
Um dia, um jovem trabalhador rural de nome Eugénio, filho único bem querido, bem parecido, alto, namoradeiro e cobiçado pelas feto-ran*, da zona, entendeu querer apropriar-se do sol de oiro de Bere-Heto. Ambicioso, pensou que assim se tornaria muito e mais depressa do que se seguisse o curso normal da vida rico para casar com mais do que uma mulher! Pelo menos duas! E ele até já as tinha debaixo de olho!
Fez-se a caminho, de madrugada, acompanhado do seu cão de guarda, cuja tarefa era justamente a de matar o deus-cobra.
Surpreendido no interior da gruta pelo seu imponente morador, Eugénio titubeou mas respondeu às perguntas de Bere-Heto. Confessou-lhe os seus intentos. E, bem assim, os seus anseios de homem viril, inquieto, ávido por feminina companheira.
Bere-Heto não teve qualquer tipo de complacência e, logo ali, envolveu o cão no seu curto mas musculado corpo, partiu-lhe os ossos, transformou-o numa massa disforme e dele fez a sua refeição do dia.
Permitiu, contudo, a Eugénio, que voltasse a casa. Apenas lhe impôs silêncio. Mas Eugénio relatou a história à mãe, pedindo-lhe o máximo segredo, não fosse ela também vítima de castigo do Rai-Nain Bere-Heto!
E a mãe falou ao pai. E o pai contou a um amigo… O segredo deixou de o ser; os curiosos desrespeitosos irromperam pela gruta adentro na expectativa de ver Bere-Heto e D. Maria que tiveram de se exilar para o mais profundo do centro da Terra até que os mortais se convencessem de que tudo era apenas fruto da imaginação de Eugénio e de sua mãe.
Porém, Eugénio nunca foi mais foi o mesmo. Tornou-se triste, perdeu a exuberância que era sua imagem de marca. Passados uns tempos, depois de um longo período de apatia, de desinteresse pela vida, Eugénio partiu, deixando os pais entregues à dor profunda de o perder.
Em sonhos, o deus-cobra explicou à Sofia, angustiada mãe de Eugénio o porquê daquele castigo exemplar. Falou-lhe à razão, que o coração de Sofia, esse, de tão completamente partido, ficara incapaz de ouvir o que quer que fosse…
Disse-lhe que Eugénio tinha o sustento garantido para o resto da Vida. Era só manter o trabalho! Que ia conseguir duas mulheres, pelo menos. Mulheres, mães dos seus filhos, estavam destinadas a ser o consolo dos dias da sua velhice, preparadas para lhe dar carinho e aquecê-lo nas frias noites da montanha. Bere-Heto acrescentou até que Eugénio iria ter dinheiro suficiente para pagar o barlaque, comprar vacas, cabritos e porcos e dois terrenos, um para cada uma das esposas.
- O problema, Sofia - disse Bere-Heto à mãe chorosa - é que Eugénio foi demasiado ambicioso. Não soube dar tempo ao tempo. Não quis esperar. Não olhou a meios para atingir os fins. Nem sequer reflectiu sobre o resultado das suas acções e predispôs-se a matar-me e à D. Maria! Não cuidou de saber da vossa dor. Apenas pretendia riqueza, ouro, poder.
Sofia, posso ajudar quem me procure, quem invoque o meu nome. Só não perdoo quem mate em nome da ambição pela riqueza e pelo poder. A esses, Sofia, aplico o castigo máximo: Quem tudo quer, tudo perde!

* Feto ran- donzela, adolescente

segunda-feira, julho 10, 2006 

Novo Primeiro-Ministro, novo estilo

Um olhar de relance ao discurso da tomada de posse neste dia do “Ano de Cristo” chega para se perceber que o Dr. José Ramos Horta quer marcar a diferença do anterior titular no cargo de Primeiro Ministro.
O Dr. Ramos Horta privilegiou tudo quanto o Dr. Mari Alkatiri e o seu Governo consideraram supérfluo, talvez ultrapassado, retrógrado, provavelmente inadequado para os dias de hoje e, por isso mesmo, marginalizaram, menosprezaram, escarneceram, esqueceram.
Se tivesse de seleccionar algumas ideias de Ramos Horta que ilustrassem as diferenças, destacaria a aproximação à Igreja Católica no convite para “assumir um papel maior na educação e formação do povo”, - há alguém que tenha esquecido as motivações das manifestações de Maio de 2005? - a atenção especial à juventude, o apoio e a promessa de “restaurar a dignidade e o poder moral e secular dos Liurais”.
Para “dignificar a pessoa humana”, o Dr. Ramos Horta quer “um governo para os pobres”, pretende que este seja “arrojado na luta contra a pobreza”; quer “dar-lhe esperança, de comer, vestir e um tecto”.
O Dr. Ramos Horta falou para o timorense simples porque sabe que o povo preza quem lhe dá importância – especialmente se essa consideração lhe é dispensada por um nai-ulun -e, sendo o timorense um “povo profundamente espiritual cujo dia a dia é inspirado e influenciado pelos espíritos do passado e por crenças sobrenaturais que se confundem nas crenças cristãs”, aprecia quem enaltece o Divino. Por isso se dirigiu tantas vezes a “Deus Nosso Senhor”, pedindo a esse mesmo Deus que o guie de molde a não “trair a confiança e as manifestações de amizade e apoio de gente muito simples deste nosso grande Povo”.
Também por isso não se estranhe que o novo Primeiro-Ministro entenda que “Não podemos importar ou impor modelos modernos... e assim perturbar essa simbiose animista-cristã timorense”. Nem sequer que o Dr. Ramos Horta tenha declarado não poder “infelizmente” dizer “que aprendeu muito com o seu “velho amigo e combatente de luta, o Dr. Mari Alkatiri
durante os quatro anos de governação”, mesmo considerando que o Governo por ele dirigido foi “sempre pautado pela prudência e lealdade ao povo que ele realmente ama…”.
Ouvi depois a sua entrevista à RTTL. Ramos Horta aposta no diálogo; afirma que as portas do Palácio do Governo estarão sempre abertas para todos, sem exclusão de ninguém; realça uma vez mais os pobres, os jovens, os desempregados.
As expectativas são elevadas, os tempos estão difíceis, o povo timorense não esquece as promessas e o Dr. Ramos Horta tem para já, de mostrar que não tem nada a ver com o estilo de governação inacessível destes quatro anos e tem apenas nove meses para cumprir os seus propósitos e não defraudar a confiança dos timorenses, dessa “gente muito simples”.
Não é tarefa fácil!

domingo, julho 09, 2006 

E, todavia, tudo voltou ao normal…

Aparentemente, a situação está mais calma. Os mercados exibem as suas bancas de legumes e fruta. Só é pena é que o número de compradores não corresponda à diversidade exposta!
Como nos bons tempos de tranquilidade, as ruas transbordam de gente. Os mais jovens movimentam-se nas bicicletas numa deambulação sem fim, para a frente, para trás, às voltinhas... As meninas volteiam nas suas saias curtas, blusinha e calças à moda. A sedução anda à solta! É tempo dele, reconheça-se. Viva a juventude!
Na marginal, desde a praia dos Coqueiros à praia da Areia Branca, a maré baixa é pretexto para a apanha de frutos do mar, com famílias inteiras munidas de balde horas a fio em busca de um qualquer ser minúsculo vivo que sirva de ementa do jantar.
Polícias australianos iniciaram ontem a reposição de alguma ordem no caótico trânsito de Díli, obrigando ao retorno do cumprimento de regras de trânsito no qual a falta de civismo é apenas um reflexo da total anarquia que reina no pais, em que ninguém parece respeitar ninguém.
Na cidade há patrulhas periódicas de militares. Portugueses, australianos, malaios e neo zelandeses percorrem de carro ou a pé as principais vias de comunicação da capital.
Ainda na marginal, próximo das embaixadas, reapareceram os restaurantes de fim de tarde – entenda-se, restaurantes de rua, junto à praia - onde se podem experimentar sassatis ( espetadas de carne com molho de soja e tamarindo), peixe grelhado, milho verde assado, ao mesmo tempo que se aproveita para se pôr a conversa em dia. Saber do parente, da casa, do perigo, da paz… Mas, também aqui, a clientela especialmente constituída por timorenses, não voltou a atingir o número de outras tardes mais animadas.
Tudo tão calmo, tão sereno… tanta quietude cortada apenas por vozes que falam baixo, riem baixo, num condizer perfeito com o sussurrar do vento e das ondas do mar, imagens vulgares de tardes de calmaria de Timor-Leste… Tanta calmaria que até a vaca que pastava no campo voltou a ocupar o seu lugar por zeloso dono que acredita estar afastado o perigo de apropriação do animal por amigos do alheio!
Os espaços mais reservados e mais cosmopolitas são escolhidos por outro género de pessoas. São gente de fora e de dentro, com outro poder de compra, outras solicitações e outros interesses. Aí, onde se reúnem os experts da questão timorense, as conversas são ainda mais sussurradas, de meias palavras, de leitura nas entrelinhas... Com outro requinte, outra sofisticação e também outra segurança ali se discute, ali se traçam os planos individuais que cada um adivinha - e tem a certeza! - de ser o melhor para o país. Agora que o futebol ainda está na ordem do dia, também não ficaria mal se lhes fosse dado o epíteto de treinadores de bancada.
Numa dimensão divergente estão os outros. Aqueles que não têm nem cinco cêntimos para a maçaroca de milho verde assada, os que se deixam ficar em seus casinhotos, receosos de que alguém possa descobrir um qualquer elo de ligação, mesmo indelével, com alguém de Este ou Oeste, versão aceite e insípida do que é hoje politicamente incorrecto pronunciar-se, de Lorosa´e ou Loromonu. Estes estão mais atentos. Em guarda.
Aqueles que deixaram as suas casas para trás em busca de alguma segurança fora de portas da capital, provavelmente esperançados de que nada lhe acontecerá ou, então de que mais vale salvar a vida antes dos bens materiais – esses, porque estão ausentes, apenas podem confiar na Providência divina.
A distracção é geral, as ruas estão guardadas e patrulhadas, tudo voltou ao normal, mas a insegurança mantém-se, silenciosa mas infelizmente presente; os incêndios às casas continuam, nos becos como em algumas vias principais, estas porventura desprovidas momentaneamente de patrulha. O tempo suficiente para atear o fogo e destruir tudo.
E, todavia, tudo voltou ao normal…

sábado, julho 08, 2006 

Música e poesia nos campos de refugiados



A vida não é fácil nos campos onde os refugiados vivem em condições precárias.
São cerca de 150.000 pessoas deslocadas, refugiadas, com medo de voltar para casa.
Há risco de doenças e de fome.
O Programa Alimentar Mundial alertou já para o facto de estar a ficar sem reservas alimentares, que se esgotarão em semanas, correndo o país o risco de passar por uma situação prolongada de fome. É ainda o PAM que diz que a alimentação distribuída aos refugiados começou a ser racionada.
Nos colégios, seminários e igrejas, os refugiados ocupam todo o espaço disponível. Dormem em espaços abertos, amontoados, numa confusão que certamente não queriam e que tem provocado alguns desaguisados que só mesmo um resto de bom senso dos próprios refugiados e a intervenção de quem lhes dá guarida tem conseguido deter.
Em alguns campos, são as tendas que lhes servem de tecto. Aí, talvez tenham mais privacidade. À frente de cada uma delas, pode ver-se uma cozinha improvisada, garrafões de água, um conjunto de cadeiras de plástico e mesa respectiva a ocupar a parte frontal da tenda.
Mulheres na azáfama diária do que pode caricaturar-se como a limpeza da casa, muitas crianças e um mercado de rua, completam o quadro dos campos de refugiados de Díli.
Totalmente superlotados de quem não têm nada que fazer há dias, meses a fio, os campos são autênticos viveiros de problemas.
Um grupo de jovens activistas, poetas, pintores, licenciados, todos eles tendo vivido e experimentado situações difíceis - ou trabalhando junto dos refugiados em 1999, ou convivendo com a morte de familiares, ou com uma intervenção política mais activa durante o tempo da ocupação dentro e fora do país – compreendeu bem a dimensão do problema e entendeu ser altura de voltar ao campo de trabalho, prestando assistência a quem precisa.
Durante a semana trabalham. Por isso, é aos sábados e domingos que actuam. Seleccionam de entre os campos os que devem ser visitados em cada dois dias de fim-de-semana. Têm pouco tempo para preparar o desempenho.
São um grupo sem nome. Estão interessados unicamente em minorar a aflição dos que vivem em tão precária situação há tempo demais, defendem. Uniram-se num único objectivo que absorve todo o tempo que têm livre e, integralmente empenhados, embrenham-se no trabalho a que se propuseram.
A Cris, o Abé, o Yah-Yah, o Budi, o Gil e o France procuram levar algo diferente que distraia adultos e crianças. Alguma alegria que os afaste da tristeza em que se sucedem os seus dias. Conversam, dizem poesia, cantam, ensinam a pintar. Brincam com as crianças. Distribuem sorrisos. E simpatia. E convidam, envolvem quem visita generosamente os refugiados a juntar-se-lhes. Desafiam-nos às gentes de nacionalidades diferentes a dizer poesia ou a cantar numa língua que não é a sua.
Ali se canta, se lê, se diz poesia, se ri, se contam histórias. Cumpre-se a função! Fins de tarde, fins-de-semana nos campos dos refugiados de Díli.

sexta-feira, julho 07, 2006 

Cultura urbana?

A formação em Timor de uma sociedade urbana cosmopolita e moderna ainda está na infância. Díli não é uma verdadeira cidade, mas uma aldeia grande, ou um estreito canal de comunicação das aldeias timorenses para o mundo, e numa situação de crise, como esta que temos vivido, compreende-se imediatamente que não há uma identidade colectiva citadina minimamente resistente (o tipo de solidariedade que os urbanitas de Nova Iorque mostraram ao mundo pela forma como reagiram aos ataques de 11 de Setembro de 2001 é algo de impensável aqui). Em muitos países do mundo encontramos culturas urbanas e culturas rurais com grande vitalidade que ora se complementam ora se chocam dentro de um mesmo Estado; cá em Timor quase só a cultura rural tem realmente força, razão porque as famílias conservam as raízes bem ancoradas no knua de onde são originárias na montanha, prontas para recuarem para aí quando as coisas se complicam. Uma parte significativa dos habitantes de Díli está cá há poucas gerações, ou chegou na última década, e foram poucas as pessoas que encontrei nestes últimos dois meses que me disseram que não iriam fugir nem mandar parte dos seus para a montanha por não terem aí ligações. Para muitos jovens que crescem em Díli o resultado disto é que andam um bocado à deriva, já não integrados em pleno na cultura das uma-lulik (casa sagrada), dos makaer-lulik e lia-na’in (anciãos guardiães da tradição), e sem uma cultura urbana bem estabelecida à qual aderir.
Uma das grandes derrotadas nesta crise que assolou Timor-Leste é assim a cidade de Díli.
A fragilidade da incipiente cultura urbana timorense tem raízes históricas. Aqueles que não vêem uma única coisa positiva na experiência colonial deverão considerar a colonização de Timor Oriental pelos portugueses como exemplar, já que primou pela ausência e pela pouca interferência nas estruturas sociais e culturais timorenses. Assim, durante muito tempo as elites locais continuaram a ser apenas os membros da aristocracia tradicional, não se tendo formado o tipo de elite crioula que surgiu por exemplo em Angola no séc. XIX e é descrita em romances como “Nação Crioula” e “A Conjura” de José Eduardo Agualusa. Se olharmos para D. Boaventura, chefe da mais emblemática revolta contra o poder colonial português, e apontado por alguns como “pai” do nacionalismo leste-timorense, vemos fundamentalmente o líder de uma revolta nativa, sem uma classe urbana engajada a produzir textos nacionalistas ou doutrinários. Faltava provavelmente ainda na época um grupo significativo de filhos do Império com um nível de educação suficiente para teorizarem a revolta. Algo bem diferente do que aconteceu nas Filipinas, país do Sudeste Asiático socio-culturalmente muito mais próximo de Timor-Leste do que a Indonésia, no qual surgiram líderes nacionalistas da craveira de José Rizal (autor de romances de grande qualidade como Noli me Tangere (1887) e El Filibusterismo (1891) nos quais denunciou os excessos da Igreja católica e das autoridades coloniais espanholas). Mas as Filipinas são mais de 7000 ilhas, que constituíram uma parte importante das possessões coloniais de Espanha, enquanto Timor sempre foi um pequeno espaço na periferia do império. Uma situação também muito distinta da que permitiu o desenvolvimento de Singapura, local axial das rotas comerciais do império britânico e palco de actuação de uma dinâmica e numerosa classe comercial de etnia chinesa. Os que dizem por vezes que Timor pode tornar-se numa outra Singapura não conhecem a realidade timorense.
Mas agora que há em Timor cerca de duas dezenas de entidades que se auto-intitulam de instituições de ensino superior, vamos ver se Díli se transformará enfim numa verdadeira cidade…

quinta-feira, julho 06, 2006 

Domingos, vendedor de tangerinas


Em Díli, para além da banca do mercado, a fruta é vendida nas ruas por vendedores ambulantes que transportam a mercadoria presa por fitas de plástico de várias cores a um tronco de madeira que trazem atravessado sobre os ombros.
Tal como quase todos os vendedores ambulantes de fruta, Domingos tem 14 anos, muito franzinos, e estuda. Cabelo crestado do sol, olhar vivo, empoeirado…
Viu uns carros por perto e ei-lo em grande correria, vendendo o seu peixe, que é como quem diz, as suas tangerinas.
Ao sol escaldante do meio-dia, Domingos corre em direcção às potenciais compradoras.
Sorriso aberto, atira: Tangerina! Tali ida, satu dólar (1).
Aviso-o de que é melhor dizer-me em tétum o preço da fruta. Não sei falar bahasa indonésio, explico.
Nem pensa duas vezes e atira de novo, desta vez com o preço em bom português, tali ida, um dólar!
Cada corda tem quatro a cinco tangerinas e o preço varia de acordo com o tamanho. Grandes, um dólar, pequenas, 50 cêntimos.
Resolvo conversar um pedaço com ele.
- Não achas que estás a vender demasiado caro?
- Pois é, majemenus,(2) mas é que eu já as compro caras…
- E eu ainda ontem te comprei três cordas!
Ensaia um ar de enfado. Percebe imediatamente que não é por aí. Muda o ar. Envereda por outro atalho. Agora temos a versão cansaço. E pede-me:
- Tia – entendo logo que já não tenho idade para ser tratada por mana… - compre-me lá uma corda deste lado e outra daquele, diz apontando para as extremidades direita e esquerda do tronco que traz atravessado sobre os seus frágeis ombros. Isto está muito pesado!
Corpo franzino, ombros frágeis, costas curvadas… percebe-se o que lhe custa suportar o peso que traz!
Faço-lhe a vontade. São todas iguais, mas entro no jogo, pergunto se são doces ( oh, sim, muito doces!) peço-lhe e ele permite-me que escolha as cordas de tangerina. E depois ficamos a conversar um pedaço.
- Olha lá, com esta insegurança, porque não ficas em casa?
- Porque preciso de estudar e tenho de arranjar dinheiro para isso. E também para a família .E ainda porque agora “estou de feriado”.
- E não tens medo?
Sim, diz-me que sim. Mas tem de “buka vida, fila liman” (3)…
Domingos dá a conhecer o seu dia-a-dia. Pernoita em casa de um tio em Taibessi, de madrugada faz a pé alguns quilómetros até Lekidoi (localidade a caminho de Aileu) onde compra as benditas tangerinas, melhor dizendo, onde vai buscar as tangerinas de uma árvore já comprada e reservada mal se adivinha a qualidade e a quantidade da fruta na época. Volta para a cidade. Só regressa a casa do tio depois de vender tudo. A sorte, disse-me ainda, é que não lhe incendiaram a casa!
Desprendida a língua, revela que em dias de sorte chega a vender entre dez e quinze dólares, só que, uma boa parte é para o dono da tangerineira lá em Lekidoi. A ele, à sua família, cabe-lhes apenas uma pequena comissão…
Naquele intervalo e de uma só assentada, Domingos sentiu os seus ombros aliviadas de oito cordas de tangerina.
E amanhã, como será? Bem, amanhã, é outro dia!

(1) Tali ida, satu dólar – uma corda, um dólar
(2) Majemenus – versão timorense de mais ou menos
(3) buka vida, fila liman – fazer pela vida, fazer negócio

 

Bandeiras

Agora que as esperanças de ganhar um Mundial de futebol ficam adiadas para outra oportunidade é previsível que se vejam menos bandeiras portuguesas ao vento aí por esse mundo fora. Mas por cá por Timor vão continuar. Isto porque as bandeiras cumprem aqui uma outra função muito importante, que é mostrar quem somos. Logo que começou a violência em Díli, com grupos de jovens a apedrejar viaturas que passavam nas estradas, e se percebeu que os portugueses não estavam a ser escolhidos como alvos, toda a gente oriunda da pátria lusitana, ou ligada de alguma forma a ela, desatou a pôr nos carros autocolantes grandes da cooperação portuguesa, ou bandeiras (de pano ou imprimidas do computador), ou cachecóis da selecção. As agências de apoio humanitário das Nações Unidas também trazem as suas bandeiras a esvoaçar nos carros, bem como algumas ONGs que de facto estão a trabalhar no apoio aos refugiados.
A GNR tem os seus carros próprios, bem assinalados, que constituem um factor de dissuasão do crime pelo seu mero aparecimento em qualquer lugar onde haja complicações.
Curiosamente não se vêem muitas bandeiras da Austrália... Talvez isso esteja relacionado com o facto de os nossos vizinhos terem considerado que Timor tinha passado a ser um "Estado falhado" numa situação de caos, e terem retirado quase todo o seu pessoal civil, e feito esforços para que a ONU lhes seguisse o exemplo. O que levou a que a economia timorense não tivesse estagnado completamente graças ao esforço discreto, mas muito significativo, de gente como o pessoal do BNU, que continuou a assegurar a circulação de dinheiro, permitindo o pagamento de salários, por exemplo, numa altura em que os timorenses bem precisavam deles.
Ou talvez alguns australianos não se sintam com muita certeza de que o papel da Austrália em toda esta situação é o mais correcto...

quarta-feira, julho 05, 2006 

Webikas ou o milagre das águas

Webikas é um pequeno lugarejo que se situa para os lados de Natarbora, no distrito de Manatuto, que já foi Lorosae e agora passou a Loromonu.
Nessa povoação quase desconhecida, pouco povoada, os habitantes são ligeiramente diferentes dos outros timorenses, de pele e cabelos mais claros a que se juntam olhos por vezes castanho-esverdeados ou azulados.
Diz a lenda sobre a criação de Webicas que, a meio da tarde, duas jovens de um povoado, cumprindo as tarefas rotineiras de casa, foram ao poço buscar água para o jantar.
Cobiçadas no lugar, conscientes da sua beleza, entre risos, conversas e gracejos, as moças deitaram o balde para o fundo do poço, esperando ver como sempre, reflectidas naquela água as suas caras morenas, olhos bem escuros, cabelos negros de azeviche, brilhantes e cheirosos de bem espalhado óleo de coco…
Splash!!! Splash!!!, fez o balde lá no fundo!
E, oh, céus! Em vez das suas, as raparigas viram espelhados nas águas os rostos de dois jovens completamente diferentes delas! O seu aspecto físico era-lhes desconhecido. Cor leitosa, de cabelos da cor do sol dourado, de olhos entre o verde e o azul do mar…
Ah, a terrível atracção dos opostos! Deu-se o milagre!
Foi pela magia, disseram elas. Os jovens pelos quais as raparigas se apaixonaram num só instante, estonteados de tal paixão, do fundo daquelas águas, engravidaram as meninas através da imagem reflectida. Nove meses depois, logo ali, à beira do poço bem no sítio do milagre, nasceu um novo lugar a que se chamou Webikas. E, naturalmente, se a água era cristalina, em particular os olhos dos naturais de Webicas, haveriam de, alguma forma, espelhar a limpidez daqueles águas!
Os menos poéticos, mas ainda com pendor para o romance, contam que era normal ver-se gente de raça branca, mulheres de roupas bonitas e compridas a par de homens de casaca que deixavam ao largo os barcos – porventura as caravelas de quem andava por estes mares em busca de que os novos mundos lhes pudessem dar – e vinham a terra descansar, fazendo grandes festas na praia e, pasme-se!, dançando e cantando ao ritmo da música que saía de uma caixa escura e grande: o piano, pois claro!

terça-feira, julho 04, 2006 

Boa educação

Ontem quando cheguei à Universidade tive uma surpresa boa. Uma multidão de crianças e jovens voluntários do CJPAV (Centro Juvenil Padre António Vieira) - na qual se incluíam vários alunos meus da UNTL - andava a limpar a rua em frente ao edifício onde se encontra a reitoria e o "centro de operações" da FUP, que tinha ficado num estado absolutamente deplorável devido ao lixo deixado pelos manifestantes. O CJPAV é um dos lugares de Timor onde se faz mais pela educação e formação da juventude, numa perspectiva de abrir janelas para o mundo e de expandir os seus horizontes. Alguns destes jovens são às vezes “olhados de esguelha” pelos mais velhos, que confundem “piercings” e algumas atitudes irreverentes com falta de educação (“No nosso tempo havia respeito, agora é uma vergonha!...”), mas isso valoriza ainda mais a sua coragem em assumir opções comportamentais ou estéticas individuais numa sociedade fortemente conservadora e resistente à mudança.
Há dias estive a ouvir um professor timorense defender que a crise da valores de grande parte da juventude actual é consequência directa de se ter ensinado os direitos das crianças nas escolas primárias (nomeadamente através da revista Lafaek) e de haver agora um discurso público de condenação dos pais e professores que batem nos meninos. Se é verdade que em Timor tem havido uma tendência para falar muito sobre direitos e pouco sobre deveres, também é verdade que há um fosso entre o discurso dos pedagogos e dos activistas da protecção infantil e a prática nas salas de aula das escolas do país, onde muitos alunos ainda são literalmente espancados com rotas (varas de vime), desde a primeira classe até ao fim da escola secundária. Estamos a falar portanto de uma educação que tenta incutir valores através da violência. O resultado é que as pessoas não aprendem a cumprir as regras da convivência em sociedade por elas serem boas para o bem-estar de todos, mas apenas porque têm medo do castigo. Por isso é que no dia seguinte ao ataque das FDTL ao quartel da polícia em Caicôli, quando a polícia desapareceu das ruas, quase toda a gente passou a ignorar os sentidos proibidos ao circular na cidade – tinha deixado de haver uma força com poder para aplicar castigos. Dizia-me no outro dia um amigo que “agora já não há lei, podemos andar como quisermos”.
Os castigos corporais não foram trazidos pelos indonésios, já cá estavam desde o tempo colonial português. O romancista timorense Luís Cardoso descreve de forma bem-humorada no seu “Crónica de uma Travessia” como funcionava a educação no famoso colégio de Soibada. A falta de escolas e de preparação adequada do corpo docente era pior nessa altura, e muito poucos tinham então oportunidade de frequentar o ensino. Destacavam-se, apesar de tudo, alguns seminários ou colégios da Igreja, que formavam elites que constituíram a base da classe política que actualmente dirige o país. Timor não tem ainda na fase actual recursos humanos nem capacidade de gestão para disponibilizar um ensino de qualidade para todas as crianças, mas precisa de formar elites de qualidade para tomarem conta da nação no futuro, e que possam ir estudar numa universidade em Portugal, na Austrália, no Brasil ou na China, e que consigam de facto terminar com sucesso os seus cursos. Creio que seria útil criar quatro ou cinco colégios internos com ensino de excelência espalhados pelo país, com critérios de admissão rigorosos baseados no mérito dos alunos. Não deveria ser difícil encontrar apoios internacionais para isso.

segunda-feira, julho 03, 2006 

Notas dispersas

Contaram-me a história. Se ela ilustra, infelizmente, a falta de educação que existe neste país, também ela é prova de que não se apostou e quase nada se ensinou sobre o conceito de educação.
Faço-o com alguma tristeza por ter de reconhecer que, efectivamente, há falta de educação, embora também defenda– sem pretender com isso arranjar desculpas para os desmandos que se verificam – que a isso não são estranhas as circunstâncias em que os timorenses viveram.
A destruição e os incêndios de casas e de terrenos por vingança, por maldade são um fenómeno novo. Não tenho ideia de que assim fosse na minha juventude. São uma herança da ocupação indonésia.
O que leva alguém a incendiar a encosta pedregosa de uma montanha? Aí, não será possível semear nada!
Como reagir quando se ouve alguém afirmar despudoramente: Eh, pá vão lá incendiar o palácio que eles constroem outro! A minha casa é que não!
Há dias, alguém incendiou uns terrenos que haviam sido previamente divididos em lotes para construção e foram depois vendidos a uns quantos populares. Em alguns desses lotes os novos donos tinham já construído as suas casas. Noutros, o material de construção ainda estava amontoado a um canto, porventura à espera de que houvesse dinheiro para o início das obras.
José – vamos chamar-lhe assim –, novo dono de uma dessas casas estava por perto e ainda conseguiu salvar a sua do incêndio que não do assalto! Estranhou que não tivessem levado o mobiliário. Os desordeiros concentraram-se sobretudo nos documentos. Pesquisa rápida, troca de impressões e concluiu-se que o vendedor incendiário pretendia reaver o documento-prova de venda do terreno. Neste caso, os seus intentos saíram-lhe gorados. José, homem avisado, conhecedor das dificuldades nos registos de terrenos, guardara o documento em sítio seguro!
Admitida que está a falta de educação, há que concordar, por outro lado, que quem tem mais educação deve transmiti-la aos que a não têm.
Como se pode dizer a alguém –neste caso, a um timorense - que observe determinado comportamento quando se vêem pessoas do mundo dito civilizado tomarem determinadas atitudes que não se atreveriam ter nos seus países de origem?
Num só dia, assisti a dois episódios de falta de educação. Segui o olhar de um empregado e deparei-me com uma senhora estrangeira sentada com os pés em cima do sofá - os sapatos ficaram no chão - do bar de uma conhecida unidade hoteleira!
Um pouco depois, um senhor transportou pelas escadas a sua bicicleta do andar onde provavelmente era o seu quarto. No rés-do-chão montou-a e percorreu o extenso hall em rápida pedalada até à rua!
O empregado não me poupou e atirou-me de forma algo mordaz: Oh, professora – na altura eu dava aulas de português -, então eles não vêm para nos ensinar?

 

Xenofobia

O cartaz está bem visível junto ao terminal das microletes no bairro de Tassitolo. A tradução do texto em tétum é a seguinte: "Este bairro não aceita gente do leste [de Timor-Leste], comunistas sedentos de sangue". Uma faixa de tecido com uma inscrição do mesmo género esteve durante algum tempo junto à ponte de Comoro, mas já foi retirada por alguém.

Por outro lado, há quem faça grafítis para tentar salvar a sua casa. Há ruas no bairro de Perumnas em que quase todas as residências não queimadas têm frases escritas à pressa nas paredes exteriores dizendo, em tétum, coisas como "Os donos desta casa são de loromonu" e depois "Somos de Atabai" ou "Somos de Ermera"... A lógica é tentar ser reconhecido como pertencente à mesma metade do país pelos delinquentes pirómanos de Díli que, nesta fase, são maioritariamente do oeste.

domingo, julho 02, 2006 

História de Galos



Um passeio pela marginal até à Areia Branca e quase se poderia dizer que estávamos perante um fim de tarde de domingo normal, não fossem as colunas de fumo que se vêem aqui e ali, bem no interior dos bairros, a deixar no ar a desconfiança de que pode ser fogo posto.
A cidade parece calma, com pouca gente nas ruas, com excepção da Praia da Areia Branca e do Cristo Rei, cheia de estrangeiros a apreciar a praia, fazendo footing e até em animado piquenique.
No regresso, olhei para o galódromo de Díli. Vazio. Todas as tardes, o galódromo enchia-se de uma multidão bem diversificada que gritava, aplaudia e apostava forte no galo da sua preferência.
Duvido pois que na cidade ainda haja disposição para o jogo do galo. Com a crise, os habitantes da capital estão muito mais preocupados com a sua sobrevivência do que em praticar o jogo mais em voga de Timor-Leste.
Em tempos mais recuados – e na montanha ainda assim deverá ser – era no bazar, no mercado, que se realizava o jogo. Especialmente aos domingos, dia de descanso e em dias de festa, o jogo do galo atrai verdadeiras multidões.
Criar um campeão não é fruto do acaso. É certo que o galo porque é de raça tem estirpe e é corajoso, o que não quer dizer que não se deva melhorar a performance!
Muita coisa mudou em Timor-Leste mas, a mudança não chegou aos aficionados do jogo do galo. É usual ver-se o galo transportado cuidadosamente ao colo! Mas os cuidados não se ficam por aí. Por exemplo, há que alimentá-lo com cautelas, tratar da penugem do animal, dar-lhe um banho cuidado, amaciar-lhe a pena, retirar uns minúsculos vermes parasitas que lhe atacam os olhos e lhe toldam a visão. Também há quem lhe corte a crista. Confesso que não gosto de ver um galo de crista cortada. Perde a elegância!
Há galos de várias cores. Brancos, pretos, vermelhos, mesclados. Os brancos só devem lutar de manhã. Os vermelhos são campeões na hora do calor. Os pretos levam a melhor ao fim da tarde, quando o sol se põe. Os mesclados são mais versáteis e não estão sujeitos a estas limitações horárias impostas pela cor.
Tal como há pessoas que têm, entre o cabelo negro, um fio de cabelo branco, também os galos podem ter, entre as penas, bem escondido, uma peninha de outra cor a que se chama sikat ( estar entalado, metido no meio de). E o galo branco, preto ou vermelho deixa de ser branco, preto ou vermelho e passa a mesclado, mascarado! Natureza adulterada!
Os entendidos utilizam precisamente esta variável para defraudar o parceiro. Assim, quando se combina a hora do jogo e cada adversário puxa a brasa à sua sardinha procurando a hora que melhor se adapta ao seu galo, o dono do galo disfarçado arranca a pena sikat. A este estratagema chama-se sikat subar que é o mesmo que dizer, pena escondida. Ora quando o dono do animal ostenta o galo, finge um ar ingénuo ao aceitar a hora proposta pelo outro concorrente.. E o galo branco que só deveria jogar de manhã, entra no jogo a uma hora qualquer.
Ganhará todas as apostas, será um campeão! Deve ter magia o galo branco vencedor de horas desacertadas com a sua natureza!
Valha ao dono do galo que a sua fraude seja descoberta pelo adversário! Adeus, campeão! Terá de repor tudo quanto ganhou, será castigado…
Quando, na sua simplicidade , o povo quer ilustrar algum acto enganador, alude imensas vezes a esta história de galos, dizendo que , tal como o sikat subar não apagou a verdadeira natureza do galo – o sikat voltará a crescer - , também a essência e a história do homem não se apagam apenas porque se escondem os seus contornos ou se mascara a natureza dos actos praticados. Numa linguagem mais popular, a verdade é como o azeite. Vem sempre ao de cima! E também, mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo…