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segunda-feira, agosto 21, 2006 

Vou vender o peixe pelo preço que comprei


Têm entre 60 e 75 anos, fizeram parte do quadro do funcionalismo português. Quando se encontram, conversam sobre os tempos de antigamente, falando em bom português e disso mesmo se orgulham. Ao seu português associam as noções de respeito e de educação; não têm acanhamento em afirmar que têm saudades dos tempos em que eram mais novos e não havia violência. Criticam os jovens pela prática continuada da violência, pela falta de educação, pelo desrespeito pelas pessoas e também pela relutância em aprender a língua oficial, comentando que se esqueceram depressa do sofrimento do povo durante os 24 anos de ocupação. Estão deslidudidos e cansados!
Um mestre da zona de Manatuto, de farta cabeleira branca, olhar vivo, perspicaz, sobre a forma como lidava com o ocupante, conta que “No tempo da ocupação, falava em bahasa indonésio com os meus filhos quando estava em público. Mas, mal chegava a casa, só falávamos português. Assim os eduquei”. E frisa, “nunca me deixei esquecer da língua de Camões”.
Outro Katuas* de 65 anos de idade, cujo filho desapareceu aquando do massacre de Santa Cruz, sempre que quer contar algo que se lhe afigura importante mas do qual não está absolutamente certo, recorre ao conhecido: “vou vender o peixe pelo preço que comprei.”
É pegando nesta frase do Katuas e a propósito da violência que não pára, antes parece crescer a cada momento, que vou contar tal qual o que esta manhã ouvi a uma popular.
Dizem pra´í que nos bolsos de muitos jovens detidos há dinheiro, entre 30 e 50 dólares para além de que, também se diz, os bandos estão muito bem organizados e atacam preferencialmente de noite, aproveitando a escuridão; há ainda os que defendem que foram distribuídos drogas e que os autores dos actos de vandalismo actuam sob os seus efeitos. Estranhamente ou talvez não, por associação de ideias, isto faz-me lembrar outros tempos não muito longínquos em que o demónio andava à solta!
Por outro lado, há populares que estão a combinar a melhor forma de fazer frente aos atacantes que, asseveram, estão dentro dos campos de refugiados. Têm de se defender “porque os internacionais não estão a conseguir acabar com a violência” que irrompe diariamente em bairros diferenciados, sem qualquer explicação.
Diz ainda a popular que ontem, durante as horas em que não houve energia eléctrica, como que por artes mágicas, apareceu um corpo que jazia no meio da rua do bairro conturbado onde vive.
Ouve-se e diz-se muita coisa. Por se ter banalizado a ideia de que Timor é o país do rumor e do boato, quase sempre achamos que tudo o que se diz e se ouve é um exagero. Que nada corresponde à verdade; que “são mais as vozes que as nozes”, como gosta de dizer o catuas.
Mas, voltando agora a pegar numa frase do mestre de Manatuto, “não há fumo sem fogo”, pelo que talvez seja preferível levarmos mais a sério a voz do povo e prestarmos mais atenção ao que ele diz. Mesmo sabendo-se que, à boa maneira de Timor, a cada conto se acrescenta sempre um ponto!
Enquanto continuamos todos a querer acreditar que, apesar das evidências, ainda há controlo, sucedem-se os incêndios, as catanadas, os lançamentos de cocktail molotov e das rama ambom, os apedrejamentos, os tiros, os assaltos…
Talvez seja agora a altura de perguntar quem controla o quê, de procurar saber a quem importa que este país resvale definitivamente para a anarquia, para o descontrolo total e, finalmente, de saber a quem interessa que Timor-Leste seja um Estado falhado? Não acredito que haja um timorense que, no seu perfeito juízo, defenda isso!

* Katuas – velho, idoso